Nenhuma destas cebolas, quase de certeza, será algum dia descascada por Günter Grass. Também não deverá escrever sobre nenhuma delas. E eu, tirando isto, também não me estou a ver a escrever mais. Mas nunca se sabe. Foram plantadas hoje, pela fresca, e devem dar uma boa colheita. (clicando na imagem vê-se melhor)
segunda-feira, 30 de abril de 2007
Uma tremenda frustração, mas mesmo assim...
Benfica – 1, Sporting – 1 (Liedson). No post do último jogo do Sporting, escrevi que guardava as palavras para o jogo de ontem à noite, melhor, para «as façanhas» desse jogo. Tinha a sensação de que tudo ia correr bem, e na noite anterior, o jogo macaco do Porto tinha ajudado a confirmar essa sensação. Ontem, com o empate na Luz, fiquei sem saber bem o que pensar, e sem saber bem o que fazer às palavras. Parece que o Sporting poderia ter ganho facilmente o jogo por dois ou três golos, mas a verdade é que apenas empatou e se tivesse tido azar num ou noutro lance poderia ter perdido. Assim, substituo as palavras das façanhas por algumas frases soltas de coisas que fui observando.
- Durante o jogo, não percebi se foi a equipa que não conseguiu ganhar se foi Paulo Bento que a fez apenas empatar; no final, ao ouvir Paulo Bento, pareceu-me que foi mesmo ele que não se atreveu a ganhar o jogo, o que não é nada bom (ou seja, Paulo Bento é um treinador corajoso, atrevido, mas assim uma espécie de corajoso atrevido no seu bairro, um pouco embasbacado quando é preciso cometimentos maiores).
- Apesar de tudo, deu-me gozo ver em determinados momentos a equipa do Sporting jogar, com oito excelentes jogadores, alguns mesmo verdadeiros craques.
- De oito para onze faltam três, Ricardo e os dois centrais que costumam ser «disfarçados» pela capacidade de jogar dos colegas.
- Ricardo tem andado a jogar certinho e a fazer umas defesas de valia de vez em quanto, e ontem fez mais algumas, mas é sempre aquilo que se sabe, a qualquer momento pode enterrar uma equipa, nem que isso aconteça de três em três meses; ontem, depois de uma defesa muito boa, ficou paralisado com o remate de Miccoli, que lhe passou bem perto, e aí começou a desgraça do Sporting.
- Caneira confirmou que é mesmo uma tragédia com botas de futebol, e o que dá mesmo que pensar é que Paulo Bento aposta nele (veja-se a entrada de Tonel, para o lugar de um bom jogador – Abel – que Caneira foi substituir, ou antes, Caneira foi andar de um lado para o outro na zona de jogo de Abel, como antes tinha andado de um lado para o outro na zona central);
- Polga, ao contrário de Caneira, dá tudo e mais alguma coisa, mas é a falta de jeito em estado puro – somando aplicação e falta de jeito, mesmo assim ainda dá para controlar alguma coisa no centro da defesa.
- Provavelmente com Mourinho no banco a equipa ganhava o jogo com dois ou três gritos para o relvado do special one; o pior é pensar que talvez até com uns gritos de Jaime Pacheco ou de Jorge Jesus a equipa teria ganho – com Peseiro, o melhor é nem imaginar o que poderia ter acontecido, e com o triste Fernando Santos idem idem, eventualmente sem aspas.
Mais umas coisas… Como teria sido o jogo com Custódio em vez de Miguel Veloso? E jogando Caneira e lateral direito logo de início, para onde teria ido o centro que depois Liedson mandou para o fundo da baliza de Quim? E se os oito jogadores de campo que ontem foram acompanhados por Polga e Caneira tivessem dois centrais do tipo de outros que o Sporting teve nos últimos anos (Luisinho, Marco Aurélio, André Cruz, por exemplo)?
De qualquer forma, eu ainda estou tentado a acreditar; vou estar atento, sobretudo, ao Porto. Continuo sem conseguir imaginar Jesuldo Ferreira a ganhar um campeonato; pode ser que o Sporting tenha muita sorte e faça sentido esta minha falta de imaginação.
- Durante o jogo, não percebi se foi a equipa que não conseguiu ganhar se foi Paulo Bento que a fez apenas empatar; no final, ao ouvir Paulo Bento, pareceu-me que foi mesmo ele que não se atreveu a ganhar o jogo, o que não é nada bom (ou seja, Paulo Bento é um treinador corajoso, atrevido, mas assim uma espécie de corajoso atrevido no seu bairro, um pouco embasbacado quando é preciso cometimentos maiores).
- Apesar de tudo, deu-me gozo ver em determinados momentos a equipa do Sporting jogar, com oito excelentes jogadores, alguns mesmo verdadeiros craques.
- De oito para onze faltam três, Ricardo e os dois centrais que costumam ser «disfarçados» pela capacidade de jogar dos colegas.
- Ricardo tem andado a jogar certinho e a fazer umas defesas de valia de vez em quanto, e ontem fez mais algumas, mas é sempre aquilo que se sabe, a qualquer momento pode enterrar uma equipa, nem que isso aconteça de três em três meses; ontem, depois de uma defesa muito boa, ficou paralisado com o remate de Miccoli, que lhe passou bem perto, e aí começou a desgraça do Sporting.
- Caneira confirmou que é mesmo uma tragédia com botas de futebol, e o que dá mesmo que pensar é que Paulo Bento aposta nele (veja-se a entrada de Tonel, para o lugar de um bom jogador – Abel – que Caneira foi substituir, ou antes, Caneira foi andar de um lado para o outro na zona de jogo de Abel, como antes tinha andado de um lado para o outro na zona central);
- Polga, ao contrário de Caneira, dá tudo e mais alguma coisa, mas é a falta de jeito em estado puro – somando aplicação e falta de jeito, mesmo assim ainda dá para controlar alguma coisa no centro da defesa.
- Provavelmente com Mourinho no banco a equipa ganhava o jogo com dois ou três gritos para o relvado do special one; o pior é pensar que talvez até com uns gritos de Jaime Pacheco ou de Jorge Jesus a equipa teria ganho – com Peseiro, o melhor é nem imaginar o que poderia ter acontecido, e com o triste Fernando Santos idem idem, eventualmente sem aspas.
Mais umas coisas… Como teria sido o jogo com Custódio em vez de Miguel Veloso? E jogando Caneira e lateral direito logo de início, para onde teria ido o centro que depois Liedson mandou para o fundo da baliza de Quim? E se os oito jogadores de campo que ontem foram acompanhados por Polga e Caneira tivessem dois centrais do tipo de outros que o Sporting teve nos últimos anos (Luisinho, Marco Aurélio, André Cruz, por exemplo)?
De qualquer forma, eu ainda estou tentado a acreditar; vou estar atento, sobretudo, ao Porto. Continuo sem conseguir imaginar Jesuldo Ferreira a ganhar um campeonato; pode ser que o Sporting tenha muita sorte e faça sentido esta minha falta de imaginação.
sexta-feira, 27 de abril de 2007
Textos sobre livros – 25
Livro: «O Vendedor de Passados», de José Eduardo Agualusa (Publicações Dom Quixote, 231 pp.)
Angola, um país a passar do socialismo para um capitalismo completamente selvagem, segundo o autor de «O Vendedor de Passados», José Eduardo Agualusa (n. Huambo, 1960), e provavelmente com muita gente a assinar por baixo. Podem acontecer aí as coisas mais estranhas, acontecem de certeza, mas estranho não será aparecer um vendedor de passados falsos, passados esses que deverão passar a funcionar como verdadeiros. Em quantos países em plena transformação não poderia um profissional assim fazer fortuna? Pensemos no Portugal do pós-25 de Abril (pensemos até no Portugal de agora, que talvez não chegando para a fortuna na volta dava para construir uma existência, no mínimo, desafogada a vender passados...).
Mas mesmo não sendo estranho o vendedor de passados numa terra em transformação, é indiscutivelmente uma ideia fabulosa para um romance, ainda mais se desenvolvida por um escritor como há poucos na língua portuguesa. Félix Ventura (personagem, não o escritor, que esse é José Eduardo Agualusa) vende passados falsos e tem um cartão de visita onde se pode ler «Ofereça aos seus filhos um passado melhor». Quantas pessoas não gostariam de construir de um dia para o outro um passado melhor? De forma a, para utilizar o chavão, viverem melhor o presente, e assim prepararem o futuro...
José Eduardo Agualusa já afirmou que o romance lhe saiu apenas da imaginação, que ao contrário do que escreveu imediatamente antes («O Ano em que Zumbi Tomou o Rio») não precisou de fazer investigação. Talvez não seja apenas a imaginação, talvez a investigação seja automática, assegurada pelo correr dos dias do país do autor. Mesmo que não quisesse investigar, ele investiga; mesmo que não quisesse preocupar-se, ele preocupa-se. E escreve, divertindo-se, ele que não consegue fazê-lo de outra forma, ao contrário de tantos casos que a literatura conhece de ginjeira. Diverte-se até com Jorge Luis Borges, Borges que mesmo reencarnando no corpo de uma osga não parece chatear-se muito, até porque tem a oportunidade de fazer as considerações que bem entende, ou melhor, as considerações que José Eduardo Agualusa bem entende que ele deve fazer; e isso basta-lhe.
Borges, uma osga
Um vendedor de passados, falsos, já se vê, é a personagem que José Eduardo Agualusa utiliza neste romance para construir uma sátira e ao mesmo tempo uma reflexão sobre a Angola dos nossos dias; um país onde de repente aparece Jorge Luis Borges.
Um vendedor de passados, falsos, já se vê, é a personagem que José Eduardo Agualusa utiliza neste romance para construir uma sátira e ao mesmo tempo uma reflexão sobre a Angola dos nossos dias; um país onde de repente aparece Jorge Luis Borges.
Angola, um país a passar do socialismo para um capitalismo completamente selvagem, segundo o autor de «O Vendedor de Passados», José Eduardo Agualusa (n. Huambo, 1960), e provavelmente com muita gente a assinar por baixo. Podem acontecer aí as coisas mais estranhas, acontecem de certeza, mas estranho não será aparecer um vendedor de passados falsos, passados esses que deverão passar a funcionar como verdadeiros. Em quantos países em plena transformação não poderia um profissional assim fazer fortuna? Pensemos no Portugal do pós-25 de Abril (pensemos até no Portugal de agora, que talvez não chegando para a fortuna na volta dava para construir uma existência, no mínimo, desafogada a vender passados...).
Mas mesmo não sendo estranho o vendedor de passados numa terra em transformação, é indiscutivelmente uma ideia fabulosa para um romance, ainda mais se desenvolvida por um escritor como há poucos na língua portuguesa. Félix Ventura (personagem, não o escritor, que esse é José Eduardo Agualusa) vende passados falsos e tem um cartão de visita onde se pode ler «Ofereça aos seus filhos um passado melhor». Quantas pessoas não gostariam de construir de um dia para o outro um passado melhor? De forma a, para utilizar o chavão, viverem melhor o presente, e assim prepararem o futuro...
José Eduardo Agualusa já afirmou que o romance lhe saiu apenas da imaginação, que ao contrário do que escreveu imediatamente antes («O Ano em que Zumbi Tomou o Rio») não precisou de fazer investigação. Talvez não seja apenas a imaginação, talvez a investigação seja automática, assegurada pelo correr dos dias do país do autor. Mesmo que não quisesse investigar, ele investiga; mesmo que não quisesse preocupar-se, ele preocupa-se. E escreve, divertindo-se, ele que não consegue fazê-lo de outra forma, ao contrário de tantos casos que a literatura conhece de ginjeira. Diverte-se até com Jorge Luis Borges, Borges que mesmo reencarnando no corpo de uma osga não parece chatear-se muito, até porque tem a oportunidade de fazer as considerações que bem entende, ou melhor, as considerações que José Eduardo Agualusa bem entende que ele deve fazer; e isso basta-lhe.
quarta-feira, 25 de abril de 2007
Há 33 anos
Faz hoje 33 anos… Uma quinta-feira de um Portugal ainda a preto e branco, ou talvez cinzento; sim, cinzento pode muito bem ser a palavra certa. Lembro-me como se fosse ontem.
O meu golpe demasiado azul
O dia 25 de Abril de 1974. Lembro-me perfeitamente desse dia, apesar de ter então apenas seis anos. Melhor, se alguém me aparecer com a velha pergunta de onde é que estava no 25 de Abril, não terei dificuldade em responder, ainda que nessa altura nem sequer andasse na escola. No dia 25 de Abril de 1974, uma quinta-feira, fui para a casa da minha avó materna logo pela manhã. Das conversas que escutava à minha volta, ia percebendo que algo de estranho se passava, mas não entendia o que era. Para mim, todas as figuras que dominavam o país, fosse lá como fosse, pouco significavam. Uma vez, creio que um ano ou dois antes, tinha dado de caras com o presidente da República, Américo Tomás, depois de sair da missa; foi num domingo de manhã. O velhote ia a descer uma das ruas de Monchique, perante a multidão embasbacada e submissa, menos preocupada com ele do que com os guardas que não hesitavam em distribuir encontrões e o que mais fosse necessário. No meio de tanto burburinho, ainda me apertou a mão, enquanto dizia:
– Menino, menino.
Fiquei todo cheio de orgulho, e só daí alguns anos é que percebi o quanto tal orgulho era ridículo. Não haveria de demorar muito, no entanto, para que num outro domingo, de novo à saída da missa, mas então já preparado para ir à catequese, dar de caras com o Mário Soares à frente de uma multidão ululante, todos de punho fechado e com ar de poucos amigos. Meteram-me um medo terrível, mais ainda do que os guardas dos encontrões, que naquele espaço de dois ou três anos haviam desaparecido misteriosamente. Tudo ao contrário do velho presidente-almirante, que tinha sempre ar de não ser homem para fazer mal nem a uma mosca. Só mais tarde percebi que estava enganado, que o presidente do ditador Salazar não era tão bom como isso, assim como o Soares também era capaz de não ser o diabo que a ira que transparecia dos seus gritos e do seu semblante, pelas ruas de Monchique, deixava adivinhar. Apesar de também não ser nenhum anjinho que aparecia ao domingo, pelo fim da manhã, em vilas do interior de Portugal.
O dia 25 de Abril de 1974, o dia do golpe de Estado, como eu ouvia as pessoas dizerem à minha volta, não foi lá muito bom para mim. Nas andanças pelos campos em redor da casa da minha avó, armado de faca e pau para melhor parecer um guerreiro, acabei por estragar as coisas logo a seguir ao almoço. Nessa altura, se calhar, o substituto de Salazar, Marcello Caetano, ainda tinha alguma esperança de conter o golpe para dar cabo do resto do país em mais meia-dúzia de anos. Ou então já tinha perdido a esperança completamente; isto se é que ele alguma vez soube o significado dessa palavra, que o mais certo é nem vir nos compêndios de Direito de agora, quanto mais nos daquela altura, muitos dos quais ainda são de uso corrente. A imagem com que sempre fiquei de Caetano é a de um homem a preto e branco, como a maioria dos homens do regime só de homens daquela altura, e com uns óculos de aros bem espessos e escuros. A culpa podia muito bem ser da televisão, igualmente a preto e branco, mas não. Eles eram mesmo assim, a preto e branco, ou cinzentos, e isso pude eu constatar na altura em que o velho Tomás me apertou a mão (Tomás, por vezes, até tinha a mania de andar com a farda branca da marinha, mas daquela vez estava de fato preto). Era a forma como todos se vestiam, tal como pensavam e agiam, a preto e branco, ou quando muito em tons de cinzento. Creio mesmo que naquele mundo kafkiano a televisão a cores, se existisse, não iria causar grande transformação aos nossos olhos. As imagens haveriam de colorir-se muito pouco ao focar os mandantes, fossem eles Salazar, Caetano, Tomás ou até os que mais tarde regressaram vestidos de cores garridas.
Mas voltando à minha odisseia pelos campos de batalha junto à casa da minha avó, não sei por quê nem como, se calhar porque não conseguia dar outro uso à faca, cortei-me no dedo polegar da mão esquerda. Fiz um golpe de quase uns dois centímetros, coisa que pode não parecer muito mas que comigo, com seis anos, deu para lágrimas, gritos e alguns pulos. O que acabou por me distrair foi o paralelismo que logo alguém me fez com o que acontecia em Lisboa. Eu, tal como os militares, também tinha feito um golpe. Tinha arranjado o meu próprio golpe. Daí que a meio da tarde – já com Marcello Caetano a dizer que se ia embora, mas para o tratarem com dignidade, e que o deixassem levar a biblioteca – eu andasse de um lado para o outro todo contente a mostrar o polegar ferido, como um precioso troféu.
À noite, em casa, ainda eu andava com a mão esquerda bem à vista, não a fazer sinal de que estava tudo bem, mas a mostrar o dedo. Não liguei à surpresa da apresentação na televisão dos senhores da Junta de Salvação Nacional, uma espécie de governo que ia assegurar a transição para aquilo a que chamavam democracia. Para mim, com seis anos, tanto se me dava, ainda por cima aparecendo eles também a preto e branco, num fundo cinzento. Se nem a PIDE, a polícia política do regime (com o sonso Caetano camuflada com o pomposo e enganador nome de Direcção-Geral de Segurança), alguma vez me tinha dado que pensar, não haveriam de ser aqueles artistas a ter essa honra, ainda por cima comandados por um velhote quase mais caquéctico do que Tomás, o tal que dizia «menino, menino» quando apertava a mão. Não me preocupei mesmo nada, nem com as desconfianças que eles geravam, porque a verdade é que mesmo vindo substituir os maus, como se dizia, ninguém sabia o que iriam fazer. Ainda ouvi comentar que de entre os que apareciam no ecrã, se calhar, o único que se aproveitava mesmo era o locutor, o Fialho Gouveia, mas nem a isso dei importância. Continuava orgulhosamente a pensar no meu golpe, mas já um pouco preocupado, porque o dedo estava a ficar demasiado azul.
O meu golpe demasiado azul
O dia 25 de Abril de 1974. Lembro-me perfeitamente desse dia, apesar de ter então apenas seis anos. Melhor, se alguém me aparecer com a velha pergunta de onde é que estava no 25 de Abril, não terei dificuldade em responder, ainda que nessa altura nem sequer andasse na escola. No dia 25 de Abril de 1974, uma quinta-feira, fui para a casa da minha avó materna logo pela manhã. Das conversas que escutava à minha volta, ia percebendo que algo de estranho se passava, mas não entendia o que era. Para mim, todas as figuras que dominavam o país, fosse lá como fosse, pouco significavam. Uma vez, creio que um ano ou dois antes, tinha dado de caras com o presidente da República, Américo Tomás, depois de sair da missa; foi num domingo de manhã. O velhote ia a descer uma das ruas de Monchique, perante a multidão embasbacada e submissa, menos preocupada com ele do que com os guardas que não hesitavam em distribuir encontrões e o que mais fosse necessário. No meio de tanto burburinho, ainda me apertou a mão, enquanto dizia:
– Menino, menino.
Fiquei todo cheio de orgulho, e só daí alguns anos é que percebi o quanto tal orgulho era ridículo. Não haveria de demorar muito, no entanto, para que num outro domingo, de novo à saída da missa, mas então já preparado para ir à catequese, dar de caras com o Mário Soares à frente de uma multidão ululante, todos de punho fechado e com ar de poucos amigos. Meteram-me um medo terrível, mais ainda do que os guardas dos encontrões, que naquele espaço de dois ou três anos haviam desaparecido misteriosamente. Tudo ao contrário do velho presidente-almirante, que tinha sempre ar de não ser homem para fazer mal nem a uma mosca. Só mais tarde percebi que estava enganado, que o presidente do ditador Salazar não era tão bom como isso, assim como o Soares também era capaz de não ser o diabo que a ira que transparecia dos seus gritos e do seu semblante, pelas ruas de Monchique, deixava adivinhar. Apesar de também não ser nenhum anjinho que aparecia ao domingo, pelo fim da manhã, em vilas do interior de Portugal.
