Com o dia 25 a aproximar-se, deixo aqui o que escrevi sobre um livro de Clara Pinto Correia que trata das nossas três décadas (agora já é mais um bocadinho) de democracia.
Livro: «Trinta Anos de Democracia – E Depois, Pronto», de Clara Pinto Correia (Relógio D’Água, 107 pp.)
A ditadura que ainda entendemos mal
Um «sermão» sobre o Portugal dos últimos trinta anos, que muita gente devia ouvir, ou antes, devia ler. Uma visão lúcida, sem meias palavras e, sobretudo, muito, mas mesmo muito clara, sobre uma «nova ditadura» que a autora diz ainda entendermos mal.
Eu tinha seis anos no 25 de Abril, e não foi nada bom. Desse dia, o que me ficou bem marcado na memória foi o golpe que fiz num dos polegares, em brincadeiras na casa da minha avó. Uma faca, foi isso que me abriu o polegar e o fez ficar depois nuns tons azulados. Já à noite, quando vi na televisão os novos senhores do país, enfim, naquela idade tanto se me dava, ainda que ficasse desconfiado ao ouvir que dos que apareciam na televisão se calhar o único que se aproveitava era o Fialho Gouveia, e que na volta os monstros que iam embora tinham ali uns substitutos à altura. O passar do tempo foi-me mostrando que aquelas reticências tinham muitas razões de ser. Acabaram por surgir outras caras, veio a