O dia 25 de Abril de 1974, o dia do golpe de Estado, como eu ouvia as pessoas dizerem à minha volta, não foi lá muito bom para mim. Nas andanças pelos campos em redor da casa da minha avó, armado de faca e pau para melhor parecer um guerreiro, acabei por estragar as coisas logo a seguir ao almoço. Nessa altura, se calhar, o substituto de Salazar, Marcello Caetano, ainda tinha alguma esperança de conter o golpe para dar cabo do resto do país em mais meia-dúzia de anos. Ou então já tinha perdido a esperança completamente; isto se é que ele alguma vez soube o significado dessa palavra, que o mais certo é nem vir nos compêndios de Direito de agora, quanto mais nos daquela altura, muitos dos quais ainda são de uso corrente. A imagem com que sempre fiquei de Caetano é a de um homem a preto e branco, como a maioria dos homens do regime só de homens daquela altura, e com uns óculos de aros bem espessos e escuros. A culpa podia muito bem ser da televisão, igualmente a preto e branco, mas não. Eles eram mesmo assim, a preto e branco, ou cinzentos, e isso pude eu constatar na altura em que o velho Tomás me apertou a mão (Tomás, por vezes, até tinha a mania de andar com a farda branca da marinha, mas daquela vez estava de fato preto). Era a forma como todos se vestiam, tal como pensavam e agiam, a preto e branco, ou quando muito em tons de cinzento. Creio mesmo que naquele mundo kafkiano a televisão a cores, se existisse, não iria causar grande transformação aos nossos olhos. As imagens haveriam de colorir-se muito pouco ao focar os mandantes, fossem eles Salazar, Caetano, Tomás ou até os que mais tarde regressaram vestidos de cores garridas.
Mas voltando à minha odisseia pelos campos de batalha junto à casa da minha avó, não sei por quê nem como, se calhar porque não conseguia dar outro uso à faca, cortei-me no dedo polegar da mão esquerda. Fiz um golpe de quase uns dois centímetros, coisa que pode não parecer muito mas que comigo, com seis anos, deu para lágrimas, gritos e alguns pulos. O que acabou por me distrair foi o paralelismo que logo alguém me fez com o que acontecia em Lisboa. Eu, tal como os militares, também tinha feito um golpe. Tinha arranjado o meu próprio golpe. Daí que a meio da tarde – já com Marcello Caetano a dizer que se ia embora, mas para o tratarem com dignidade, e que o deixassem levar a biblioteca – eu andasse de um lado para o outro todo contente a mostrar o polegar ferido, como um precioso troféu.
À noite, em casa, ainda eu andava com a mão esquerda bem à vista, não a fazer sinal de que estava tudo bem, mas a mostrar o dedo. Não liguei à surpresa da apresentação na televisão dos senhores da Junta de Salvação Nacional, uma espécie de governo que ia assegurar a transição para aquilo a que chamavam democracia. Para mim, com seis anos, tanto se me dava, ainda por cima aparecendo eles também a preto e branco, num fundo cinzento. Se nem a PIDE, a polícia política do regime (com o sonso Caetano camuflada com o pomposo e enganador nome de Direcção-Geral de Segurança), alguma vez me tinha dado que pensar, não haveriam de ser aqueles artistas a ter essa honra, ainda por cima comandados por um velhote quase mais caquéctico do que Tomás, o tal que dizia «menino, menino» quando apertava a mão. Não me preocupei mesmo nada, nem com as desconfianças que eles geravam, porque a verdade é que mesmo vindo substituir os maus, como se dizia, ninguém sabia o que iriam fazer. Ainda ouvi comentar que de entre os que apareciam no ecrã, se calhar, o único que se aproveitava mesmo era o locutor, o Fialho Gouveia, mas nem a isso dei importância. Continuava orgulhosamente a pensar no meu golpe, mas já um pouco preocupado, porque o dedo estava a ficar demasiado azul.
segunda-feira, 23 de abril de 2007
Guardar as palavras
Sporting – 4 (Alecsandro 3, João Moutinho), Naval – 0. Para o próximo domingo, é claro. Guardar as palavras para o próximo domingo, depois das façanhas da Luz.
Dia Mundial do Livro
Uma coincidência que assinalo num post. Hoje, Dia Mundial do Livro, encontrei numa caixa de correio individual perdida no Alentejo – a minha, precisamente – o primeiro exemplar do meu próximo romance (clicar na imagem para aumentar); disseram-me que o puseram no correio na quinta-feira da semana passada, e chegou hoje. Estava quente do Sol, mesmo bem protegido. Daqui por uns dias chegarão às livrarias muitos outros exemplares. «O que Entra nos Livros», ou melhor, o primeiro exemplar deste romance, chegou-me num dia bom, porque ele próprio é uma homenagem aos livros e, sobretudo, aos escritores. A muitos livros que têm um lugar especial na minha memória, e muitos escritores que também são donos desse lugar. Folheando páginas ao acaso, encontro sem grande esforço nomes como os de Roberto Ampuero, Lídia Jorge, Gabriel García Márquez, Naguib Mahfouz, Camilo José Cela, Xavier Queipo, Clara Pinto Correia, Mario Vargas Llosa, José Riço Direitinho…. E também os de Elli Welt, Paulo Moreiras, Mário de Carvalho, Javier Cercas, José Eduardo Agualusa, Joseph Mitchell, Dinis Machado, Alicia Giménez Bartlett, António Lobo Antunes, Eduardo Mendoza, José Cardoso Pires… E Ondjaki, Michel Folco, José Saramago, Charles Bukowski, Ben Rice, Santiago Gamboa, Juan Eslava Galán... E outros nomes.
Tirado também ao acaso, um bocadinho do romance, diferente dos que aqui tenho vindo a colocar…
Tirado também ao acaso, um bocadinho do romance, diferente dos que aqui tenho vindo a colocar…
A estrada nessa zona tinha inclusive uma parte em calçada de granito, talvez a sua marca maior dos tempos do regime manhoso e crápula de Salazar e de Caetano, dois criminosos em relação a quem eu me espantava por algumas vezes ouvir o tratamento de «doutor» e de «professor», respectivamente, embora cada um deles tivesse acumulado os dois títulos; não deixava de ser uma forma curiosa de os distinguir…
sábado, 21 de abril de 2007
Uma entrevista a José Sá Fernandes
Esta entrevista foi feita em Fevereiro, bem na altura da crise na Câmara Municipal de Lisboa. Fi-la para a revista «Pessoal» (edição de Março de 2007) com a jornalista Ana Leonor Martins. É a versão integral, um pouco maior do que aquela que foi publicada na revista, o que coloco a seguir.
Há muitos anos que José Sá Fernandes se destaca na vida pública lisboeta por denunciar casos de irregularidades, inclusive da própria câmara municipal. Advogado de profissão, depois de chegar a vereador passou a dedicar às múltiplas actividades que o cargo implica cerca de 10 horas por dia, apesar de não ser remunerado. Procura, acima de tudo, a transparência para a gestão da cidade onde nasceu.
O que significa para si ter um trabalho directamente ligado a Lisboa? Sempre se mostrou preocupado com o rumo da cidade, mas agora tem um cargo que lhe traz maior responsabilidade…
Há uma mudança, de facto. Ser vereador, ainda que sem funções executivas – ou seja, não tenho responsabilidade nenhuma nas asneiras que se andam a fazer em Lisboa –, dá-me oportunidade de ter acesso quer a vários dossiers, quer a uma série de sítios da cidade aos quais não tinha acesso enquanto cidadão. Tenho aprendido imenso ao longo deste ano e meio como vereador. Trabalho cerca de 10 horas por dia para Lisboa, sem ser remunerado, e depois vou para o meu escritório.
Referiu que não é remunerado pelo trabalho que desenvolve na câmara. Como é que lida com isso?
À partida já sabia quais eram as condições, portanto não me posso queixar.
Mas na prática como é que lida com a situação? O tempo de que dispõe para se dedicar à advocacia acaba por ser bem menor do que antes…
É muito simples. Das nove da manhã até ao fim da tarde dedico-me à actividade na câmara, e depois vou para o escritório, porque continuo a ser advogado. Antes de ser advogado dedicava já alguns dias a Lisboa, a questões de defesa do património ou ambientais. Com o cargo de vereador foi preciso acrescentar mais umas horas, e cá estou. Porque eu gosto mesmo de fazer isto.
Acha que essa situação é justa. Se desenvolve um trabalho em benefício da cidade, não devia ser pago por isso?
São estas as condições, e como disse eram conhecidas à partida. Portanto, quem assume o cargo de vereador não se pode limitar a ir às reuniões que se realizam três vezes por mês, sempre à quarta-feira.
Tem uma equipa a trabalhar consigo. Essa é remunerada…
Sim. Isso faz parte das condições para se conseguir exercer o cargo de vereador.
Mas não é muito normal, em Portugal, na maioria dos municípios, existirem tais condições. Como é que isso é possível em Lisboa?
O que a lei diz é que se deve dar condições para que uma pessoa possa exercer o cargo de vereador da oposição. Entendeu-se, desde o tempo do Jorge Sampaio, que essas condições passavam por ter um gabinete, alguns assessores – porque as áreas da câmara são variadíssimas, desde as finanças à acção social, passando pelo património, pela educação, pelo desporto ou pelo urbanismo, e é preciso haver apoio. É impossível uma pessoa sozinha estar habilitada para responder a todas as matérias discutidas numa reunião de câmara. Mas, do conhecimento que tenho, é verdade que o município de Lisboa é o que dá melhores condições à oposição.
Como seria o seu papel se não tivesse esse apoio?
Seria mais limitado.
E como é que iria actuar?
Acho que actuava da mesma maneira. Não tinha era tanta capacidade de intervenção. Assim, conheço os dossiers à lupa. Todos. De outra maneira, continuariam a ser analisados à lupa, porque acho que assim é que tem de ser, mas não podia vê-los todos. Tinha que definir prioridades.
Com a imagem que havia da câmara e da sua posição em relação a ela, não foi quase como pôr o lobo a dormir no galinheiro?
Acho que o que se tem provado é que o lobo continua aí.
Mas se não tivesse esta maior facilidade de movimentação os casos que denunciou teriam vindo a público?
No caso do Parque Mayer, denunciei a situação e coloquei uma acção antes de assumir este cargo. Os casos que tenho levantado, o túnel do Marquês, o Terreiro do Paço, que está em obras há 10 anos, o Convento da Graça, etc, todos esses problemas foram levantados há muito tempo.
São os seus primeiros casos…
Sim, o do Terreiro do Paço foi o primeiro. E o do túnel do Marquês foi o último, enquanto cidadão. Depois ainda foi o negócio do Parque Mayer… Foi importante vir para vereador porque senão tinha descoberto para aí metade das coisas que se passavam na EPUL. Não me tinha apercebido, por exemplo, do que considero ser um escândalo, que se passou no Vale de Santo António, que é um dos sítios envolvido em grande polémica em Lisboa.
Acha que faz sentido uma cidade como Lisboa ser gerida pelos órgãos de uma instituição como uma câmara municipal e respectivas empresas que vão aparecendo na sua órbita? Não lhe parece que a cidade anda mais depressa do que este tipo de instituições e que precisa de outras respostas?
Acho que pode funcionar muito bem. O problema é haver vontade de mudar este paradigma.
Então o problema passa sobretudo pela falta de vontade, não é uma questão de capacidade…
Agora agravou-se. Mas há uma prática de gestão autárquica que tem sido péssima. E as empresas municipais têm a ver com isso, porque infelizmente têm servido muito para distribuição de cargos pelos partidos políticos.
Como é que se pode mudar isso?
No caso de algumas empresas municipais, nem sequer há razão de existirem. Em Lisboa existe uma empresa municipal com três administradores e quatro funcionários. E há serviços da câmara que podiam facilmente substituía-la.
Não lhe parece que só se nota alguma apetência para fazer mudanças quando a exposição dos casos torna o óbvio vergonhoso aos olhos do cidadão?
Para quem está no poder é de facto vergonhoso que só nessas circunstâncias é que se pense em mudar, como se só então é que se apercebessem da má gestão. Mas infelizmente é assim. E existem tantas situações que era fácil mudar se houvesse vontade política… Por exemplo, é preciso reestruturar os serviços, interligando-os melhor. Mas praticamente nenhum vereador vai aos serviços da câmara. Não conhecem as pessoas.
Isso é um mal dos vereadores a tempo inteiro, dos da oposição ou de todos?
Nesse aspecto, acho que é igual. E algumas pessoas já estão na vereação há bastante tempo.
Por exemplo, o vereador, e vice-presidente, Carlos Fontão de Carvalho, que tem um percurso na câmara já longo, inclusive sendo eleito em listas de vários partidos?
Sim, esse deve conhecer o departamento de finanças e pouco mais.
De qualquer maneira, estes problemas todos que existem em Lisboa acabam por ser como que uma fatalidade. Sabe-se que serão sempre os grandes partidos a gerir a câmara…
Não é uma fatalidade. A oposição, no passado, não era oposição. Era só no papel. A minha entrada aqui pelo menos obriga as pessoas a responder. Digo-o sem modéstias.
Entrou na câmara como vereador e conseguiu isso. Imagine agora que os lisboetas em peso decidiam votar em si e era eleito presidente. O que é que acontecia à câmara?
Acho que era o melhor que podia acontecer a Lisboa. A primeira coisa que fazia era tornar a câmara completamente transparente. Por exemplo, no caso Bragaparques… Com este escândalo, pedi a lista de todos os negócios que a câmara tem com o Bragaparques e ainda não me deram. Não é normal. Nem devia ser preciso pedir.
Como interpreta que um colega do executivo o insulte e insista em não lhe dar a documentação que pediu?
Não tem, de facto, cultura nenhuma de transparência. Prefere insultar, como se pedir coisas destas não fosse normal. Mas já me insultavam antes de ser vereador, porque já pedia muitas coisas. Mas não peço assim tantas coisas como isso. Por exemplo, o vereador Fontão de Carvalho queixa-se de que eu faço muitos requerimentos. Fiz 19. Ele respondeu-me a cinco. Dá uma média de um por mês os requerimentos que fiz.
Ele vem do mundo da auditoria, que apela precisamente à transparência e ao rigor. À partida julgar-se-ia que era o tipo de pessoa indicada para conviver com esse tipo de exigência…
É engraçado dizer isso porque foram feitas auditorias a todas as empresas municipais. Muito bem. Mas não foram mostradas. Estou há um ano e meio à espera. Nem sequer sei quem foram os auditores.
Então para que são feitas as auditorias? Ainda se gastam uns largos milhares de euros a fazê-las…
Isso é que eu não percebo.
O senhor tem estado ligado à política, mas do lado, digamos assim, de fora. Se passasse para o lado de quem está no poder, não acha que acabava por ter de se adaptar às regras do jogo político?
Eu estou adaptado às regras. Mas há duas maneiras de fazer política. Numa delas faz-se um jogo, e nessas coisas eu não entro. As pessoas pensam muito mais nos interesses partidários do que propriamente nos interesses de Lisboa. Com a situação que estamos a atravessar agora, é óbvio que tem de haver uma mudança. Não se pode arrastar esta agonia, para continuar a jogar com os interesses partidários. Tem de haver uma mudança, no interesse da cidade. Não a pensar se tenho ou não candidato, se este é o momento ideal, para deixá-los fritar mais um bocadinho…
Acha que consegue quantificar, em percentagem, quanto é que perde a cidade por causa de ser palco de disputas políticas?
As disputas políticas são boas se se centrarem em Lisboa. Mas como não é isso que acontece, a cidade perde tudo, porque fica paralisada. Em vez de se estar a discutir e a resolver problemas, está-se a utilizar tácticas que têm como objectivo interesses partidários. A actuação da maioria que está na câmara é exemplo disso. Há uma resistência ao poder, no sentido de as pessoas estarem agarrados a ele. Ao longo deste ano e meio não foram cumpridas promessas praticamente nenhumas. Mas nem é só isso. Durante este tempo, houve uma série de casos que vieram a público que demonstram a falta de transparência que existe, a falta de solução para os problemas e muita irresponsabilidade.
Acha que a população de Lisboa tem noção disso? Ou seja, se houvesse eleições rapidamente, acha que alguma coisa iria mudar?
Acho que sim. Quem está à frente da câmara mudava de certeza e só isso era um alívio.
Mas por uma grande hecatombe que houvesse, muito provavelmente o PS e o PSD voltariam a ter uma percentagem muito significativa dos votos, mais ou menos na linha do costume. Os cidadãos votam sempre no mesmo tipo de pessoas…
Acho que a próxima liderança da câmara já não conseguirá ser tão irresponsável como a actual. Acho que este ano e meio serviu para provar que é mesmo preciso mudar. É preciso mudar os partidos, mas, sobretudo, é preciso mudar a política para a cidade. É preciso pensar em prioridades. Há coisas inadmissíveis. Temos bairros em Lisboa completamente degradados, muitos deles ao lado de urbanizações de luxo. As regras urbanísticas exigem que se compense, em benefício da câmara, ou em terrenos ou dinheiro. Normalmente, as compensações que existem são uma piscina ou um equipamento qualquer desse género. Mas em muitos sítios a compensação devia ser a recuperação de um bairro.
Falávamos dos jogos políticos que podem fazer a cidade perder. O que é pior para a cidade, esses jogos partidários, a incompetência ou todos os grupos e interesses que circulam à volta?
As três coisas. Por exemplo, muitos dos vereadores actualmente no executivo são agentes partidários. O que não quer dizer que sejam competentes nem que sejam incompetentes. Mas há visivelmente grande incompetência de alguns vereadores. Depois, há um modo de olhar para a cidade... Eu falo do vereador Fontão de Carvalho, que até percebe de finanças...
Tem, portanto, competências técnicas…
Exactamente. Não é incompetente. Mas, politicamente, o tipo de prioridades que escolhe é contrário aos interesses da cidade, ainda que, provavelmente, ele julgue que não. Ele prefere arranjar receitas para a câmara, para tecnicamente compensar a economia da câmara, através do urbanismo, do que procurar outro tipo de receitas ou trocas. É um bom técnico, mas não para estar como vereador da câmara, porque para isso não chega ser um bom técnico. É preciso ter responsabilidade política.
Mas já foi escolhido por vários partidos…
Pois é. Eu nunca o escolheria. É um bom técnico para estar no departamento a fazer contas. Mas nada que envolva decisão política. Para se ser um bom gestor o mais importante é saber gerir bem as pessoas e as prioridades, e não tanto o dinheiro.
Já entrevistámos Carmona Rodrigues, como presidente da câmara, e em relação às 10 ou 11 mil pessoas da câmara ele disse que era o capitão de equipa. Que comentário é que isto lhe sugere?
Para se ser um capitão de equipa é preciso três coisas. Uma é conhecer as pessoas. Depois, um bom capitão de equipa nunca engana os seus colegas. E consegue unir a sua equipa. Carmona Rodrigues não faz nenhuma destas três coisas.
Então por que é que acha que ele disse aquilo?
Provavelmente foi capitão de uma equipa de rugby e conseguiu fazer isso, mas aqui na câmara é diferente.
Uma ideia muito associada às câmaras é a de corrupção, principalmente pelas ligações ditas perigosas com a construção civil e o futebol. Como vê essa situação?
Com muita preocupação. É preciso haver um combate sério à corrupção, coisa que não tem havido. A actual maioria da câmara de Lisboa também não tem dado passos nenhuns nesse sentido. Um caso que se passou recentemente é paradigmático. Foi constituído arguido um director municipal. Já apareceram nos jornais escutas desse director, que terá dito ao senhor da Bragaparques que me queria esmifrar o dinheiro todo. Esse homem foi o presidente do júri da hasta pública dos terrenos da Feira Popular. Quem é que a câmara depois mandou à assembleia municipal para discutir o problema do Parque Mayer? Esse mesmo director municipal. Quando sabemos que foi constituída arguida uma vereadora que suspendeu o seu mandato. Acredito em presunção da inocência até prova em contrário, mas logo este senhor a ir falar à assembleia…
Como é que uma situação dessas é possível?
Não há responsabilidade nem vontade política para se resolver os assuntos. Como é que se admite que este senhor continue a exercer funções e vá discutir para a assembleia municipal o problema do Parque Mayer, quando ele é um dos protagonistas da polémica?
Confia na justiça para a resolução deste caso, que parece gravíssimo?
Há muitas pressões políticas sobre o sistema judicial, mas eu ainda acredito na justiça. Portanto, tenho esperança de que este caso da Bragaparques, em relação à corrupção que tentou exercer sobre mim, acabe por se resolver. Não tenho dúvidas de que vai a tribunal.
Dizem agora que puseram o seu irmão em tribunal. Já houve uma espécie de contra-ataque?
Sim, mas um contra-ataque sem base nenhuma. É tão fácil dizermos as coisas… Por isso é que a corrupção é muito difícil de combater, e por isso é que este caso é muito importante. A prova está toda de um lado, não é o que se disse e o que não se disse, está lá a prova e foi validada por um juiz. E foi a Polícia Judiciária que fez as gravações das conversas.
É realmente uma situação fora de comum…
Completamente fora de comum, o que também é estranho. É a primeira denúncia de um vereador autárquico, que diz «este senhor tentou corromper-me». E das duas uma, ou nós acreditamos que foi a primeira vez que isto aconteceu em 30 anos de poder autárquico, ou não. Eu não acredito que tenha sido a primeira vez.
Estes casos não se resolvem mais por falta de vontade, ou será uma espécie de fatalidade?
Tem de haver vontade. E resta saber se muitas das coisas não têm a ver com o financiamento de partidos políticos.
O que é que acontecia à sociedade portuguesa se houvesse uma limpeza geral?
Era muito melhor, era tudo mais transparente.
E depois conseguia arranjar pessoas para todos os lugares? Presidentes, vereadores, directores...
Há tanta gente… A maior parte das pessoas é honesta.
Mas fica a ideia de que as pessoas que realmente são honestas e que têm capacidade para fazer as coisas como deve ser não se querem meter na política, porque já sabem como funciona…
A política tem este problema de as pessoas serem bem ou mal remuneradas. Esse é que é o problema…
Acha que passa por aí?
Passa essencialmente por aí. E depois é um problema de convicções. Há aparelhos partidários que estão de facto muito viciados. E isso tem de acabar. Não estou a falar das pessoas individualmente, mas há aqui um vício… Acho que é fácil combater a corrupção, tem é de haver vontade politica para isso. E a primeira coisa é ser transparente. Não haver dossiers fechados, na gaveta. Tem de haver sempre informação disponível em tempo útil para as pessoas. Há cidades na Alemanha, e noutros países, onde os cidadãos é que decidem onde se põe o caixote do lixo, se é bom ou não é bom para o seu quarteirão ou bairro, se o posto de correios deve ser ali ou acolá.
Como é que consegue vender uma coisa assim em Portugal?
Então não consigo?! Por isso é que eu digo que tem de ser a administração. Ela é que tem de incentivar. A primeira regra para combater a corrupção é a transparência, depois é ter regras muito simples. Nós temos sempre a mania de dizer mal dos construtores civis. Há construtores civis óptimos. Aquilo que os construtores civis querem é que as regras sejam claras, e o problema é que as regras nunca são claras, há sempre uma fuga, há sempre um amigo ali e não sei o quê. Se as regras forem claras, é bom para os construtores civis.
Com essa visão das coisas, não acha que é um pouco uma ave rara na política portuguesa?
Acho que não. Há imensa gente assim.
As pessoas estão a ir embora de Lisboa, é pelo menos o que passa para a comunicação social…
Mas é verdade. Sabem que a previsão é de que saiam mais 10.000 pessoas nos próximos dois anos?
Pois, mas há outra coisa menos falada… As empresas também estão a ir embora. Vão para Oeiras, por exemplo. Isso preocupa-o?
A política urbanística dos sucessivos executivos municipais de Lisboa não tem sido eficaz para inverter a situação. Nós temos em discussão uma proposta relacionada com os fogos devolutos, que são 70.000 e que estão à espera da especulação imobiliária. Se começarem a ser taxados de uma maneira superior àqueles que estão ocupados, podem entrar no mercado. Porque o problema tem a ver com o preço. As pessoas saem de Lisboa porque é mais barato viver em Sacavém, na Amadora ou em Almada.
E as empresas? Acaba por ser o mesmo, mas a outro nível…
Exactamente. Lisboa sempre foi uma cidade cosmopolita onde viveram todos os tipos de classes nos mesmos sítios Talvez o último sítio onde isso se sente seja a Avenida de Roma. Aí vive a burguesia, mas há habitação social ao lado, na Avenida da Igreja. Mas foi o último bairro, feito nos anos 50 do século passado. Desde essa altura, Lisboa tem perdido população, porque não tem havido políticas para ter uma cidade integrada. Fizeram-se os guetos para as pessoas que saíram das barracas… Acabar com as barracas, bem feito; mas o tipo de bairros que se fizeram foi uma coisa péssima socialmente, algo que provavelmente, se não houver uma intervenção da câmara ou até da administração central, levará a graves problemas sociais. Outro exemplo, fiz uma proposta para que em todos os loteamentos fosse obrigatório que uma parte substancial se fizesse a custos controlados. É algo que já acontece em cidades francesas, ou em Nova Iorque. Nova Iorque, nesse aspecto, é uma cidade com muito mais preocupações sociais do que Lisboa.
José Sá Fernandes
Em busca da cidade transparente
Em busca da cidade transparente
Há muitos anos que José Sá Fernandes se destaca na vida pública lisboeta por denunciar casos de irregularidades, inclusive da própria câmara municipal. Advogado de profissão, depois de chegar a vereador passou a dedicar às múltiplas actividades que o cargo implica cerca de 10 horas por dia, apesar de não ser remunerado. Procura, acima de tudo, a transparência para a gestão da cidade onde nasceu.
O que significa para si ter um trabalho directamente ligado a Lisboa? Sempre se mostrou preocupado com o rumo da cidade, mas agora tem um cargo que lhe traz maior responsabilidade…
Há uma mudança, de facto. Ser vereador, ainda que sem funções executivas – ou seja, não tenho responsabilidade nenhuma nas asneiras que se andam a fazer em Lisboa –, dá-me oportunidade de ter acesso quer a vários dossiers, quer a uma série de sítios da cidade aos quais não tinha acesso enquanto cidadão. Tenho aprendido imenso ao longo deste ano e meio como vereador. Trabalho cerca de 10 horas por dia para Lisboa, sem ser remunerado, e depois vou para o meu escritório.
Referiu que não é remunerado pelo trabalho que desenvolve na câmara. Como é que lida com isso?
À partida já sabia quais eram as condições, portanto não me posso queixar.
Mas na prática como é que lida com a situação? O tempo de que dispõe para se dedicar à advocacia acaba por ser bem menor do que antes…
É muito simples. Das nove da manhã até ao fim da tarde dedico-me à actividade na câmara, e depois vou para o escritório, porque continuo a ser advogado. Antes de ser advogado dedicava já alguns dias a Lisboa, a questões de defesa do património ou ambientais. Com o cargo de vereador foi preciso acrescentar mais umas horas, e cá estou. Porque eu gosto mesmo de fazer isto.
Acha que essa situação é justa. Se desenvolve um trabalho em benefício da cidade, não devia ser pago por isso?
São estas as condições, e como disse eram conhecidas à partida. Portanto, quem assume o cargo de vereador não se pode limitar a ir às reuniões que se realizam três vezes por mês, sempre à quarta-feira.
Tem uma equipa a trabalhar consigo. Essa é remunerada…
Sim. Isso faz parte das condições para se conseguir exercer o cargo de vereador.
Mas não é muito normal, em Portugal, na maioria dos municípios, existirem tais condições. Como é que isso é possível em Lisboa?
O que a lei diz é que se deve dar condições para que uma pessoa possa exercer o cargo de vereador da oposição. Entendeu-se, desde o tempo do Jorge Sampaio, que essas condições passavam por ter um gabinete, alguns assessores – porque as áreas da câmara são variadíssimas, desde as finanças à acção social, passando pelo património, pela educação, pelo desporto ou pelo urbanismo, e é preciso haver apoio. É impossível uma pessoa sozinha estar habilitada para responder a todas as matérias discutidas numa reunião de câmara. Mas, do conhecimento que tenho, é verdade que o município de Lisboa é o que dá melhores condições à oposição.
Como seria o seu papel se não tivesse esse apoio?
Seria mais limitado.
E como é que iria actuar?
Acho que actuava da mesma maneira. Não tinha era tanta capacidade de intervenção. Assim, conheço os dossiers à lupa. Todos. De outra maneira, continuariam a ser analisados à lupa, porque acho que assim é que tem de ser, mas não podia vê-los todos. Tinha que definir prioridades.
Com a imagem que havia da câmara e da sua posição em relação a ela, não foi quase como pôr o lobo a dormir no galinheiro?
Acho que o que se tem provado é que o lobo continua aí.
Mas se não tivesse esta maior facilidade de movimentação os casos que denunciou teriam vindo a público?
No caso do Parque Mayer, denunciei a situação e coloquei uma acção antes de assumir este cargo. Os casos que tenho levantado, o túnel do Marquês, o Terreiro do Paço, que está em obras há 10 anos, o Convento da Graça, etc, todos esses problemas foram levantados há muito tempo.
São os seus primeiros casos…
Sim, o do Terreiro do Paço foi o primeiro. E o do túnel do Marquês foi o último, enquanto cidadão. Depois ainda foi o negócio do Parque Mayer… Foi importante vir para vereador porque senão tinha descoberto para aí metade das coisas que se passavam na EPUL. Não me tinha apercebido, por exemplo, do que considero ser um escândalo, que se passou no Vale de Santo António, que é um dos sítios envolvido em grande polémica em Lisboa.
Acha que faz sentido uma cidade como Lisboa ser gerida pelos órgãos de uma instituição como uma câmara municipal e respectivas empresas que vão aparecendo na sua órbita? Não lhe parece que a cidade anda mais depressa do que este tipo de instituições e que precisa de outras respostas?
Acho que pode funcionar muito bem. O problema é haver vontade de mudar este paradigma.
Então o problema passa sobretudo pela falta de vontade, não é uma questão de capacidade…
Agora agravou-se. Mas há uma prática de gestão autárquica que tem sido péssima. E as empresas municipais têm a ver com isso, porque infelizmente têm servido muito para distribuição de cargos pelos partidos políticos.
Como é que se pode mudar isso?
No caso de algumas empresas municipais, nem sequer há razão de existirem. Em Lisboa existe uma empresa municipal com três administradores e quatro funcionários. E há serviços da câmara que podiam facilmente substituía-la.
Não lhe parece que só se nota alguma apetência para fazer mudanças quando a exposição dos casos torna o óbvio vergonhoso aos olhos do cidadão?
Para quem está no poder é de facto vergonhoso que só nessas circunstâncias é que se pense em mudar, como se só então é que se apercebessem da má gestão. Mas infelizmente é assim. E existem tantas situações que era fácil mudar se houvesse vontade política… Por exemplo, é preciso reestruturar os serviços, interligando-os melhor. Mas praticamente nenhum vereador vai aos serviços da câmara. Não conhecem as pessoas.
Isso é um mal dos vereadores a tempo inteiro, dos da oposição ou de todos?
Nesse aspecto, acho que é igual. E algumas pessoas já estão na vereação há bastante tempo.
Por exemplo, o vereador, e vice-presidente, Carlos Fontão de Carvalho, que tem um percurso na câmara já longo, inclusive sendo eleito em listas de vários partidos?
Sim, esse deve conhecer o departamento de finanças e pouco mais.
De qualquer maneira, estes problemas todos que existem em Lisboa acabam por ser como que uma fatalidade. Sabe-se que serão sempre os grandes partidos a gerir a câmara…
Não é uma fatalidade. A oposição, no passado, não era oposição. Era só no papel. A minha entrada aqui pelo menos obriga as pessoas a responder. Digo-o sem modéstias.
Entrou na câmara como vereador e conseguiu isso. Imagine agora que os lisboetas em peso decidiam votar em si e era eleito presidente. O que é que acontecia à câmara?
Acho que era o melhor que podia acontecer a Lisboa. A primeira coisa que fazia era tornar a câmara completamente transparente. Por exemplo, no caso Bragaparques… Com este escândalo, pedi a lista de todos os negócios que a câmara tem com o Bragaparques e ainda não me deram. Não é normal. Nem devia ser preciso pedir.
Como interpreta que um colega do executivo o insulte e insista em não lhe dar a documentação que pediu?
Não tem, de facto, cultura nenhuma de transparência. Prefere insultar, como se pedir coisas destas não fosse normal. Mas já me insultavam antes de ser vereador, porque já pedia muitas coisas. Mas não peço assim tantas coisas como isso. Por exemplo, o vereador Fontão de Carvalho queixa-se de que eu faço muitos requerimentos. Fiz 19. Ele respondeu-me a cinco. Dá uma média de um por mês os requerimentos que fiz.
Ele vem do mundo da auditoria, que apela precisamente à transparência e ao rigor. À partida julgar-se-ia que era o tipo de pessoa indicada para conviver com esse tipo de exigência…
É engraçado dizer isso porque foram feitas auditorias a todas as empresas municipais. Muito bem. Mas não foram mostradas. Estou há um ano e meio à espera. Nem sequer sei quem foram os auditores.
Então para que são feitas as auditorias? Ainda se gastam uns largos milhares de euros a fazê-las…
Isso é que eu não percebo.
O senhor tem estado ligado à política, mas do lado, digamos assim, de fora. Se passasse para o lado de quem está no poder, não acha que acabava por ter de se adaptar às regras do jogo político?
Eu estou adaptado às regras. Mas há duas maneiras de fazer política. Numa delas faz-se um jogo, e nessas coisas eu não entro. As pessoas pensam muito mais nos interesses partidários do que propriamente nos interesses de Lisboa. Com a situação que estamos a atravessar agora, é óbvio que tem de haver uma mudança. Não se pode arrastar esta agonia, para continuar a jogar com os interesses partidários. Tem de haver uma mudança, no interesse da cidade. Não a pensar se tenho ou não candidato, se este é o momento ideal, para deixá-los fritar mais um bocadinho…
Acha que consegue quantificar, em percentagem, quanto é que perde a cidade por causa de ser palco de disputas políticas?
As disputas políticas são boas se se centrarem em Lisboa. Mas como não é isso que acontece, a cidade perde tudo, porque fica paralisada. Em vez de se estar a discutir e a resolver problemas, está-se a utilizar tácticas que têm como objectivo interesses partidários. A actuação da maioria que está na câmara é exemplo disso. Há uma resistência ao poder, no sentido de as pessoas estarem agarrados a ele. Ao longo deste ano e meio não foram cumpridas promessas praticamente nenhumas. Mas nem é só isso. Durante este tempo, houve uma série de casos que vieram a público que demonstram a falta de transparência que existe, a falta de solução para os problemas e muita irresponsabilidade.
Acha que a população de Lisboa tem noção disso? Ou seja, se houvesse eleições rapidamente, acha que alguma coisa iria mudar?
Acho que sim. Quem está à frente da câmara mudava de certeza e só isso era um alívio.
Mas por uma grande hecatombe que houvesse, muito provavelmente o PS e o PSD voltariam a ter uma percentagem muito significativa dos votos, mais ou menos na linha do costume. Os cidadãos votam sempre no mesmo tipo de pessoas…
Acho que a próxima liderança da câmara já não conseguirá ser tão irresponsável como a actual. Acho que este ano e meio serviu para provar que é mesmo preciso mudar. É preciso mudar os partidos, mas, sobretudo, é preciso mudar a política para a cidade. É preciso pensar em prioridades. Há coisas inadmissíveis. Temos bairros em Lisboa completamente degradados, muitos deles ao lado de urbanizações de luxo. As regras urbanísticas exigem que se compense, em benefício da câmara, ou em terrenos ou dinheiro. Normalmente, as compensações que existem são uma piscina ou um equipamento qualquer desse género. Mas em muitos sítios a compensação devia ser a recuperação de um bairro.
Falávamos dos jogos políticos que podem fazer a cidade perder. O que é pior para a cidade, esses jogos partidários, a incompetência ou todos os grupos e interesses que circulam à volta?
As três coisas. Por exemplo, muitos dos vereadores actualmente no executivo são agentes partidários. O que não quer dizer que sejam competentes nem que sejam incompetentes. Mas há visivelmente grande incompetência de alguns vereadores. Depois, há um modo de olhar para a cidade... Eu falo do vereador Fontão de Carvalho, que até percebe de finanças...
Tem, portanto, competências técnicas…
Exactamente. Não é incompetente. Mas, politicamente, o tipo de prioridades que escolhe é contrário aos interesses da cidade, ainda que, provavelmente, ele julgue que não. Ele prefere arranjar receitas para a câmara, para tecnicamente compensar a economia da câmara, através do urbanismo, do que procurar outro tipo de receitas ou trocas. É um bom técnico, mas não para estar como vereador da câmara, porque para isso não chega ser um bom técnico. É preciso ter responsabilidade política.
Mas já foi escolhido por vários partidos…
Pois é. Eu nunca o escolheria. É um bom técnico para estar no departamento a fazer contas. Mas nada que envolva decisão política. Para se ser um bom gestor o mais importante é saber gerir bem as pessoas e as prioridades, e não tanto o dinheiro.
Já entrevistámos Carmona Rodrigues, como presidente da câmara, e em relação às 10 ou 11 mil pessoas da câmara ele disse que era o capitão de equipa. Que comentário é que isto lhe sugere?
Para se ser um capitão de equipa é preciso três coisas. Uma é conhecer as pessoas. Depois, um bom capitão de equipa nunca engana os seus colegas. E consegue unir a sua equipa. Carmona Rodrigues não faz nenhuma destas três coisas.
Então por que é que acha que ele disse aquilo?
Provavelmente foi capitão de uma equipa de rugby e conseguiu fazer isso, mas aqui na câmara é diferente.
Uma ideia muito associada às câmaras é a de corrupção, principalmente pelas ligações ditas perigosas com a construção civil e o futebol. Como vê essa situação?
Com muita preocupação. É preciso haver um combate sério à corrupção, coisa que não tem havido. A actual maioria da câmara de Lisboa também não tem dado passos nenhuns nesse sentido. Um caso que se passou recentemente é paradigmático. Foi constituído arguido um director municipal. Já apareceram nos jornais escutas desse director, que terá dito ao senhor da Bragaparques que me queria esmifrar o dinheiro todo. Esse homem foi o presidente do júri da hasta pública dos terrenos da Feira Popular. Quem é que a câmara depois mandou à assembleia municipal para discutir o problema do Parque Mayer? Esse mesmo director municipal. Quando sabemos que foi constituída arguida uma vereadora que suspendeu o seu mandato. Acredito em presunção da inocência até prova em contrário, mas logo este senhor a ir falar à assembleia…
Como é que uma situação dessas é possível?
Não há responsabilidade nem vontade política para se resolver os assuntos. Como é que se admite que este senhor continue a exercer funções e vá discutir para a assembleia municipal o problema do Parque Mayer, quando ele é um dos protagonistas da polémica?
Confia na justiça para a resolução deste caso, que parece gravíssimo?
Há muitas pressões políticas sobre o sistema judicial, mas eu ainda acredito na justiça. Portanto, tenho esperança de que este caso da Bragaparques, em relação à corrupção que tentou exercer sobre mim, acabe por se resolver. Não tenho dúvidas de que vai a tribunal.
Dizem agora que puseram o seu irmão em tribunal. Já houve uma espécie de contra-ataque?
Sim, mas um contra-ataque sem base nenhuma. É tão fácil dizermos as coisas… Por isso é que a corrupção é muito difícil de combater, e por isso é que este caso é muito importante. A prova está toda de um lado, não é o que se disse e o que não se disse, está lá a prova e foi validada por um juiz. E foi a Polícia Judiciária que fez as gravações das conversas.
É realmente uma situação fora de comum…
Completamente fora de comum, o que também é estranho. É a primeira denúncia de um vereador autárquico, que diz «este senhor tentou corromper-me». E das duas uma, ou nós acreditamos que foi a primeira vez que isto aconteceu em 30 anos de poder autárquico, ou não. Eu não acredito que tenha sido a primeira vez.
Estes casos não se resolvem mais por falta de vontade, ou será uma espécie de fatalidade?
Tem de haver vontade. E resta saber se muitas das coisas não têm a ver com o financiamento de partidos políticos.
O que é que acontecia à sociedade portuguesa se houvesse uma limpeza geral?
Era muito melhor, era tudo mais transparente.
E depois conseguia arranjar pessoas para todos os lugares? Presidentes, vereadores, directores...
Há tanta gente… A maior parte das pessoas é honesta.
Mas fica a ideia de que as pessoas que realmente são honestas e que têm capacidade para fazer as coisas como deve ser não se querem meter na política, porque já sabem como funciona…
A política tem este problema de as pessoas serem bem ou mal remuneradas. Esse é que é o problema…
Acha que passa por aí?
Passa essencialmente por aí. E depois é um problema de convicções. Há aparelhos partidários que estão de facto muito viciados. E isso tem de acabar. Não estou a falar das pessoas individualmente, mas há aqui um vício… Acho que é fácil combater a corrupção, tem é de haver vontade politica para isso. E a primeira coisa é ser transparente. Não haver dossiers fechados, na gaveta. Tem de haver sempre informação disponível em tempo útil para as pessoas. Há cidades na Alemanha, e noutros países, onde os cidadãos é que decidem onde se põe o caixote do lixo, se é bom ou não é bom para o seu quarteirão ou bairro, se o posto de correios deve ser ali ou acolá.
Como é que consegue vender uma coisa assim em Portugal?
Então não consigo?! Por isso é que eu digo que tem de ser a administração. Ela é que tem de incentivar. A primeira regra para combater a corrupção é a transparência, depois é ter regras muito simples. Nós temos sempre a mania de dizer mal dos construtores civis. Há construtores civis óptimos. Aquilo que os construtores civis querem é que as regras sejam claras, e o problema é que as regras nunca são claras, há sempre uma fuga, há sempre um amigo ali e não sei o quê. Se as regras forem claras, é bom para os construtores civis.
Com essa visão das coisas, não acha que é um pouco uma ave rara na política portuguesa?
Acho que não. Há imensa gente assim.
As pessoas estão a ir embora de Lisboa, é pelo menos o que passa para a comunicação social…
Mas é verdade. Sabem que a previsão é de que saiam mais 10.000 pessoas nos próximos dois anos?
Pois, mas há outra coisa menos falada… As empresas também estão a ir embora. Vão para Oeiras, por exemplo. Isso preocupa-o?
A política urbanística dos sucessivos executivos municipais de Lisboa não tem sido eficaz para inverter a situação. Nós temos em discussão uma proposta relacionada com os fogos devolutos, que são 70.000 e que estão à espera da especulação imobiliária. Se começarem a ser taxados de uma maneira superior àqueles que estão ocupados, podem entrar no mercado. Porque o problema tem a ver com o preço. As pessoas saem de Lisboa porque é mais barato viver em Sacavém, na Amadora ou em Almada.
E as empresas? Acaba por ser o mesmo, mas a outro nível…
Exactamente. Lisboa sempre foi uma cidade cosmopolita onde viveram todos os tipos de classes nos mesmos sítios Talvez o último sítio onde isso se sente seja a Avenida de Roma. Aí vive a burguesia, mas há habitação social ao lado, na Avenida da Igreja. Mas foi o último bairro, feito nos anos 50 do século passado. Desde essa altura, Lisboa tem perdido população, porque não tem havido políticas para ter uma cidade integrada. Fizeram-se os guetos para as pessoas que saíram das barracas… Acabar com as barracas, bem feito; mas o tipo de bairros que se fizeram foi uma coisa péssima socialmente, algo que provavelmente, se não houver uma intervenção da câmara ou até da administração central, levará a graves problemas sociais. Outro exemplo, fiz uma proposta para que em todos os loteamentos fosse obrigatório que uma parte substancial se fizesse a custos controlados. É algo que já acontece em cidades francesas, ou em Nova Iorque. Nova Iorque, nesse aspecto, é uma cidade com muito mais preocupações sociais do que Lisboa.
Alimenta-se do capitalismo…
Mas obriga a que qualquer loteamento tenha uma percentagem feita a custos controlados, exactamente para viverem na mesma zona os pobres, os remediados e os ricos. E é uma cidade pujante. Mas Lisboa não pode imitar nenhuma cidade, pode é aprender com outras cidades em termos da maneira como resolveram alguns problemas sociais e urbanísticos, no sentido de juntar pessoas. Eu não quero nenhuma Nova Iorque em Lisboa, mas quero aproveitar uma lei que é boa, e que aliás Barcelona também tem. Apresentei a proposta na câmara e ficou tudo em alvoroço. Acham bem, mas como fui eu que apresentei...
Nas reuniões de câmara, como é que o tratam?
Enfim, há este lado partidário completamente cretino. Como fui eu que apresentei… Em campanha eleitoral toda a gente disse que o plano verde de Gonçalo Ribeiro Teles era uma maravilha. Mas depois foi chumbado. Disseram que não era o momento oportuno. A política, nesse aspecto, não é serena, nem honesta, nem leal.
Por isso é que lhe falámos em fatalidade.
Mas não é uma fatalidade. Não pode ser. Por exemplo, as pessoas têm a mania de que eu estou sempre contra tudo. Mas eu aprovei a maior parte das propostas feitas na câmara. Por exemplo, as salas de injecção assistida, que é um problema social grave... Rejeitaram duas propostas minhas e depois apresentaram eles uma, eles a maioria. Mas eu não me importei e aprovei-a. Para mim não importa ser o A ou o B a apresentar, o que me interessa é se a proposta é boa ou não. Não aprovo é outras coisas, como os exemplos destes últimos tempos. Isso eu não aprovo, porque são as coisas mais estruturantes em termos de dar cabo disto tudo.
Acha que a oposição fica incomodada pelo facto de o senhor apresentar tantas propostas?
Isso é o lado positivo. Antes a aposição não apresentava propostas. Depois de eu aparecer perceberam que isso também é uma maneira de fazer política. E as minhas propostas, ou melhor, as propostas da minha equipa, são apresentadas de uma maneira profissional, não é mandar umas bocas. Por exemplo, estudámos as bibliotecas de Lisboa à lupa, falando com as pessoas de todas elas. Curiosamente, o vereador da cultura não conhecia praticamente nenhuma biblioteca, o que é estranho. Mas eu até simpatizo com o vereador da cultura, e já lhe disse estas coisas.
Acha que se pudesse dedicar-se à câmara a tempo inteiro, em vez das tais 10 horas diárias antes de ir para o seu escritório, poderia fazer mais por Lisboa? Se chegasse ao poder…
Eu não tenho pretensões de chegar ao poder.
Não falamos do poder pelo poder, mas sim no sentido de ser uma ferramenta para fazer com que as coisas aconteçam?
Eu não vou desistir da ideia de que isto pode mudar, seja no poder, seja fora do poder. Não vou desistir.
Mas se se dedicasse a tempo inteiro…
Sim, quanto mais horas melhor.
José Sá Fernandes (n. Lisboa, 1958), licenciado em Direito e advogado desde 1988, é vereador da oposição na Câmara Municipal de Lisboa (eleito como independente nas listas do Bloco de Esquerda nas eleições de nove de Outubro de 2005). Já antes se destacava pela actividade cívica. Entre as suas intervenções individuais no concelho de Lisboa, encontram-se, por exemplo, o Projecto da Administração do Porto de Lisboa para aquilo que denomina como «a construção da absurda oitava colina», o Projecto Alcântara XXI, o Terreiro do Paço (estacionamento, piso, arcadas e metropolitano), o Teatro D. Maria II, o túnel do Marquês e o Parque Mayer. Mas a sua intervenção não se tem limitado à capital. O Algarve, Almada, a Costa Vicentina, Grândola, Monsaraz, Sesimbra e Setúbal, entre outras zonas, têm suscitado também o seu interesse. Também tem apoiado grupos de moradores, movimentos e associações.
Mas obriga a que qualquer loteamento tenha uma percentagem feita a custos controlados, exactamente para viverem na mesma zona os pobres, os remediados e os ricos. E é uma cidade pujante. Mas Lisboa não pode imitar nenhuma cidade, pode é aprender com outras cidades em termos da maneira como resolveram alguns problemas sociais e urbanísticos, no sentido de juntar pessoas. Eu não quero nenhuma Nova Iorque em Lisboa, mas quero aproveitar uma lei que é boa, e que aliás Barcelona também tem. Apresentei a proposta na câmara e ficou tudo em alvoroço. Acham bem, mas como fui eu que apresentei...
Nas reuniões de câmara, como é que o tratam?
Enfim, há este lado partidário completamente cretino. Como fui eu que apresentei… Em campanha eleitoral toda a gente disse que o plano verde de Gonçalo Ribeiro Teles era uma maravilha. Mas depois foi chumbado. Disseram que não era o momento oportuno. A política, nesse aspecto, não é serena, nem honesta, nem leal.
Por isso é que lhe falámos em fatalidade.
Mas não é uma fatalidade. Não pode ser. Por exemplo, as pessoas têm a mania de que eu estou sempre contra tudo. Mas eu aprovei a maior parte das propostas feitas na câmara. Por exemplo, as salas de injecção assistida, que é um problema social grave... Rejeitaram duas propostas minhas e depois apresentaram eles uma, eles a maioria. Mas eu não me importei e aprovei-a. Para mim não importa ser o A ou o B a apresentar, o que me interessa é se a proposta é boa ou não. Não aprovo é outras coisas, como os exemplos destes últimos tempos. Isso eu não aprovo, porque são as coisas mais estruturantes em termos de dar cabo disto tudo.
Acha que a oposição fica incomodada pelo facto de o senhor apresentar tantas propostas?
Isso é o lado positivo. Antes a aposição não apresentava propostas. Depois de eu aparecer perceberam que isso também é uma maneira de fazer política. E as minhas propostas, ou melhor, as propostas da minha equipa, são apresentadas de uma maneira profissional, não é mandar umas bocas. Por exemplo, estudámos as bibliotecas de Lisboa à lupa, falando com as pessoas de todas elas. Curiosamente, o vereador da cultura não conhecia praticamente nenhuma biblioteca, o que é estranho. Mas eu até simpatizo com o vereador da cultura, e já lhe disse estas coisas.
Acha que se pudesse dedicar-se à câmara a tempo inteiro, em vez das tais 10 horas diárias antes de ir para o seu escritório, poderia fazer mais por Lisboa? Se chegasse ao poder…
Eu não tenho pretensões de chegar ao poder.
Não falamos do poder pelo poder, mas sim no sentido de ser uma ferramenta para fazer com que as coisas aconteçam?
Eu não vou desistir da ideia de que isto pode mudar, seja no poder, seja fora do poder. Não vou desistir.
Mas se se dedicasse a tempo inteiro…
Sim, quanto mais horas melhor.
José Sá Fernandes (n. Lisboa, 1958), licenciado em Direito e advogado desde 1988, é vereador da oposição na Câmara Municipal de Lisboa (eleito como independente nas listas do Bloco de Esquerda nas eleições de nove de Outubro de 2005). Já antes se destacava pela actividade cívica. Entre as suas intervenções individuais no concelho de Lisboa, encontram-se, por exemplo, o Projecto da Administração do Porto de Lisboa para aquilo que denomina como «a construção da absurda oitava colina», o Projecto Alcântara XXI, o Terreiro do Paço (estacionamento, piso, arcadas e metropolitano), o Teatro D. Maria II, o túnel do Marquês e o Parque Mayer. Mas a sua intervenção não se tem limitado à capital. O Algarve, Almada, a Costa Vicentina, Grândola, Monsaraz, Sesimbra e Setúbal, entre outras zonas, têm suscitado também o seu interesse. Também tem apoiado grupos de moradores, movimentos e associações.
Ainda esta manhã
sexta-feira, 20 de abril de 2007
Textos sobre livros – 24
O texto que escrevi quando há dois anos saiu o mais recente volume de aventuras de Astérix, em nova editora e com umas opções esquisitas de tradução.
Livro: «Astérix – O Céu Cai-lhe em Cima da Cabeça», de René Goscinny/ Albert Uderzo (Edições ASA, 49 pp.)
Nem só os romanos são loucos
Pequenix, o gaulês
Trigésima segunda aventura dos irredutíveis gauleses, embora desta vez não tenham conseguido ser tão irredutíveis como isso; pelo menos no que a Portugal diz respeito, pois a verdade é que, assim sem mais nem menos, alguém se lembrou de mudar o nome a muitos deles e os gauleses nem ai nem ui. O protagonista ainda escapou, mas quem sabe se não estivemos perto de ter entre nós as aventuras de um gaulês chamado Pequenix?
Regresso em 2005 dos gauleses da pequena aldeia rodeada por quatro campos romanos, mas trata-se de um regresso com alterações esquisitas (para quem só tinha lido os álbuns da Meribérica). Depois de «Astérix e Latraviata» (2001), eis a trigésima segunda aventura do pequeno gaulês e do seu amigo gordo especialistas em menires (há ainda um outro álbum na colecção, um conjunto de pequenas histórias que foram sendo publicadas na imprensa ao longo de vários anos).
Esta nova aventura surge vinte e oito anos após a morte de René Goscinny, até essa altura o argumentista da série. É a oitavo criada apenas por Albert Uderzo, o desenhador e após 1980 também autor dos argumentos. Entre as primeiras vinte e quatro e as últimas oito há como que uma fronteira, ou melhor, um grande fosso. Aliás, «O Grande Fosso» (que Uderzo já associou ao Muro de Berlim) é precisamente o título da primeira aventura criada apenas por Uderzo, depois da morte de Goscinny em 1977, quando estava para sair o vigésimo quarto álbum, «Astérix Entre os Belgas».
Se os argumentos de Gosciny (cujo nome continua a aparecer nas capas) se centraram nos heróis e na própria aldeia gaulesa, contrapondo-lhes muitas vezes temas do nosso tempo, já a imaginação de Uderzo parece levar sempre a outros caminhos, que talvez não sejam os mais felizes. O aparecimento de extraterrestres nesta última aventura é mais um sinal disso, depois de termos dado de caras com os pais de Astérix e de Obélix e de termos conhecido a vida amorosa do cão Ideiafix (em «Astérix e Latraviata», álbum que homenageou Giuseppe Verdi, no centenário da sua morte, com o nome escolhido para a actriz romana que se transformou numa sósia de Falbala a sair de umas das famosas óperas do compositor italiano). E depois de outra homenagem, desta feita a Kirk Douglas, em «O Pesadelo de Obélix» (a trigésima aventura, de 1996), onde apareceu um tal Spartakis com a cara do actor norte-americano que no filme «Spartacus» desempenhou o papel do lendário escravo que chegou a fazer tremer Roma.
Com a tradição das homenagens, não é de estranhar mais uma agora, em «Astérix – «O Céu Cai-lhe em Cima da Cabeça». Trata-se de Walt Disney, sobre o qual Uderzo escreve: «permitiu, a mim e a alguns companheiros, cair no caldeirão de uma poção da qual só ele detinha o grande segredo». Os extraterrestres são criaturas inspiradas em personagens de Walt Disney («wendysitals», «superclones» que fazem de «xexérifes» ou «nagmas»); são eles o céu que cai em cima da cabeça de todos os gauleses (e dos romanos, já agora, para não falar dos piratas), não apenas de Astérix, como a tradução do título dá a entender.
A propósito de tradução… A mudança de editora implicou novas traduções para as aventuras de Astérix. Mudou muita coisa. Dois dos campos romanos que cercam a aldeia ficam na mesma, mas um terceiro passa de Babaorum a Babácomrum e o célebre Petibonum passa a Factotum. Coisa pouca, mas depois vêm as personagens, e aí é bem pior. Os dois expoentes máximos da mudança são o bardo e o chefe. O velho Abraracourcix passa, imagine-se, a Matasétix (?) e Assurancetourix muda para algo que supostamente deveria ter graça, Cacofonix. Panoramix, o druida, escapa, talvez por artes mágicas, mas do mesmo não se pode gabar o truculento Agecanonix (passa a Decanonix – enfim, o decano). Já o peixeiro Ordralfabetix passa Ordemalfabetix. O cão Ideiafix aguenta-se, assim como o dono, Obélix. E Astérix, a mesma coisa; mas quem sabe se não esteve para passar a qualquer coisa como Pequenix, assim como Obélix pode muito bem ter estado perto de ficar o resto da vida na nova editora condenado a ser o Gordix, ou, seguindo a lógica escolhida para o chefe, o Devorajavalixes, ou o Carregamenirixes. Os romanos, enfim, continuam a ser romanos.
Apesar destas mudanças, e dos caminhos da imaginação de Uderzo, é sempre de festejar cada regresso dos famosos gauleses. Depois de quatro anos sem aparecerem com novidades (tirando aquela colectânea de pequenas histórias, onde começou a trapalhada da mudança dos nomes), já se lhes notava a falta.
Livro: «Astérix – O Céu Cai-lhe em Cima da Cabeça», de René Goscinny/ Albert Uderzo (Edições ASA, 49 pp.)
Nem só os romanos são loucos
Pequenix, o gaulês
Trigésima segunda aventura dos irredutíveis gauleses, embora desta vez não tenham conseguido ser tão irredutíveis como isso; pelo menos no que a Portugal diz respeito, pois a verdade é que, assim sem mais nem menos, alguém se lembrou de mudar o nome a muitos deles e os gauleses nem ai nem ui. O protagonista ainda escapou, mas quem sabe se não estivemos perto de ter entre nós as aventuras de um gaulês chamado Pequenix?
Regresso em 2005 dos gauleses da pequena aldeia rodeada por quatro campos romanos, mas trata-se de um regresso com alterações esquisitas (para quem só tinha lido os álbuns da Meribérica). Depois de «Astérix e Latraviata» (2001), eis a trigésima segunda aventura do pequeno gaulês e do seu amigo gordo especialistas em menires (há ainda um outro álbum na colecção, um conjunto de pequenas histórias que foram sendo publicadas na imprensa ao longo de vários anos).
Esta nova aventura surge vinte e oito anos após a morte de René Goscinny, até essa altura o argumentista da série. É a oitavo criada apenas por Albert Uderzo, o desenhador e após 1980 também autor dos argumentos. Entre as primeiras vinte e quatro e as últimas oito há como que uma fronteira, ou melhor, um grande fosso. Aliás, «O Grande Fosso» (que Uderzo já associou ao Muro de Berlim) é precisamente o título da primeira aventura criada apenas por Uderzo, depois da morte de Goscinny em 1977, quando estava para sair o vigésimo quarto álbum, «Astérix Entre os Belgas».
Se os argumentos de Gosciny (cujo nome continua a aparecer nas capas) se centraram nos heróis e na própria aldeia gaulesa, contrapondo-lhes muitas vezes temas do nosso tempo, já a imaginação de Uderzo parece levar sempre a outros caminhos, que talvez não sejam os mais felizes. O aparecimento de extraterrestres nesta última aventura é mais um sinal disso, depois de termos dado de caras com os pais de Astérix e de Obélix e de termos conhecido a vida amorosa do cão Ideiafix (em «Astérix e Latraviata», álbum que homenageou Giuseppe Verdi, no centenário da sua morte, com o nome escolhido para a actriz romana que se transformou numa sósia de Falbala a sair de umas das famosas óperas do compositor italiano). E depois de outra homenagem, desta feita a Kirk Douglas, em «O Pesadelo de Obélix» (a trigésima aventura, de 1996), onde apareceu um tal Spartakis com a cara do actor norte-americano que no filme «Spartacus» desempenhou o papel do lendário escravo que chegou a fazer tremer Roma.
Com a tradição das homenagens, não é de estranhar mais uma agora, em «Astérix – «O Céu Cai-lhe em Cima da Cabeça». Trata-se de Walt Disney, sobre o qual Uderzo escreve: «permitiu, a mim e a alguns companheiros, cair no caldeirão de uma poção da qual só ele detinha o grande segredo». Os extraterrestres são criaturas inspiradas em personagens de Walt Disney («wendysitals», «superclones» que fazem de «xexérifes» ou «nagmas»); são eles o céu que cai em cima da cabeça de todos os gauleses (e dos romanos, já agora, para não falar dos piratas), não apenas de Astérix, como a tradução do título dá a entender.
A propósito de tradução… A mudança de editora implicou novas traduções para as aventuras de Astérix. Mudou muita coisa. Dois dos campos romanos que cercam a aldeia ficam na mesma, mas um terceiro passa de Babaorum a Babácomrum e o célebre Petibonum passa a Factotum. Coisa pouca, mas depois vêm as personagens, e aí é bem pior. Os dois expoentes máximos da mudança são o bardo e o chefe. O velho Abraracourcix passa, imagine-se, a Matasétix (?) e Assurancetourix muda para algo que supostamente deveria ter graça, Cacofonix. Panoramix, o druida, escapa, talvez por artes mágicas, mas do mesmo não se pode gabar o truculento Agecanonix (passa a Decanonix – enfim, o decano). Já o peixeiro Ordralfabetix passa Ordemalfabetix. O cão Ideiafix aguenta-se, assim como o dono, Obélix. E Astérix, a mesma coisa; mas quem sabe se não esteve para passar a qualquer coisa como Pequenix, assim como Obélix pode muito bem ter estado perto de ficar o resto da vida na nova editora condenado a ser o Gordix, ou, seguindo a lógica escolhida para o chefe, o Devorajavalixes, ou o Carregamenirixes. Os romanos, enfim, continuam a ser romanos.
Apesar destas mudanças, e dos caminhos da imaginação de Uderzo, é sempre de festejar cada regresso dos famosos gauleses. Depois de quatro anos sem aparecerem com novidades (tirando aquela colectânea de pequenas histórias, onde começou a trapalhada da mudança dos nomes), já se lhes notava a falta.
quinta-feira, 19 de abril de 2007
A final e uma pergunta
Sporting – 2 (João Moutinho 2), Beira Mar – 1. Passagem à final da taça de Portugal quase nas calmas. Com uma queda de Caneira, o actual sócio de Polga no centro da defesa do Sporting, o Beira Mar ainda conseguiu um golo que deixou a eliminatória em aberto durante mais de meia-hora. Tonel entrou mesmo no fim e pode ser que nos próximos jogos ocupe um dos dois lugares do centro da defesa (embora eu não acredite muito que venha a acontecer); entre Polga e Caneira, qual dos dois escolher como o menos mau para fazer dupla com Tonel?
quarta-feira, 18 de abril de 2007
Quanto mais simples, melhor
José Sócrates, segundo se preparava para anunciar a Universidade Independente em conferência de imprensa, terá feito uma das famosas cinco cadeiras que o transformaram num engenheiro com – e aqui vou copiar o texto do site do «Sol» – «um pequeno trabalho entregue numa folha A4, que fez chegar ao reitor acompanhado de um cartão do seu gabinete de secretário de Estado». Uma coisa que achei curiosa foi o facto de os «investigadores» da Universidade Independente terem encontrado a folha e o cartão. É que o ex-reitor (e professor da cadeira de Sócrates) já disse que ao fim de cinco anos ia tudo «para o maneta». Parece que nem tudo foi. Talvez tenha mesmo partido daí a ideia do famoso programa «Simplex»; cadeira na hora, empresa na hora, tudo na hora…
terça-feira, 17 de abril de 2007
Textos sobre livros – 23
O massacre na Universidade Técnica da Virgínia (Estados Unidos) traz-me à memória um outro, o da Columbine High School, em Littleton, também nos Estados Unidos (no estado do Colorado). Esse massacre, que ocorreu em 1999, inspirou um livro de leitura penosa sobre o qual uma vez me pediram para escrever. Aqui fica o texto, em que evitei dizer mal, porque se tratava apenas de uma divulgação; mas o livro, que inclusive ganhou o «Booker Prize», era (é) mesmo mau.
Livro: «O Bode Expiatório», de DBC Pierre (Gradiva, 286 pp.)
Livro: «O Bode Expiatório», de DBC Pierre (Gradiva, 286 pp.)
Tantas vezes, na América...
Falou-se muito e mais ainda se escreveu sobre o «Booker Prize» de 2003 [texto escrito em 2004]. Lendo a tradução portuguesa, consegue-se perceber as razões. E lendo sobre o autor melhor ainda se percebe. DBC Pierre podia perfeitamente passear-se pelas páginas de «O Bode Expiatório». Passear-se, quer dizer, andar numa lufa-lufa.
Era uma vez, na América, um rapaz, como tantas vezes acontece na América. Vernon Gregory Little anda desorientado. Jesus, o seu melhor amigo, passou-se dos carretos – isto para utilizar expressão próxima do que aparece página após página. Jesus passou-se dos carretos e o que aconteceu foi um autêntico massacre na escola. Não faltam por isso cadáveres em Martirio, a pequena cidade texana onde decorre a acção, conhecida pelo seu molho de churrasco, que DBC Pierre não se escusa de apresentar sob a forma de nódoas na roupa de uma mulher-polícia a quem o companheiro deu um mês de prazo para emagrecer. Nem o cadáver de Jesus falta em Martirio.
Ora, com Jesus morto, quem começa a ser interrogado pela polícia é Vernon. Parece que é mesmo preciso encontrar um bode expiatório para a tragédia de Martirio. Vernon anda num corrupio na esquadra da polícia, é levado à presença de uma juíza e acaba por ficar em prisão preventiva. De volta à presença da juíza, o veredicto é «tratamento ambulatório», que o rapaz terá de cumprir escrupulosamente para não ser imediatamente detido. Outras ideias, no entanto, povoam a sua mente desembaraçada: o México e a bela Taylor Figueroa, que uma noite lhe tinha pedido ajuda para tirar as calças, a ver se respirava melhor.
A saga de Vernon Little, o bode expiatório de Martirio, não é mais do que um pretexto para DBC Pierre pintar à sua maneira uma América que a cada dia que passa não deixa alternativas a quem a quer pintar. Problema para DBC Pierre? Nem por isso. O novo romancista – estreou-se precisamente com este «bode expiatório» –, que carrega de baptismo o nome Peter Finlay (em pequeno, os amigos chamavam-lhe «Dirty Pierre», alcunha que ele logo compôs para DBC – «Dirty But Clean» – Pierre), o novo romancista, dizia, tem numa América completamente desmiolada o cenário ideal para se divertir a contar uma história talhada para divertir milhões de leitores por todo o mundo. E talhada para fazer reflectir sobre um país jovem de duzentos anos e picos mas com tantas ou mais doenças do que países bem mais velhinhos.
Nascido na Austrália há 42 anos [agora já é preciso somar mais uns três ou quatro], com uma passagem pelo México e depois a fixar-se na Irlanda, DBC Pierre foi encontrar numa aventura norte-americana a solução para muitas das suas ralações. O prémio e o que se lhe seguiu garantiram o pagamento das dívidas (diz-se que até a casa de um amigo tinha vendido) e a fama, mas talvez não garantam o lugar de médico particular de um «Uncle Sam» para o qual não é nada meigo no que diz respeito a diagnósticos preliminares.
O júri do «Booker Prize» demorou apenas uma hora para decidir-se pela consagração de DBC Pierre. Houve quem dissesse que o fizeram por pena dele. Mas será que não foi por pena da América?
Falou-se muito e mais ainda se escreveu sobre o «Booker Prize» de 2003 [texto escrito em 2004]. Lendo a tradução portuguesa, consegue-se perceber as razões. E lendo sobre o autor melhor ainda se percebe. DBC Pierre podia perfeitamente passear-se pelas páginas de «O Bode Expiatório». Passear-se, quer dizer, andar numa lufa-lufa.
Era uma vez, na América, um rapaz, como tantas vezes acontece na América. Vernon Gregory Little anda desorientado. Jesus, o seu melhor amigo, passou-se dos carretos – isto para utilizar expressão próxima do que aparece página após página. Jesus passou-se dos carretos e o que aconteceu foi um autêntico massacre na escola. Não faltam por isso cadáveres em Martirio, a pequena cidade texana onde decorre a acção, conhecida pelo seu molho de churrasco, que DBC Pierre não se escusa de apresentar sob a forma de nódoas na roupa de uma mulher-polícia a quem o companheiro deu um mês de prazo para emagrecer. Nem o cadáver de Jesus falta em Martirio.
Ora, com Jesus morto, quem começa a ser interrogado pela polícia é Vernon. Parece que é mesmo preciso encontrar um bode expiatório para a tragédia de Martirio. Vernon anda num corrupio na esquadra da polícia, é levado à presença de uma juíza e acaba por ficar em prisão preventiva. De volta à presença da juíza, o veredicto é «tratamento ambulatório», que o rapaz terá de cumprir escrupulosamente para não ser imediatamente detido. Outras ideias, no entanto, povoam a sua mente desembaraçada: o México e a bela Taylor Figueroa, que uma noite lhe tinha pedido ajuda para tirar as calças, a ver se respirava melhor.
A saga de Vernon Little, o bode expiatório de Martirio, não é mais do que um pretexto para DBC Pierre pintar à sua maneira uma América que a cada dia que passa não deixa alternativas a quem a quer pintar. Problema para DBC Pierre? Nem por isso. O novo romancista – estreou-se precisamente com este «bode expiatório» –, que carrega de baptismo o nome Peter Finlay (em pequeno, os amigos chamavam-lhe «Dirty Pierre», alcunha que ele logo compôs para DBC – «Dirty But Clean» – Pierre), o novo romancista, dizia, tem numa América completamente desmiolada o cenário ideal para se divertir a contar uma história talhada para divertir milhões de leitores por todo o mundo. E talhada para fazer reflectir sobre um país jovem de duzentos anos e picos mas com tantas ou mais doenças do que países bem mais velhinhos.
Nascido na Austrália há 42 anos [agora já é preciso somar mais uns três ou quatro], com uma passagem pelo México e depois a fixar-se na Irlanda, DBC Pierre foi encontrar numa aventura norte-americana a solução para muitas das suas ralações. O prémio e o que se lhe seguiu garantiram o pagamento das dívidas (diz-se que até a casa de um amigo tinha vendido) e a fama, mas talvez não garantam o lugar de médico particular de um «Uncle Sam» para o qual não é nada meigo no que diz respeito a diagnósticos preliminares.
O júri do «Booker Prize» demorou apenas uma hora para decidir-se pela consagração de DBC Pierre. Houve quem dissesse que o fizeram por pena dele. Mas será que não foi por pena da América?
segunda-feira, 16 de abril de 2007
Pós-licenciatura
José Sócrates anda por Marrocos. É por causa de mais uma cimeira luso-marroquina, creio que a nona. Dois dias, segunda e terça. Não é muito tempo, mas a julgar pelo que tenho lido e ouvido ultimamente não me admirava se ele voltasse de lá com outro MBA, ou pelo menos com uma pós-graduação. Em quê? Bom, isso até nem parece ser o mais importante.
domingo, 15 de abril de 2007
Textos sobre livros - 22
Com o dia 25 a aproximar-se, deixo aqui o que escrevi sobre um livro de Clara Pinto Correia que trata das nossas três décadas (agora já é mais um bocadinho) de democracia.
Livro: «Trinta Anos de Democracia – E Depois, Pronto», de Clara Pinto Correia (Relógio D’Água, 107 pp.)
A ditadura que ainda entendemos mal
Um «sermão» sobre o Portugal dos últimos trinta anos, que muita gente devia ouvir, ou antes, devia ler. Uma visão lúcida, sem meias palavras e, sobretudo, muito, mas mesmo muito clara, sobre uma «nova ditadura» que a autora diz ainda entendermos mal.
Eu tinha seis anos no 25 de Abril, e não foi nada bom. Desse dia, o que me ficou bem marcado na memória foi o golpe que fiz num dos polegares, em brincadeiras na casa da minha avó. Uma faca, foi isso que me abriu o polegar e o fez ficar depois nuns tons azulados. Já à noite, quando vi na televisão os novos senhores do país, enfim, naquela idade tanto se me dava, ainda que ficasse desconfiado ao ouvir que dos que apareciam na televisão se calhar o único que se aproveitava era o Fialho Gouveia, e que na volta os monstros que iam embora tinham ali uns substitutos à altura. O passar do tempo foi-me mostrando que aquelas reticências tinham muitas razões de ser. Acabaram por surgir outras caras, veio a cor na televisão, e hoje só posso dizer que foi muito bom. Como Clara Pinto Correia, que «tinha 14 anos no 25 de Abril».
É assim, com a idade, que ela começa «Trinta Anos de Democracia – E Depois, Pronto». E continua: «Foi muito bom./ E não tenho qualquer espécie de dúvida de que a vivência democrática que iniciámos a seguir deu frutos preciosos que nunca poderíamos ter recolhido da atmosfera rarefeita que andávamos a respirar antes. Basta olhar para pessoas que admiro, ou recolher amostragens pessoais entre os meus amigos e familiares. É indiscutível que foram esses tempos complexos que permitiram que…» Seguem-se inúmeras referências, a nomes e obras que só mesmo uma outra «atmosfera» permitiu que surgissem em Portugal. «Foi muito bom.» Foi mesmo muito bom. Só que… «Mas, entretanto, precisamente enquanto estava a ser possível acontecer tudo isto, foram passando três décadas./ E durante esse espaço de tempo, lentamente, subtilmente, ocorreu um fenómeno paralelo do qual provavelmente ninguém estava à espera. Quase não demos por ele enquanto esteve a definir-se. Não temos qualquer marco preciso para podermos estabelecer quando é que foi que o deslize começou a acontecer e como./ (…) Aquela ditadura antiga, (…) na sua face visível, foi substituída por outra ditadura diferente, que nós ainda entendemos mal, e que não se fez anunciar por hino absolutamente nenhum.» É esta «nova ditadura» que Clara Pinto Correia apresenta em cerca de cem páginas sobre o Portugal dos últimos trinta anos. Para quem ainda não a conhece, ou para quem a conhece, até de ginjeira, mas simplesmente não se preocupa com ela, com os caminhos que segue, se calhar porque lhe falta a polícia política, a televisão a preto e branco e os senhores de voz tremelicante.
Clara Pinto Correia escreveu um texto notável sobre os 30 anos que se seguiram ao 25 de Abril. Um «sermão», como se deduz das inúmeras referências ao longo do livro, desde uma nota de abertura intitulada «Sermões aos Peixes» até promessas de novos sermões para assuntos específicos em notas de rodapé. Um texto notável, pela lucidez com que analisa o que nos tem vindo a acontecer, e de uma clareza impressionante, bem escrito, fluente e incapaz de chatear o leitor, nem que seja num qualquer recanto de uma frase. Se as análises que por cá vão surgindo fossem assim escritas, decerto entenderíamos bem melhor a «nova ditadura». Talvez não passasse já de uma simples recordação, num país verdadeiramente democrático.
Nota: entrevista a Clara Pinto Correia no meu outro blog (Mundo RH).
sábado, 14 de abril de 2007
Pequenas histórias - 9
Um livro
Um livro que traduzi e de que mudaram depois umas coisas na edição, na volta alguém a armar-se em escritor. Chama-se «Contos de Adúlteros Desorientados». É de Juan José Millás, um dos nomes maiores da literatura espanhola. Um dos meus gatos dorme sobre um exemplar do livro. Um pouco afastada, uma vaca pasta no montado. Na relva, não se vê, mas sei que estava uma bola dourada com o nome do Ronaldo; não o anafado brasileiro mas o português que agora se tornou no jogador mais bem pago do mundo. Creio que foi no verão passado que o livro de Millás teve o gato a dormir-lhe em cima, e nem terá sido subitamente. A vaca sim, lembro-me de que desapareceu subitamente.
Um livro que traduzi e de que mudaram depois umas coisas na edição, na volta alguém a armar-se em escritor. Chama-se «Contos de Adúlteros Desorientados». É de Juan José Millás, um dos nomes maiores da literatura espanhola. Um dos meus gatos dorme sobre um exemplar do livro. Um pouco afastada, uma vaca pasta no montado. Na relva, não se vê, mas sei que estava uma bola dourada com o nome do Ronaldo; não o anafado brasileiro mas o português que agora se tornou no jogador mais bem pago do mundo. Creio que foi no verão passado que o livro de Millás teve o gato a dormir-lhe em cima, e nem terá sido subitamente. A vaca sim, lembro-me de que desapareceu subitamente.
Procura-se
Esta foto, com uns anitos, faz-me lembrar aquelas do «procura-se». O homem mudou, mas ficou a foto. E circula por aí. Como circula a dúvida, que ainda é capaz de velocidades maiores do que as da foto. Enfim, adiante… Eu nunca estive num «procura-se», mas uma vez imaginei a situação, no romance «O Medo Longe de Ti» (2003). Fica um excerto a seguir, de uma das muitas cenas em que um pistoleiro me telefona, desde o ano de 1890…
(…) Estava deitado em cima da cama, na cabana, quando o telefone tocou. Nem tive uma leve esperança de que fosses tu, e não sendo tu, fosse quem fosse... Até um pistoleiro que telefonasse dos confins da minha imaginação, mesmo a falar em inglês, com o sotaque arrastado do Texas, o mais terrível dos pistoleiros, a dar tiros enquanto falava, para que não me restassem dúvidas de que dizia a verdade quando se vangloriava de ser um verdadeiro matador. O pistoleiro. Maldito pistoleiro... Ele tinha visto a minha cara num papel pendurado num cacto, à saída da mítica cidade de Abilene, no Verão de 1888. E agora, dois anos passados sobre a descoberta do papel, já sem esperanças de me conseguir encontrar, agora, após muitos bandidos caçados nesse entretanto, um deles...
Um dos bandidos, mesmo antes de morrer, depois de um duelo, justo, frisou o matador, depois desse duelo justo, em El Paso, na rua principal, no meio da poeira, depois disso, e mesmo antes de morrer, o bandido tinha escrito no chão um número com o cano do revólver que não largava. Um número muito comprido, com muitos algarismos. O pistoleiro tinha ido ao posto de correios e pedido a ligação, e agora estava a avisar-me. Sim, o bandido tinha escrito o meu nome à frente do número, o mesmo nome que aparecia no cartaz pendurado no cacto pelo xerife de Abilene. O pistoleiro estava a avisar-me de que me iria buscar, vivo ou morto, para me entregar em Abilene. Ele iria ao fim do mundo para me encontrar, e tinha o meu contacto. O perigoso Joe Dangerous, como dizia chamar-se, capaz de atravessar terras sem fim só para me apanhar, capaz de saltar pelo tempo, capaz de fazer tudo o que fosse necessário para me encontrar, estava ao telefone e eu não sabia o que dizer-lhe.
(…)
(…) Estava deitado em cima da cama, na cabana, quando o telefone tocou. Nem tive uma leve esperança de que fosses tu, e não sendo tu, fosse quem fosse... Até um pistoleiro que telefonasse dos confins da minha imaginação, mesmo a falar em inglês, com o sotaque arrastado do Texas, o mais terrível dos pistoleiros, a dar tiros enquanto falava, para que não me restassem dúvidas de que dizia a verdade quando se vangloriava de ser um verdadeiro matador. O pistoleiro. Maldito pistoleiro... Ele tinha visto a minha cara num papel pendurado num cacto, à saída da mítica cidade de Abilene, no Verão de 1888. E agora, dois anos passados sobre a descoberta do papel, já sem esperanças de me conseguir encontrar, agora, após muitos bandidos caçados nesse entretanto, um deles...
Um dos bandidos, mesmo antes de morrer, depois de um duelo, justo, frisou o matador, depois desse duelo justo, em El Paso, na rua principal, no meio da poeira, depois disso, e mesmo antes de morrer, o bandido tinha escrito no chão um número com o cano do revólver que não largava. Um número muito comprido, com muitos algarismos. O pistoleiro tinha ido ao posto de correios e pedido a ligação, e agora estava a avisar-me. Sim, o bandido tinha escrito o meu nome à frente do número, o mesmo nome que aparecia no cartaz pendurado no cacto pelo xerife de Abilene. O pistoleiro estava a avisar-me de que me iria buscar, vivo ou morto, para me entregar em Abilene. Ele iria ao fim do mundo para me encontrar, e tinha o meu contacto. O perigoso Joe Dangerous, como dizia chamar-se, capaz de atravessar terras sem fim só para me apanhar, capaz de saltar pelo tempo, capaz de fazer tudo o que fosse necessário para me encontrar, estava ao telefone e eu não sabia o que dizer-lhe.
(…)
Pensamento positivo
Sporting – 4 (Liedson, Romagnoli, João Moutinho, Alecsandro), Marítimo – 0. Fiquei com a ideia de que o Sporting está com capacidade para ir ganhando até ao final do campeonato. Será preciso muita sorte, no entanto, para chegar ao título; vou imaginando derrotas e empates do Porto a ver se ajuda – deve-se pensar sempre em coisas boas.
quinta-feira, 12 de abril de 2007
O técnico
Um dos recentes ex-reitores da Universidade Independente (agora também ela própria a caminho de se tornar uma ex) foi o professor do primeiro-ministro José Sócrates numa das cadeiras que arranjaram para este acabar o curso de Engenharia nem sei bem de quê. Refiro-me à cadeira de Inglês Técnico. Vi, creio que no «Expresso», esse ex-reitor – Luís Arouca – a dizer que muita da documentação da universidade ao fim de cinco anos ia «para o maneta». Sócrates teve sorte em tê-lo na cadeira de Inglês Técnico. Imagine-se se o tivesse apanhado a Português Técnico…
Pequenas histórias - 8
O problema
Umas horas antes de o senhor engenheiro falar à nação, aqui pela zona não se observava vivalma. Tudo por certo já recolhido, na expectativa, a comentar em surdina o que poderia o grande líder esclarecer. Nem uma águia a cruzar os ares. Nem um coelho dos que teimam em aventurar-se de dia pelo montado. Nem uma cobra. Nem um bezerro tresmalhado. Nem mesmo um lagarto armado em importante. Nada. Nem texugos, nem ginetas, nem pardais, nem sapos, nem arvelas, nem ratos. Ovelhas, nada. Rolas, nada. Centopeias, nada. Cucos, nada. Javalis, nada. Uma calmaria até do vento, um silêncio que quase se podia ver. Só ao cair da noite é que haveria palavras do grande líder. Sobre o problema. Mas já estava tudo recolhido aqui pela zona.
Umas horas antes de o senhor engenheiro falar à nação, aqui pela zona não se observava vivalma. Tudo por certo já recolhido, na expectativa, a comentar em surdina o que poderia o grande líder esclarecer. Nem uma águia a cruzar os ares. Nem um coelho dos que teimam em aventurar-se de dia pelo montado. Nem uma cobra. Nem um bezerro tresmalhado. Nem mesmo um lagarto armado em importante. Nada. Nem texugos, nem ginetas, nem pardais, nem sapos, nem arvelas, nem ratos. Ovelhas, nada. Rolas, nada. Centopeias, nada. Cucos, nada. Javalis, nada. Uma calmaria até do vento, um silêncio que quase se podia ver. Só ao cair da noite é que haveria palavras do grande líder. Sobre o problema. Mas já estava tudo recolhido aqui pela zona.
quarta-feira, 11 de abril de 2007
Silêncios indecentes
Estive a ver na «SIC Notícias» um debate intitulado «O Silêncio de Sócrates». Fiquei na mesma. Sócrates, provavelmente, também terá ficado na mesma. O resto dos portugueses, se calhar, também. Sócrates fala amanhã (à hora a que escrevo já é hoje), por isso era o derradeiro dia para fazer um programa sobre o seu silêncio. Não sei o que vai dizer amanhã (hoje), nem o que lhe vão perguntar. Se passaram o dia a treinar ou não, se acertaram perguntas e respostas. Do que tenho lido e ouvido a situação é muito esquisita, mas quase que aposto que Sócrates não vai esclarecer nada e que se calhar em menos de uma semana lhe arranjam outro perfil tipo aquele manhoso do «Sol» há umas semanas.
O caso de Sócrates e da sua licenciatura esquisita lembra-me uma situação a que assisti na altura em que estava a acabar o meu curso (Gestão de Empresas, ISCTE, 1986/ 1991). Fui à inspecção militar, a Setúbal. Uma seca. Mesmo uma grande seca. Teve, no entanto, uma coisa que a mim e a muitos dos que lá estavam pareceu estranha, e que ficou sempre em silêncio; a presença do filho do primeiro-ministro (o da altura, já se vê, o que agora é presidente). Para contar o que aconteceu, socorro-me de um artigo que escrevi em Maio de 1999, a propósito da participação portuguesa em operações da NATO nos Balcãs. O artigo chamava-se «A Guerra das Inspecções» e dizia assim…
Ainda não há muito tempo, uma senhora falou-me do medo que sentia por causa de o filho estar quase a ir à inspecção militar. E tudo devido à guerra nos Balcãs, ao envolvimento de Portugal nas operações da NATO e ao perigo que uma guerra de maiores proporções, quem sabe uma Terceira Guerra Mundial, poderia representar para ele, se viesse a ser incorporado. Procurei tranquilizá-la, dizendo-lhe que as coisas não eram bem assim, que quem participava no conflito, pelas tropas portuguesas, eram elementos de unidades especiais e não jovens acabados de incorporar e sem nenhuma preparação. E mesmo aqueles elementos estavam apenas em missões de apoio, porque a verdade é que Portugal não dispõe de tecnologia militar suficientemente avançada para entrar directamente numa situação como a que então se estava a viver na Europa de Leste.
O que não pude foi deixar de pensar na perspectiva de uma generalização do conflito, no que uma guerra na Europa, ou uma guerra a nível mundial, poderia fazer acontecer ao jovem. Aí de certeza que já não seriam só as unidades especiais a participar, e nem as missões haveriam de ser apenas de apoio. Seria ele, jovem incorporado, e se calhar seriam também os que já cumpriram as obrigações militares. Não pude deixar de pensar também em mim, e noutros como eu, e até em pessoas mais velhas. Pode dizer-se que é um exagero, um alarmismo, que a Rússia morre de fome se não for o apoio do Ocidente e que por isso protesta, protesta, mas de concreto nunca tomará posições de hostilidade em relação à NATO. Pode até dizer-se que a China considerará uma coisa de bárbaros que lhe tenham mandado pelos ares, ao que parece por engano, a sua representação diplomática em Belgrado. Pode dizer-se tudo. Mas uma coisa é certa, também pode dizer-se que um belo (?) dia, ou uma bela (?) noite, porque a moda agora parece ser atacar de noite, pela calada, uma bela (?) noite, então, um maluco qualquer ainda é capaz de fazer alguma que depois ninguém há-de saber como parar. E aí, velhos ou novos, incorporados ou por incorporar, quem sabe se não iremos lá todos.
Quando fui à inspecção militar, há uns oito anos, também me falaram na questão da incorporação, sobretudo por causa da Guerra do Golfo. Mas aí o conflito era mais longe e Portugal nem sequer entrava, ou entrava apenas através de algumas medidas facilitadoras, nomeadamente ao nível do espaço aéreo e de instalações militares. Tanto que na altura a minha preocupação não foi com a guerra, mas sim com a própria incorporação. E tinha razões para isso, pois o que é certo é que com as confusões para cá e para lá, até que ficasse tudo resolvido ainda haveria de passar quase dois anos. Com todos os custos que isso implicou para a minha vida pessoal, e também para a profissional, que estava então a começar. O dia da inspecção representou, para mim, o início de um longo período de indefinições, até de muitas irritações, mas não a preocupação que há umas semanas me vieram colocar, tendo presente a tragédia dos Balcãs.
Foi um dia perdido, a ver situações parvas e até humilhantes para meia dúzia de desgraçados. Um porque tinha trinta e sete quilos e porque pela cor da pele e pela fisionomia parecia ser indiano, outro porque era preto («Você é de África?» ouvi um idiota não sei de que patente perguntar-lhe), outro porque pesava de certeza mais de cento e cinquenta quilos, outros porque tinham só a quarta classe e outros ainda porque nem isso tinham. Naquele dia quase tudo se distinguiu, até o filho de um político da primeira linha da altura (primeira mesmo primeira, porque chefiava o governo), que também lá tinha aterrado, embora sem ser de pára-quedas. Teve chamada especial, com o apregoador de serviço (não sei de que patente, não sei se idiota) a mudar o tom de voz e a fazer uns sinais que toda a gente compreendeu, e foi mandado embora quando batiam as onze da manhã. Como o que parecia indiano e pesava trinta e sete quilos e o outro de mais de cento e cinquenta, também ele não servia para aquela vida. Outras melhores, por certo, o aguardavam.
O caso de Sócrates e da sua licenciatura esquisita lembra-me uma situação a que assisti na altura em que estava a acabar o meu curso (Gestão de Empresas, ISCTE, 1986/ 1991). Fui à inspecção militar, a Setúbal. Uma seca. Mesmo uma grande seca. Teve, no entanto, uma coisa que a mim e a muitos dos que lá estavam pareceu estranha, e que ficou sempre em silêncio; a presença do filho do primeiro-ministro (o da altura, já se vê, o que agora é presidente). Para contar o que aconteceu, socorro-me de um artigo que escrevi em Maio de 1999, a propósito da participação portuguesa em operações da NATO nos Balcãs. O artigo chamava-se «A Guerra das Inspecções» e dizia assim…
Ainda não há muito tempo, uma senhora falou-me do medo que sentia por causa de o filho estar quase a ir à inspecção militar. E tudo devido à guerra nos Balcãs, ao envolvimento de Portugal nas operações da NATO e ao perigo que uma guerra de maiores proporções, quem sabe uma Terceira Guerra Mundial, poderia representar para ele, se viesse a ser incorporado. Procurei tranquilizá-la, dizendo-lhe que as coisas não eram bem assim, que quem participava no conflito, pelas tropas portuguesas, eram elementos de unidades especiais e não jovens acabados de incorporar e sem nenhuma preparação. E mesmo aqueles elementos estavam apenas em missões de apoio, porque a verdade é que Portugal não dispõe de tecnologia militar suficientemente avançada para entrar directamente numa situação como a que então se estava a viver na Europa de Leste.
O que não pude foi deixar de pensar na perspectiva de uma generalização do conflito, no que uma guerra na Europa, ou uma guerra a nível mundial, poderia fazer acontecer ao jovem. Aí de certeza que já não seriam só as unidades especiais a participar, e nem as missões haveriam de ser apenas de apoio. Seria ele, jovem incorporado, e se calhar seriam também os que já cumpriram as obrigações militares. Não pude deixar de pensar também em mim, e noutros como eu, e até em pessoas mais velhas. Pode dizer-se que é um exagero, um alarmismo, que a Rússia morre de fome se não for o apoio do Ocidente e que por isso protesta, protesta, mas de concreto nunca tomará posições de hostilidade em relação à NATO. Pode até dizer-se que a China considerará uma coisa de bárbaros que lhe tenham mandado pelos ares, ao que parece por engano, a sua representação diplomática em Belgrado. Pode dizer-se tudo. Mas uma coisa é certa, também pode dizer-se que um belo (?) dia, ou uma bela (?) noite, porque a moda agora parece ser atacar de noite, pela calada, uma bela (?) noite, então, um maluco qualquer ainda é capaz de fazer alguma que depois ninguém há-de saber como parar. E aí, velhos ou novos, incorporados ou por incorporar, quem sabe se não iremos lá todos.
Quando fui à inspecção militar, há uns oito anos, também me falaram na questão da incorporação, sobretudo por causa da Guerra do Golfo. Mas aí o conflito era mais longe e Portugal nem sequer entrava, ou entrava apenas através de algumas medidas facilitadoras, nomeadamente ao nível do espaço aéreo e de instalações militares. Tanto que na altura a minha preocupação não foi com a guerra, mas sim com a própria incorporação. E tinha razões para isso, pois o que é certo é que com as confusões para cá e para lá, até que ficasse tudo resolvido ainda haveria de passar quase dois anos. Com todos os custos que isso implicou para a minha vida pessoal, e também para a profissional, que estava então a começar. O dia da inspecção representou, para mim, o início de um longo período de indefinições, até de muitas irritações, mas não a preocupação que há umas semanas me vieram colocar, tendo presente a tragédia dos Balcãs.
Foi um dia perdido, a ver situações parvas e até humilhantes para meia dúzia de desgraçados. Um porque tinha trinta e sete quilos e porque pela cor da pele e pela fisionomia parecia ser indiano, outro porque era preto («Você é de África?» ouvi um idiota não sei de que patente perguntar-lhe), outro porque pesava de certeza mais de cento e cinquenta quilos, outros porque tinham só a quarta classe e outros ainda porque nem isso tinham. Naquele dia quase tudo se distinguiu, até o filho de um político da primeira linha da altura (primeira mesmo primeira, porque chefiava o governo), que também lá tinha aterrado, embora sem ser de pára-quedas. Teve chamada especial, com o apregoador de serviço (não sei de que patente, não sei se idiota) a mudar o tom de voz e a fazer uns sinais que toda a gente compreendeu, e foi mandado embora quando batiam as onze da manhã. Como o que parecia indiano e pesava trinta e sete quilos e o outro de mais de cento e cinquenta, também ele não servia para aquela vida. Outras melhores, por certo, o aguardavam.
terça-feira, 10 de abril de 2007
As tarefas da oficina
Em tempos, convidaram-me para coordenar uma oficina de escrita. Aceitei, sem pensar muito no que haveria de fazer depois, quando tivesse de propor um plano de trabalhos. E quando tivesse de arranjar tempo para as sessões. Mas tudo se resolveu. Uma das situações que mais me pareceu agradar aos participantes teve a ver com a realização de treze tarefas, que na prática eram catorze. Como primeira tarefa, deviam escrever o início de uma história. Só depois podiam ver a segunda, e assim sucessivamente, até à número treze.
As tarefas eram as seguintes – 1) Escrever o início de uma história, na terceira pessoa; a primeira palavra é «Primeiramente» (não utilizar mais advérbios de modo); tem de haver duas personagens; convém que a história decorra ao ar livre. 2) Rescrever tudo do ponto de vista de cada uma das personagens (a tal tarefa dupla). 3) Rescrever tudo do ponto de vista de uma andorinha que sobrevoa o sítio onde decorre a acção. 4) Rescrever tudo do ponto de vista de um milhafre que sobrevoa o sítio onde decorre a acção. 5) Rescrever tudo de forma a incluir quinze advérbios de modo terminados em «mente». 6) Rescrever tudo de forma a expurgar do texto os adjectivos. 7) Rescrever tudo de forma a incluir dez preposições «que». 8) Rescrever tudo de forma a expurgar do texto todas as palavras começadas por «P». 9) Rescrever tudo através de um diálogo entre as duas personagens. 10) Rescrever tudo através de um diálogo entre a andorinha e o milhafre. 11) Rescrever tudo de forma a incluir um ataque do milhafre à andorinha, de repente, a meio da acção, suscitando comentários das duas personagens. 12) Rescrever tudo, de forma a incluir um ataque do milhafre às personagens, mas do ponto de vista da andorinha. 13) Rescrever tudo, decorrendo a acção num recinto fechado (uma casa, por exemplo); pode incluir o milhafre e/ ou a andorinha.
Bem, a verdade é que acabei por ter de cumprir também as tarefas. Mesmo o efeito da surpresa não existindo para mim. Por mais que tentasse livrar-me, os participantes nunca deixaram de insistir. Afinal, e muito provavelmente, nada mais justo. De forma que lá tive de meter mãos à obra. E as tarefas apareceram escritas (inclusive, ajudaram-me a começar um dos contos do último livro que publiquei – «O Amor por entre os Dedos»). Deixo as primeiras a seguir...
O começo da história
Primeiramente, pode dizer-se que ainda ninguém tinha dito nada a respeito da cruz vermelha cravada mesmo ao lado da porta da câmara municipal. Por mais que a olhassem, uns de lado, mas outros bem de frente, por mais que isso acontecesse, não havia quem se pronunciasse. Nem o novo presidente da câmara, quando passou a caminho da tão aguardada tomada de posse, com a secretária atrás a tentar escovar-lhe o fato junto aos ombros, nem mesmo o presidente pareceu com disposição para abrir a boca. A secretária ainda fez menção de dizer qualquer coisa, mas não saiu das hesitações e acabou por seguir caminho. Via-se bem que ainda tinha muito para escovar antes do início da cerimónia.
O relato do presidente
Começo o meu mandato com uma cruz vermelha à porta da câmara. Já não bastavam os comunistas… Mas pronto, isto o melhor que um político tem a fazer é não ligar a provocações, só que também é bom não esquecer, que é para a rédea não alongar demais. Pulso firme e rédea com o fim bem à vista dos olhos, é o que se pede a quem ocupa certos cargos. Porque nesta vida de político nem nas palmadinhas nas costas se pode verdadeiramente confiar. Aliás, não se pode confiar mesmo nada, senão é a morte do artista, às vezes ainda enquanto jovem, como dizia o outro. Para mim, palmadinhas nas costas, ou nos ombros, só as da minha secretária, que têm razões devidamente fundamentadas. Além da inegável admiração que a rapariga nutre pela minha pessoa…
E quanto à cruz, para acabar, assim que aqui a terra entrar nos eixos, e para isso não reservo mais do que duas semanas, assim que isto entrar nos eixos, vai nem que seja a poder de escavadora. Ai não que não vai...
O relato da secretária
Sempre me interessei por caspa. E então se for caspa de altas figuras, daquelas mesmo importantes, assim de vereador para cima, isto falando em termos locais, que é o tipo de poder a que estou vinculada, ui, se for caspa de altas figuras, nem vale a pena falar.
Poderão as pessoas perguntar, mas por quê uma promissora engenheira, jovem, bem jovem, e bonita, muito bonita até, por quê uma criatura assim sujeitar-se ao papel de secretária? Por quê? As pessoas, ui, as pessoas muitas vezes não sabem o que dizem. A vida não é só prazeres e mordomias. É preciso lutar para se conseguir aquilo que verdadeiramente se quer. E eu, para levar em frente o meu projecto de doutoramento, eu não olhos a meios. Sim, a minha tese assenta na investigação da caspa, nos seus mais ínfimos processos de formação. E agora, ui, estou numa fase em que procuro determinar a verdadeira relação entre a formação da caspa e o stress das mais diversas actividades. Da actividade política, por exemplo. Onde até nem pagam mal.
O relato da andorinha
Construí o meu ninho no beiral da câmara. Não fiz por menos. Igreja, tribunal, casas de ricos, praça do peixe, qual quê… Fui logo para a câmara. Ainda por cima, sendo época de eleições locais, as vistas não haveriam de ser monótonas, pensei. E não me enganei.
Isto, claro, tem sido um fartote. E ainda por cima, ainda por cima quem ganhou as eleições foi o candidato da caspa. Quando nascerem os meus passaritos, boa alimentação para eles ali terei. O pior é a puta da serviçal que sempre acompanha o homem, sempre a recolher-lhe a substância, quem sabe se para enviar para alguns serviços centrais, daqueles que estão sempre à mama.
E depois, bem, depois há uma coisa... Uma noite, bem, foi na véspera da tomada de posse do casposo, uma noite puseram uma cruz vermelha à porta da câmara. Claro que não digo quem foi. Prezo muito a vida.
O relato do milhafre
Os milhafres, em geral, não recuam perante as dificuldades. Só que há dificuldades e dificuldades. Como em tudo na vida. E então deu-se o caso, para passar já à história que aqui me traz, deu-se o caso de que um dia destes vi uma cruz vermelha mesmo à porta de um grande casarão, mesmo no centro de uma vila aqui bem próxima. Ora, nem estive com coisas, fui logo lá pousar, na esperança de até ser um bom ponto de observação.
Estava muita gente presente, parecia até ocasião de festa, mas eu mesmo assim fui. E ninguém me apedrejou. Se calhar, pensando bem, tiveram medo de partir a cruz.
Só que a coisa não correu bem. Nada bem, mesmo. Vi uma rapariga formosa, das bem formosas, e decidi logo. Esta vou besbicá-la... Ai vou, ai isso é que vou… Mas quando levantei voo – vou, voo, boa artimanha discursiva –, quando levantei voo, dizia, quando levantei voo e me preparei para subir o suficiente para sobre a rapariga cair a pique... Miséria… A rapariga ia a recolher caspa de um homem, bem repelente por sinal. E eu caspa, brrrreeeeee... Caspa, para mim, é mesmo o pior que os humanos carregam. Voei para bem longe em menos de um tiro.
E a rapariga era tão formosa...
As tarefas eram as seguintes – 1) Escrever o início de uma história, na terceira pessoa; a primeira palavra é «Primeiramente» (não utilizar mais advérbios de modo); tem de haver duas personagens; convém que a história decorra ao ar livre. 2) Rescrever tudo do ponto de vista de cada uma das personagens (a tal tarefa dupla). 3) Rescrever tudo do ponto de vista de uma andorinha que sobrevoa o sítio onde decorre a acção. 4) Rescrever tudo do ponto de vista de um milhafre que sobrevoa o sítio onde decorre a acção. 5) Rescrever tudo de forma a incluir quinze advérbios de modo terminados em «mente». 6) Rescrever tudo de forma a expurgar do texto os adjectivos. 7) Rescrever tudo de forma a incluir dez preposições «que». 8) Rescrever tudo de forma a expurgar do texto todas as palavras começadas por «P». 9) Rescrever tudo através de um diálogo entre as duas personagens. 10) Rescrever tudo através de um diálogo entre a andorinha e o milhafre. 11) Rescrever tudo de forma a incluir um ataque do milhafre à andorinha, de repente, a meio da acção, suscitando comentários das duas personagens. 12) Rescrever tudo, de forma a incluir um ataque do milhafre às personagens, mas do ponto de vista da andorinha. 13) Rescrever tudo, decorrendo a acção num recinto fechado (uma casa, por exemplo); pode incluir o milhafre e/ ou a andorinha.
Bem, a verdade é que acabei por ter de cumprir também as tarefas. Mesmo o efeito da surpresa não existindo para mim. Por mais que tentasse livrar-me, os participantes nunca deixaram de insistir. Afinal, e muito provavelmente, nada mais justo. De forma que lá tive de meter mãos à obra. E as tarefas apareceram escritas (inclusive, ajudaram-me a começar um dos contos do último livro que publiquei – «O Amor por entre os Dedos»). Deixo as primeiras a seguir...
O começo da história
Primeiramente, pode dizer-se que ainda ninguém tinha dito nada a respeito da cruz vermelha cravada mesmo ao lado da porta da câmara municipal. Por mais que a olhassem, uns de lado, mas outros bem de frente, por mais que isso acontecesse, não havia quem se pronunciasse. Nem o novo presidente da câmara, quando passou a caminho da tão aguardada tomada de posse, com a secretária atrás a tentar escovar-lhe o fato junto aos ombros, nem mesmo o presidente pareceu com disposição para abrir a boca. A secretária ainda fez menção de dizer qualquer coisa, mas não saiu das hesitações e acabou por seguir caminho. Via-se bem que ainda tinha muito para escovar antes do início da cerimónia.
O relato do presidente
Começo o meu mandato com uma cruz vermelha à porta da câmara. Já não bastavam os comunistas… Mas pronto, isto o melhor que um político tem a fazer é não ligar a provocações, só que também é bom não esquecer, que é para a rédea não alongar demais. Pulso firme e rédea com o fim bem à vista dos olhos, é o que se pede a quem ocupa certos cargos. Porque nesta vida de político nem nas palmadinhas nas costas se pode verdadeiramente confiar. Aliás, não se pode confiar mesmo nada, senão é a morte do artista, às vezes ainda enquanto jovem, como dizia o outro. Para mim, palmadinhas nas costas, ou nos ombros, só as da minha secretária, que têm razões devidamente fundamentadas. Além da inegável admiração que a rapariga nutre pela minha pessoa…
E quanto à cruz, para acabar, assim que aqui a terra entrar nos eixos, e para isso não reservo mais do que duas semanas, assim que isto entrar nos eixos, vai nem que seja a poder de escavadora. Ai não que não vai...
O relato da secretária
Sempre me interessei por caspa. E então se for caspa de altas figuras, daquelas mesmo importantes, assim de vereador para cima, isto falando em termos locais, que é o tipo de poder a que estou vinculada, ui, se for caspa de altas figuras, nem vale a pena falar.
Poderão as pessoas perguntar, mas por quê uma promissora engenheira, jovem, bem jovem, e bonita, muito bonita até, por quê uma criatura assim sujeitar-se ao papel de secretária? Por quê? As pessoas, ui, as pessoas muitas vezes não sabem o que dizem. A vida não é só prazeres e mordomias. É preciso lutar para se conseguir aquilo que verdadeiramente se quer. E eu, para levar em frente o meu projecto de doutoramento, eu não olhos a meios. Sim, a minha tese assenta na investigação da caspa, nos seus mais ínfimos processos de formação. E agora, ui, estou numa fase em que procuro determinar a verdadeira relação entre a formação da caspa e o stress das mais diversas actividades. Da actividade política, por exemplo. Onde até nem pagam mal.
O relato da andorinha
Construí o meu ninho no beiral da câmara. Não fiz por menos. Igreja, tribunal, casas de ricos, praça do peixe, qual quê… Fui logo para a câmara. Ainda por cima, sendo época de eleições locais, as vistas não haveriam de ser monótonas, pensei. E não me enganei.
Isto, claro, tem sido um fartote. E ainda por cima, ainda por cima quem ganhou as eleições foi o candidato da caspa. Quando nascerem os meus passaritos, boa alimentação para eles ali terei. O pior é a puta da serviçal que sempre acompanha o homem, sempre a recolher-lhe a substância, quem sabe se para enviar para alguns serviços centrais, daqueles que estão sempre à mama.
E depois, bem, depois há uma coisa... Uma noite, bem, foi na véspera da tomada de posse do casposo, uma noite puseram uma cruz vermelha à porta da câmara. Claro que não digo quem foi. Prezo muito a vida.
O relato do milhafre
Os milhafres, em geral, não recuam perante as dificuldades. Só que há dificuldades e dificuldades. Como em tudo na vida. E então deu-se o caso, para passar já à história que aqui me traz, deu-se o caso de que um dia destes vi uma cruz vermelha mesmo à porta de um grande casarão, mesmo no centro de uma vila aqui bem próxima. Ora, nem estive com coisas, fui logo lá pousar, na esperança de até ser um bom ponto de observação.
Estava muita gente presente, parecia até ocasião de festa, mas eu mesmo assim fui. E ninguém me apedrejou. Se calhar, pensando bem, tiveram medo de partir a cruz.
Só que a coisa não correu bem. Nada bem, mesmo. Vi uma rapariga formosa, das bem formosas, e decidi logo. Esta vou besbicá-la... Ai vou, ai isso é que vou… Mas quando levantei voo – vou, voo, boa artimanha discursiva –, quando levantei voo, dizia, quando levantei voo e me preparei para subir o suficiente para sobre a rapariga cair a pique... Miséria… A rapariga ia a recolher caspa de um homem, bem repelente por sinal. E eu caspa, brrrreeeeee... Caspa, para mim, é mesmo o pior que os humanos carregam. Voei para bem longe em menos de um tiro.
E a rapariga era tão formosa...
domingo, 8 de abril de 2007
Uma recordação
Braga – 0, Sporting – 1 (Nani). Muita, mesmo muita, aplicação e as coisas quase sempre controladas, tirando os sustos do centro da defesa (Polga & Caneira Lda). Alecsandro poderia ter ajudado a resolver as coisas, como diria Paulo Bento, «com tranquilidade», mas por vezes fez lembrar David, o talentoso mas adormecido avançado que logo no início da época se mudou para a Turquia. Mais uma vez aquela piada de Custódio entrar em campo no fim. E mais uma vez o gosto de ver a classe de Nani, Liedson, Miguel Veloso, Yannick (embora por vezes a precisar de um pouco de calma), Romagnoli e por aí adiante.
Há uns anos, no tempo do histórico título conseguido com Inácio e Acosta, o Sporting também ganhou em Braga, mas por dois a zero (golos de Ayew e César Prates na parte final do jogo), precisamente na jornada anterior àquela em que venceu o Porto em casa e passou para a frente do campeonato (um golo fabuloso de André Cruz, de livre, e outro de Acosta após um passe inesquecível de Secretário, que nessa noite, mais uma vez, «não gózou»); lembrei-me disso agora, mas a situação está bem mais complicada. Vamos a ver no que dá.
Há uns anos, no tempo do histórico título conseguido com Inácio e Acosta, o Sporting também ganhou em Braga, mas por dois a zero (golos de Ayew e César Prates na parte final do jogo), precisamente na jornada anterior àquela em que venceu o Porto em casa e passou para a frente do campeonato (um golo fabuloso de André Cruz, de livre, e outro de Acosta após um passe inesquecível de Secretário, que nessa noite, mais uma vez, «não gózou»); lembrei-me disso agora, mas a situação está bem mais complicada. Vamos a ver no que dá.
sexta-feira, 6 de abril de 2007
Entrevista a Ondjaki
Há uns dias publiquei aqui um texto sobre um livro de contos do escritor angolano Ondjaki. Referi nessa altura uma entrevista que lhe tinha feito em tempos (após a saída do romance «Quantas Madrugadas Tem a Noite»). Deixo-a agora aqui no blog, quando está a sair um novo livro seu, intitulado «Os da Minha Rua». A entrevista é longa, muito longa, daí ter empurrado o post anterior, sobre um livro de Dan Brown, bem lá para baixo. Dan Brown, quase de certeza, nunca vai saber disto.
À espera da próxima armadilha
O nome Ondjaki chegou-lhe pela literatura, para assinar aquilo que ia escrevendo e que de repente começou a publicar a um ritmo a que nem muitos dos grandes nomes se podem dar ao luxo. Quase uma dezena de livros desde 2000, entre poesia, contos, novela e romance, acabaram por revelar um jovem que pelo que escreve e pelo que vai dizendo em debates e entrevistas parece ser também, afinal, um grande nome. Parece e é; ora vejam já a seguir, o escritor Ondjaki à espera da próxima armadilha da vida.
Li na sua biografia referências a que se interessa pelo teatro, pela pintura e pelo cinema. Como se conjugam esses interesses com a escrita?
São áreas que se interligam através da sensibilidade; eu julgo que é isso que elas, em mim, acabam por ter em comum. Depois, existe também a possibilidade − sempre presente nas artes − de contar uma estória, seja pela pintura, seja, mais concretamente, pelo cinema. E a junção da sensibilidade com a possibilidade de inventar ou dizer uma estória alimenta imenso a minha motivação. Essas três áreas − pintura, teatro e cinema − são zonas de acção para mim, e além de permitirem fazer coisas, permitem receber também, uma vez que há uma interacção com novos motivos e, felizmente, com outras pessoas. Penso que toda a movimentação artística acaba por enriquecer a sensibilidade.
Mas pode dizer-se que a literatura vem em primeiro lugar?
Por enquanto tem vindo em primeiro lugar; a literatura ocupa um espaço enorme na minha vida interna e externa. Acontece-me por vezes olhar o mundo e pensar, dentro de mim, como se já estivesse a escrever algo. E há uma emoção associada à literatura, tanto quando leio como quando escrevo.
Um crítico literário português falou há tempos de os escritores de cá, nomeadamente os jovens, serem muito emotivos, contrapondo um ou outro caso mais racional como dignos de elogio. Como comenta isto, você que fala de uma emoção associada à literatura?
Eu falo até de várias emoções associadas à literatura... Mas não digo que as chamadas opções ou decisões literárias tenham necessariamente que ser emotivas. Mas no momento da criação, da vivência interna antes do momento de escrita, acho que é bom deixar a emoção circular. Provavelmente existem outras possibilidades; eu mexo-me muito em torno da emoção, a emoção que as coisas emanam ou a emoção das coisas reflectidas já em mim. Por exemplo, nos contos, parto muito de emoções, ou de sensações, para escrever. Bom, para ser mais simples: a emoção é uma coisa muito bonita.
Essa frase podia estar num dos seus livros. Concorda se se disser que da sua escrita passa uma imagem de grande simplicidade?
Nalguns casos, sim, a simplicidade vai estando presente. Mas é porque me serve no meu objectivo literário, pelo menos por enquanto parece-me ser isso. Não devo ter a pretensão de ser simples ou complicado na linguagem que uso, isso deve advir do ritmo da estória... Ou seja: essa pergunta é muito difícil.
Passa também da sua escrita, ao mesmo tempo, uma imagem de grande sabedoria...
Aí voltamos ao tempo... A sabedoria está, em quase todas as culturas, associada à idade, à experiência. A sabedoria requer alguma maturação, «repousio», eu diria. Há um certo tempo interno, do qual não quero falar, que já tem, em mim, alguma acumulação. Mas falta muito tempo externo, e só mais tarde poderei falar da sabedoria.
O seu nome, Ondjaki, o que significa?
Ondjaki significa, literalmente, «aquele que enfrenta desafios», e é uma palavra umbundu. Eu era para ser chamado Ondjaki, mas à última hora os meus pais decidiram mudar para outro nome. Quando comecei a escrever achei bem pegar nesse nome que outrora me esteve destinado.
Por que nome o tratam os seus amigos de infância?
Tratam-me pelo meu nome próprio, que é Ndalu. Alguns, agora, por brincadeira, chamam-me Ondjaki.
E na faculdade, como o tratavam? Os professores e os colegas...
Sempre me chamaram pelo meu nome próprio, e muitos nem sabiam que eu escrevia, e mesmo quando comecei a publicar também não se aperceberam. Esse anonimato às vezes é muito bom.
Você estudou Sociologia em Lisboa. O que o levou a tomar essa opção?
O que me levou mesmo a tomar essa opção foi a falta de opções, isto é, internamente eu não tinha definida uma vontade concreta, um caminho rígido e apetitoso. Nunca soube o que queria estudar, sempre soube que teria que ver com a escrita e com as pessoas. Pensei em Comunicação Social, mas não me apetecia também. A Sociologia pareceu-me unir isso da escrita com as pessoas. Mas acabei por não gostar do curso, embora o tivesse terminado. Agora apetecia-me fazer outra formação, um mestrado, e continuo sem saber bem em quê. A vida está cheia de armadilhas; eu espero a próxima.
Voltando à escrita... Parece haver em Portugal como que um fascínio pelo que escreve, tal como acontece com em relação a escritores africanos, nomeadamente a ligação à tradição oral. É uma coisa que não acontece por cá em relação à tradição oral portuguesa. Encontra alguma explicação para isso?
Eu só quero fazer literatura. Se as pessoas ficarem fascinadas por ela, e se isso significa que estou a enriquecer o momento da vida de uma pessoa, fico satisfeito. Mas depois das pessoas, e do julgamento temporário das pessoas, vem o tempo. O tempo é o nosso leitor mais exigente, e eu estou é preocupado com ele. O fascínio pode ser sempre temporário; o tempo é cruel. Eu não encontro explicação para fascínios, sinceramente. Talvez seja um momento oportuno, talvez o que os escritores africanos escrevam vá de encontro a uma qualquer ânsia deste público, mas o que importa é que, em última análise, se faça boa literatura.
E o que é, para si, a boa literatura? Ou mais, o que pode levar um escritor a falar de boa literatura até em relação àquilo que escreve?
Quem sou para definir a boa literatura... É difícil a definição, e seria ingrata a minha missão se fosse tentar dizer aqui o que é a boa literatura. Mas penso que, de certo modo, uma literatura que resista ao tempo, e que sirva, ao longo da História, várias ânsias de várias gentes, talvez possa ser uma boa literatura. Ou, definindo pelo oposto: a boa literatura não deixa ninguém indiferente. Embora, nos tempos que correm, com bons golpes de marketing as pessoas possam ser atraídas para determinados livros... Agora, há também um grau de encontro consigo mesmo, que pode levar um escritor à celebração – consigo mesmo – do seu momento de escrita. Aí ele poderá dizer: «escrevi um livro!», porque se encontrou, porque acasalou o que buscava com o que lhe aconteceu sentir para dizer. Mas não sei se essa busca tem fim.
Algumas pessoas que estavam comigo a ouvi-lo num debate, que não o conheciam, quiseram ir comprar os seus livros. O seu grande golpe de marketing parece-me ser você mesmo, a sua maneira de ser, aquilo que escreve. Acha esta ideia correcta?
Acho que as pessoas que compram livros meus depois de me ouvirem devem ter recebido algo no meu discurso que suscitou interesse. Não digo nada como golpe de marketing, seria até contraditório, uma vez que considero que é ao longo do tempo que as coisas literárias têm de perdurar.
Vi em livros que autografou o desenho de uma planta. Existe alguma razão especial para fazer isso?
Nem sempre é uma planta; é geralmente um desenho abstracto, conforme me apetece no momento, mas a maior parte das vezes assemelha-se a plantas. Mas é só para que o autógrafo não seja sempre igual, repetitivo. Assim, a pessoa pode levar algo diferente com a assinatura. Às vezes perguntam-me «o que é?», e eu digo que também gostaria de saber...
Fale-me um pouco da sua vida e de como chegou à literatura. Por exemplo, na infância, o que é que o fascinava?
Cheguei à literatura pelo fascínio com os livros, como quase toda a gente. Comecei a ler muito tarde, digo, ler com um sentido de compreensão e de apreensão do que lia. Terá sido aos treze, catorze anos que comecei a ler coisas boas. E logo de início me passaram coisas pesadas, Sartre, García Márquez, Graciliano Ramos. É óbvio que na altura devia entender pouco ao ler «A Náusea», mas a verdade é que li. Mas, antes disto tudo, na infância, o que me fascinava era, provavelmente, o que fascinava qualquer criança angolana: a vivência. As brincadeiras na rua, na praia, nas festas; a nossa infância foi muito, muito criativa; inventiva mesmo. Hoje vejo que muito do que escrevo tem a ver com isso, com essas aprendizagens feitas em Luanda. Foi depois dos catorze anos que cheguei à literatura; comecei a escrever nos diários, a ler muito mais, e a primeira «coisa criativa» que publiquei foi um pequeno jornal de oito páginas, que eu fazia com uma amiga. Chegámos a imprimir seis números, e das oito páginas seis eram quase completamente inventadas por mim. A coisa pegou bem junto da malta jovem e lembro-me de que fiquei entusiasmado. Depois escrevi muita poesia fraca, e mais tarde cheguei aos contos. O meu primeiro livro, publicado em Luanda, é um livro de poesia, já menos fraca; gosto muito de poesia, leio e escrevo poemas, mas publico pouca poesia.
Porquê?
Sinto-me demasiado exposto. Quando publiquei o livro de poesia «Há Prendisajens com o Xão» senti-me bem porque não era um livro triste, e a minha poesia tem tendência para ser triste. Dentro de mim também tenho tendência para ser triste, a verdade é essa, e a poesia acaba por sair repleta de «mins». Mas ultimamente tenho estado a pensar em reunir a poesia que eu considero ser boa, independentemente de ser triste, e publicá-la.
Quanto à ficção... Ouvi-o dizer, no debate que referi, que tinha boas fontes de informações para depois escrever, inclusive falou de a sua mãe lhe ter contado um caso que lhe inspirou o romance, «Quantas Madrugadas Tem a Noite». Mas um pouco antes eu tinha-o ouvido falar de uma série de peripécias vividas em Lisboa antes de fazer uma viagem, quando quis saber as vacinas que devia levar e foi parar a uma oficina de escrita, coisa que me pareceu uma criação sua. O que escreve tem sempre uma base real? E qual é o papel da efabulação?
Nem tudo o que escrevo tem uma base real... Não tenho regra quanto a isso, porque mesmo que tenha uma base real rapidamente uma certo ficcionismo me ocupa a escrita − e eu permito. Gosto dessa deambulação sem barreiras entre o que pode ser real e aquilo que, mascarado de ainda-real, já não o é. Às vezes, é a tal emoção do momento que nos arrasta e viajamos por outros caminhos; a literatura é também um labirinto onde por vezes é importante deixarmo-nos perder, para que a intuição e o desejo possam vencer. Depois é que vem o controlo, a correcção dos textos, a lapidação, que é importantíssima. Eu gosto, por vezes, de ser levado pelos momentos, como foi o caso desse dia em que contei a estória das vacinas, tudo perfeitamente inventado, quase no momento.
Como lhe surgiu a situação?
Surgiu por causa da temática do encontro; era um debate com o tema «viagens», eu não sabia muito bem o que ia dizer, e lembrei-me dessa coisa curiosa que é a «consulta do viajante». Decidi que ia partir dessa ideia para poder participar no debate, não ia com nenhuma ideia mais concreta do que essa.
Pode contar aqui o que aconteceu?
Não me lembro de tudo, mas posso resumidamente dizer que eu ia com duas ideias, uma era essa, que era curioso haver algo chamado «consulta do viajante», e outra é que eu gosto de brincar um bocado com o sentido das palavras, e pareceu-me que poderia explorar algo em torno da «vacina amarela». A partir daí imaginei que poderia entrar numa dessas consultas e alguém dizer que aquela não era uma consulta do viajante, mas sim do «viajado», e que essa pessoa gostaria de partilhar comigo, e eu com ela, viagens já acontecidas, sensações, memórias. E à medida que fui falando fui imaginando a estória, até que cheguei a entender a questão da vacina amarela; quer dizer, contei que o médico me queria finalmente dar a vacina contra a febre amarela e eu recusei: «todas as vacinas menos essa, pois já tive outras febres, mas gostaria muito de ter uma febre de cor amarela». E penso que as pessoas reagiram bem; lá está, porque as palavras têm essa função de encantamento, e de repente, para a assistência, já fazia sentido ter uma febre «de cor amarela», e algo desagradável passou a ter uma conotação colorida e poética. É essa a força das palavras e das ideias.
No seu romance «Quantas Madrugadas Tem a Noite» há também algo «desagradável», a morte de uma pessoa. Mas você transforma a situação num romance − pegando nas suas palavras − «colorido e poético». É também assim que sente a vida?
Eu sinto que o lado incrível, inacreditável, patético (no bom sentido) da vida, me fascina. Um sorriso pode ser fascinante, o olhar de uma criança, as falas dos mais velhos, um pássaro na praia em que ninguém repara, um sonho que nos mude a manhã ao acordar; o mundo é mesmo colorido e poético, só que às vezes não observamos isso. Esta frase é, inconscientemente, reflexo de uma outra que o Guimarães Rosa escreveu: «quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo». Se calhar os angolanos têm essa tendência de transformar o desagradável em colorido, mas não posso falar por todos. Sinto a vida assim: travessia criativa; poesia e vulcão. Nem sempre se consegue, mas vamos tentando...
O que falou há pouco da lapidação... Acontece-lhe no final da escrita em prosa. Na poesia começa a lapidar logo no início?
Na poesia lapido menos, tanto no início como no fim. Parece-me que há uma espécie de vivência interna do poema, e que ele sai quase pronto, quase nu. Mas isto já é racionalizar sobre o poema, e o poema pode zangar-se comigo. Deus me livre de um poema zangar-se comigo.
Você anda como que num triângulo, Angola, Estados Unidos e Portugal. Onde passa mais tempo? E onde pensa que vai passar mais tempo no futuro?
Vou passar mais tempo onde for mais urgente para as minhas vivências. Oxalá que esse triângulo se alargue; este ano já fui conhecer outros países, isso enriqueceu-me a poesia dos olhos, e a mão da escrita. Oxalá que esse triângulo ganhe muito mais do que três dimensões. Gosto muito do mundo, arredores e becos incluídos.
E nesse mundo, contando com arredores e becos, como vê o seu país?
Vejo o meu país a sair de uma época longa de sofrimento e de coragem, pronto para se refazer, contando com os angolanos e os demais que queiram bem àquela terra. A colonização, as guerras e todos os factores históricos que se cruzam no trajecto daquela nação têm que ser levados em conta para se entender o que já se passou e o que ainda se está a passar. Um dos grandes erros que se comete em relação a Angola é analisar a sua realidade – as suas realidades – com tanta leviandade. Não pretendo fazer isso, portanto deixo aqui apenas o meu testemunho de esperança e de empenho.
Saindo da geografia, entre a escrita de ficção, a poesia, o teatro, a pintura, o cinema, ou até outras formas de expressão, onde acha que vai passar mais tempo no futuro?
Pergunta difícil, mas que está contida nos capítulo das «surpresas humanas». Não quero planificar, quero é surpreender-me. Ou ser surpreendido por urgências de escrita. A ficção é já quase uma constante, os contos, os romances, tenho ainda muitas ideias para trabalhar... Tenho é receio do silêncio, do silêncio interno. Se um dia a voz-que-escreve se calar, terei que parar de escrever...
Tem noção de como é vista a sua obra em Angola? Ouvi o José Eduardo Agualusa dizer que antes de conhecê-lo já lhe tinha chegado aos ouvidos a fama do Ondjaki...
Ele devia estar a brincar, não me parece que seja assim… Em Luanda as pessoas vão-me conhecendo, foram conhecendo aos poucos, já tinha feito lá duas exposições de pintura, e agora na escrita felizmente entendem que eu pretendo fazer um trabalho sério, que encaro a escrita com prazer mas também com respeito. E, sobretudo, o público angolano que me lê com atenção identifica-se com a realidade que descrevo, seja a social, seja a linguística.
Como é a edição dos seus livros em Angola?
Tem sido feita repartidamente pelas duas principais editoras angolanas; tudo o que sai cá sai lá também. É uma das minhas prioridades, ter os meus livros sempre disponíveis em Angola. A outra, que é mais difícil, seria poder lançá-los e distribui-los em todas as províncias, mas tem sido complicado porque nem sempre é possível organizar as coisas. Mas continuaremos a tentar.
Você parece reinventar a escrita, na medida em que segue a reinvenção que o povo faz da língua, algo diferente, por exemplo, de Mia Couto, que parece fazer ele próprio essa reinvenção, por vezes desligada do que fazem as pessoas na realidade. Esta ideia faz sentido para si?
Há sempre uma ideia de equilíbrio entre aquilo que capto e aquilo que invento. Mas agrada-me esse acompanhamento da oralidade, e procuro, sim, nalguns projectos, transpor isso para os livros. Mas é uma parte, a outra parte dessa oralidade também é um pouco inventada. Se há reinvenção na minha escrita, repito, é porque eu preciso desse elemento, dessa máscara, dessa característica, para criar uma estória literária. E assim há-de ser no futuro, penso eu, e só mais tarde se verá que eu não estou experimentando vozes, a minha voz tem várias texturas, os meus livros são feitos a partir de plurais que se complementam. Há que degustar mais do que classificar. O resto é surpresa.
Acha correcta a ideia de reinvenção, ou será mais o próprio desenvolvimento, ou a própria evolução, da língua?
A evolução é mesmo uma reinvenção, não se pode ir contra o movimento natural de milhares de falantes. Mas eu acho que é como na educação das crianças, não se pode permitir tudo, há que ter um molde, uma referência, e o resultado da reinvenção de uma língua é o combate entre o molde e a modernidade.
Haverá então palavras nos seus futuros livros que agora ainda não existem?!
Se os homens pudessem engravidar, além de crianças deveriam poder dar à luz palavras novas; palavras originais não só na sua face fonética mas na sua interna significação. Gosto tanto dessa ideia que um dia inventei dois personagens assim: um velho muito velho que criava palavras e uma velha muito velha que destruía palavras. Pessoalmente, gostaria de poder atravessar a fronteira poética que me separa dessa utopia e estar mesmo grávido de palavras novas. Devolvo a pergunta: estarei já?
À espera da próxima armadilha
O nome Ondjaki chegou-lhe pela literatura, para assinar aquilo que ia escrevendo e que de repente começou a publicar a um ritmo a que nem muitos dos grandes nomes se podem dar ao luxo. Quase uma dezena de livros desde 2000, entre poesia, contos, novela e romance, acabaram por revelar um jovem que pelo que escreve e pelo que vai dizendo em debates e entrevistas parece ser também, afinal, um grande nome. Parece e é; ora vejam já a seguir, o escritor Ondjaki à espera da próxima armadilha da vida.
Li na sua biografia referências a que se interessa pelo teatro, pela pintura e pelo cinema. Como se conjugam esses interesses com a escrita?
São áreas que se interligam através da sensibilidade; eu julgo que é isso que elas, em mim, acabam por ter em comum. Depois, existe também a possibilidade − sempre presente nas artes − de contar uma estória, seja pela pintura, seja, mais concretamente, pelo cinema. E a junção da sensibilidade com a possibilidade de inventar ou dizer uma estória alimenta imenso a minha motivação. Essas três áreas − pintura, teatro e cinema − são zonas de acção para mim, e além de permitirem fazer coisas, permitem receber também, uma vez que há uma interacção com novos motivos e, felizmente, com outras pessoas. Penso que toda a movimentação artística acaba por enriquecer a sensibilidade.
Mas pode dizer-se que a literatura vem em primeiro lugar?
Por enquanto tem vindo em primeiro lugar; a literatura ocupa um espaço enorme na minha vida interna e externa. Acontece-me por vezes olhar o mundo e pensar, dentro de mim, como se já estivesse a escrever algo. E há uma emoção associada à literatura, tanto quando leio como quando escrevo.
Um crítico literário português falou há tempos de os escritores de cá, nomeadamente os jovens, serem muito emotivos, contrapondo um ou outro caso mais racional como dignos de elogio. Como comenta isto, você que fala de uma emoção associada à literatura?
Eu falo até de várias emoções associadas à literatura... Mas não digo que as chamadas opções ou decisões literárias tenham necessariamente que ser emotivas. Mas no momento da criação, da vivência interna antes do momento de escrita, acho que é bom deixar a emoção circular. Provavelmente existem outras possibilidades; eu mexo-me muito em torno da emoção, a emoção que as coisas emanam ou a emoção das coisas reflectidas já em mim. Por exemplo, nos contos, parto muito de emoções, ou de sensações, para escrever. Bom, para ser mais simples: a emoção é uma coisa muito bonita.
Essa frase podia estar num dos seus livros. Concorda se se disser que da sua escrita passa uma imagem de grande simplicidade?
Nalguns casos, sim, a simplicidade vai estando presente. Mas é porque me serve no meu objectivo literário, pelo menos por enquanto parece-me ser isso. Não devo ter a pretensão de ser simples ou complicado na linguagem que uso, isso deve advir do ritmo da estória... Ou seja: essa pergunta é muito difícil.
Passa também da sua escrita, ao mesmo tempo, uma imagem de grande sabedoria...
Aí voltamos ao tempo... A sabedoria está, em quase todas as culturas, associada à idade, à experiência. A sabedoria requer alguma maturação, «repousio», eu diria. Há um certo tempo interno, do qual não quero falar, que já tem, em mim, alguma acumulação. Mas falta muito tempo externo, e só mais tarde poderei falar da sabedoria.
O seu nome, Ondjaki, o que significa?
Ondjaki significa, literalmente, «aquele que enfrenta desafios», e é uma palavra umbundu. Eu era para ser chamado Ondjaki, mas à última hora os meus pais decidiram mudar para outro nome. Quando comecei a escrever achei bem pegar nesse nome que outrora me esteve destinado.
Por que nome o tratam os seus amigos de infância?
Tratam-me pelo meu nome próprio, que é Ndalu. Alguns, agora, por brincadeira, chamam-me Ondjaki.
E na faculdade, como o tratavam? Os professores e os colegas...
Sempre me chamaram pelo meu nome próprio, e muitos nem sabiam que eu escrevia, e mesmo quando comecei a publicar também não se aperceberam. Esse anonimato às vezes é muito bom.
Você estudou Sociologia em Lisboa. O que o levou a tomar essa opção?
O que me levou mesmo a tomar essa opção foi a falta de opções, isto é, internamente eu não tinha definida uma vontade concreta, um caminho rígido e apetitoso. Nunca soube o que queria estudar, sempre soube que teria que ver com a escrita e com as pessoas. Pensei em Comunicação Social, mas não me apetecia também. A Sociologia pareceu-me unir isso da escrita com as pessoas. Mas acabei por não gostar do curso, embora o tivesse terminado. Agora apetecia-me fazer outra formação, um mestrado, e continuo sem saber bem em quê. A vida está cheia de armadilhas; eu espero a próxima.
Voltando à escrita... Parece haver em Portugal como que um fascínio pelo que escreve, tal como acontece com em relação a escritores africanos, nomeadamente a ligação à tradição oral. É uma coisa que não acontece por cá em relação à tradição oral portuguesa. Encontra alguma explicação para isso?
Eu só quero fazer literatura. Se as pessoas ficarem fascinadas por ela, e se isso significa que estou a enriquecer o momento da vida de uma pessoa, fico satisfeito. Mas depois das pessoas, e do julgamento temporário das pessoas, vem o tempo. O tempo é o nosso leitor mais exigente, e eu estou é preocupado com ele. O fascínio pode ser sempre temporário; o tempo é cruel. Eu não encontro explicação para fascínios, sinceramente. Talvez seja um momento oportuno, talvez o que os escritores africanos escrevam vá de encontro a uma qualquer ânsia deste público, mas o que importa é que, em última análise, se faça boa literatura.
E o que é, para si, a boa literatura? Ou mais, o que pode levar um escritor a falar de boa literatura até em relação àquilo que escreve?
Quem sou para definir a boa literatura... É difícil a definição, e seria ingrata a minha missão se fosse tentar dizer aqui o que é a boa literatura. Mas penso que, de certo modo, uma literatura que resista ao tempo, e que sirva, ao longo da História, várias ânsias de várias gentes, talvez possa ser uma boa literatura. Ou, definindo pelo oposto: a boa literatura não deixa ninguém indiferente. Embora, nos tempos que correm, com bons golpes de marketing as pessoas possam ser atraídas para determinados livros... Agora, há também um grau de encontro consigo mesmo, que pode levar um escritor à celebração – consigo mesmo – do seu momento de escrita. Aí ele poderá dizer: «escrevi um livro!», porque se encontrou, porque acasalou o que buscava com o que lhe aconteceu sentir para dizer. Mas não sei se essa busca tem fim.
Algumas pessoas que estavam comigo a ouvi-lo num debate, que não o conheciam, quiseram ir comprar os seus livros. O seu grande golpe de marketing parece-me ser você mesmo, a sua maneira de ser, aquilo que escreve. Acha esta ideia correcta?
Acho que as pessoas que compram livros meus depois de me ouvirem devem ter recebido algo no meu discurso que suscitou interesse. Não digo nada como golpe de marketing, seria até contraditório, uma vez que considero que é ao longo do tempo que as coisas literárias têm de perdurar.
Vi em livros que autografou o desenho de uma planta. Existe alguma razão especial para fazer isso?
Nem sempre é uma planta; é geralmente um desenho abstracto, conforme me apetece no momento, mas a maior parte das vezes assemelha-se a plantas. Mas é só para que o autógrafo não seja sempre igual, repetitivo. Assim, a pessoa pode levar algo diferente com a assinatura. Às vezes perguntam-me «o que é?», e eu digo que também gostaria de saber...
Fale-me um pouco da sua vida e de como chegou à literatura. Por exemplo, na infância, o que é que o fascinava?
Cheguei à literatura pelo fascínio com os livros, como quase toda a gente. Comecei a ler muito tarde, digo, ler com um sentido de compreensão e de apreensão do que lia. Terá sido aos treze, catorze anos que comecei a ler coisas boas. E logo de início me passaram coisas pesadas, Sartre, García Márquez, Graciliano Ramos. É óbvio que na altura devia entender pouco ao ler «A Náusea», mas a verdade é que li. Mas, antes disto tudo, na infância, o que me fascinava era, provavelmente, o que fascinava qualquer criança angolana: a vivência. As brincadeiras na rua, na praia, nas festas; a nossa infância foi muito, muito criativa; inventiva mesmo. Hoje vejo que muito do que escrevo tem a ver com isso, com essas aprendizagens feitas em Luanda. Foi depois dos catorze anos que cheguei à literatura; comecei a escrever nos diários, a ler muito mais, e a primeira «coisa criativa» que publiquei foi um pequeno jornal de oito páginas, que eu fazia com uma amiga. Chegámos a imprimir seis números, e das oito páginas seis eram quase completamente inventadas por mim. A coisa pegou bem junto da malta jovem e lembro-me de que fiquei entusiasmado. Depois escrevi muita poesia fraca, e mais tarde cheguei aos contos. O meu primeiro livro, publicado em Luanda, é um livro de poesia, já menos fraca; gosto muito de poesia, leio e escrevo poemas, mas publico pouca poesia.
Porquê?
Sinto-me demasiado exposto. Quando publiquei o livro de poesia «Há Prendisajens com o Xão» senti-me bem porque não era um livro triste, e a minha poesia tem tendência para ser triste. Dentro de mim também tenho tendência para ser triste, a verdade é essa, e a poesia acaba por sair repleta de «mins». Mas ultimamente tenho estado a pensar em reunir a poesia que eu considero ser boa, independentemente de ser triste, e publicá-la.
Quanto à ficção... Ouvi-o dizer, no debate que referi, que tinha boas fontes de informações para depois escrever, inclusive falou de a sua mãe lhe ter contado um caso que lhe inspirou o romance, «Quantas Madrugadas Tem a Noite». Mas um pouco antes eu tinha-o ouvido falar de uma série de peripécias vividas em Lisboa antes de fazer uma viagem, quando quis saber as vacinas que devia levar e foi parar a uma oficina de escrita, coisa que me pareceu uma criação sua. O que escreve tem sempre uma base real? E qual é o papel da efabulação?
Nem tudo o que escrevo tem uma base real... Não tenho regra quanto a isso, porque mesmo que tenha uma base real rapidamente uma certo ficcionismo me ocupa a escrita − e eu permito. Gosto dessa deambulação sem barreiras entre o que pode ser real e aquilo que, mascarado de ainda-real, já não o é. Às vezes, é a tal emoção do momento que nos arrasta e viajamos por outros caminhos; a literatura é também um labirinto onde por vezes é importante deixarmo-nos perder, para que a intuição e o desejo possam vencer. Depois é que vem o controlo, a correcção dos textos, a lapidação, que é importantíssima. Eu gosto, por vezes, de ser levado pelos momentos, como foi o caso desse dia em que contei a estória das vacinas, tudo perfeitamente inventado, quase no momento.
Como lhe surgiu a situação?
Surgiu por causa da temática do encontro; era um debate com o tema «viagens», eu não sabia muito bem o que ia dizer, e lembrei-me dessa coisa curiosa que é a «consulta do viajante». Decidi que ia partir dessa ideia para poder participar no debate, não ia com nenhuma ideia mais concreta do que essa.
Pode contar aqui o que aconteceu?
Não me lembro de tudo, mas posso resumidamente dizer que eu ia com duas ideias, uma era essa, que era curioso haver algo chamado «consulta do viajante», e outra é que eu gosto de brincar um bocado com o sentido das palavras, e pareceu-me que poderia explorar algo em torno da «vacina amarela». A partir daí imaginei que poderia entrar numa dessas consultas e alguém dizer que aquela não era uma consulta do viajante, mas sim do «viajado», e que essa pessoa gostaria de partilhar comigo, e eu com ela, viagens já acontecidas, sensações, memórias. E à medida que fui falando fui imaginando a estória, até que cheguei a entender a questão da vacina amarela; quer dizer, contei que o médico me queria finalmente dar a vacina contra a febre amarela e eu recusei: «todas as vacinas menos essa, pois já tive outras febres, mas gostaria muito de ter uma febre de cor amarela». E penso que as pessoas reagiram bem; lá está, porque as palavras têm essa função de encantamento, e de repente, para a assistência, já fazia sentido ter uma febre «de cor amarela», e algo desagradável passou a ter uma conotação colorida e poética. É essa a força das palavras e das ideias.
No seu romance «Quantas Madrugadas Tem a Noite» há também algo «desagradável», a morte de uma pessoa. Mas você transforma a situação num romance − pegando nas suas palavras − «colorido e poético». É também assim que sente a vida?
Eu sinto que o lado incrível, inacreditável, patético (no bom sentido) da vida, me fascina. Um sorriso pode ser fascinante, o olhar de uma criança, as falas dos mais velhos, um pássaro na praia em que ninguém repara, um sonho que nos mude a manhã ao acordar; o mundo é mesmo colorido e poético, só que às vezes não observamos isso. Esta frase é, inconscientemente, reflexo de uma outra que o Guimarães Rosa escreveu: «quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo». Se calhar os angolanos têm essa tendência de transformar o desagradável em colorido, mas não posso falar por todos. Sinto a vida assim: travessia criativa; poesia e vulcão. Nem sempre se consegue, mas vamos tentando...
O que falou há pouco da lapidação... Acontece-lhe no final da escrita em prosa. Na poesia começa a lapidar logo no início?
Na poesia lapido menos, tanto no início como no fim. Parece-me que há uma espécie de vivência interna do poema, e que ele sai quase pronto, quase nu. Mas isto já é racionalizar sobre o poema, e o poema pode zangar-se comigo. Deus me livre de um poema zangar-se comigo.
Você anda como que num triângulo, Angola, Estados Unidos e Portugal. Onde passa mais tempo? E onde pensa que vai passar mais tempo no futuro?
Vou passar mais tempo onde for mais urgente para as minhas vivências. Oxalá que esse triângulo se alargue; este ano já fui conhecer outros países, isso enriqueceu-me a poesia dos olhos, e a mão da escrita. Oxalá que esse triângulo ganhe muito mais do que três dimensões. Gosto muito do mundo, arredores e becos incluídos.
E nesse mundo, contando com arredores e becos, como vê o seu país?
Vejo o meu país a sair de uma época longa de sofrimento e de coragem, pronto para se refazer, contando com os angolanos e os demais que queiram bem àquela terra. A colonização, as guerras e todos os factores históricos que se cruzam no trajecto daquela nação têm que ser levados em conta para se entender o que já se passou e o que ainda se está a passar. Um dos grandes erros que se comete em relação a Angola é analisar a sua realidade – as suas realidades – com tanta leviandade. Não pretendo fazer isso, portanto deixo aqui apenas o meu testemunho de esperança e de empenho.
Saindo da geografia, entre a escrita de ficção, a poesia, o teatro, a pintura, o cinema, ou até outras formas de expressão, onde acha que vai passar mais tempo no futuro?
Pergunta difícil, mas que está contida nos capítulo das «surpresas humanas». Não quero planificar, quero é surpreender-me. Ou ser surpreendido por urgências de escrita. A ficção é já quase uma constante, os contos, os romances, tenho ainda muitas ideias para trabalhar... Tenho é receio do silêncio, do silêncio interno. Se um dia a voz-que-escreve se calar, terei que parar de escrever...
Tem noção de como é vista a sua obra em Angola? Ouvi o José Eduardo Agualusa dizer que antes de conhecê-lo já lhe tinha chegado aos ouvidos a fama do Ondjaki...
Ele devia estar a brincar, não me parece que seja assim… Em Luanda as pessoas vão-me conhecendo, foram conhecendo aos poucos, já tinha feito lá duas exposições de pintura, e agora na escrita felizmente entendem que eu pretendo fazer um trabalho sério, que encaro a escrita com prazer mas também com respeito. E, sobretudo, o público angolano que me lê com atenção identifica-se com a realidade que descrevo, seja a social, seja a linguística.
Como é a edição dos seus livros em Angola?
Tem sido feita repartidamente pelas duas principais editoras angolanas; tudo o que sai cá sai lá também. É uma das minhas prioridades, ter os meus livros sempre disponíveis em Angola. A outra, que é mais difícil, seria poder lançá-los e distribui-los em todas as províncias, mas tem sido complicado porque nem sempre é possível organizar as coisas. Mas continuaremos a tentar.
Você parece reinventar a escrita, na medida em que segue a reinvenção que o povo faz da língua, algo diferente, por exemplo, de Mia Couto, que parece fazer ele próprio essa reinvenção, por vezes desligada do que fazem as pessoas na realidade. Esta ideia faz sentido para si?
Há sempre uma ideia de equilíbrio entre aquilo que capto e aquilo que invento. Mas agrada-me esse acompanhamento da oralidade, e procuro, sim, nalguns projectos, transpor isso para os livros. Mas é uma parte, a outra parte dessa oralidade também é um pouco inventada. Se há reinvenção na minha escrita, repito, é porque eu preciso desse elemento, dessa máscara, dessa característica, para criar uma estória literária. E assim há-de ser no futuro, penso eu, e só mais tarde se verá que eu não estou experimentando vozes, a minha voz tem várias texturas, os meus livros são feitos a partir de plurais que se complementam. Há que degustar mais do que classificar. O resto é surpresa.
Acha correcta a ideia de reinvenção, ou será mais o próprio desenvolvimento, ou a própria evolução, da língua?
A evolução é mesmo uma reinvenção, não se pode ir contra o movimento natural de milhares de falantes. Mas eu acho que é como na educação das crianças, não se pode permitir tudo, há que ter um molde, uma referência, e o resultado da reinvenção de uma língua é o combate entre o molde e a modernidade.
Haverá então palavras nos seus futuros livros que agora ainda não existem?!
Se os homens pudessem engravidar, além de crianças deveriam poder dar à luz palavras novas; palavras originais não só na sua face fonética mas na sua interna significação. Gosto tanto dessa ideia que um dia inventei dois personagens assim: um velho muito velho que criava palavras e uma velha muito velha que destruía palavras. Pessoalmente, gostaria de poder atravessar a fronteira poética que me separa dessa utopia e estar mesmo grávido de palavras novas. Devolvo a pergunta: estarei já?
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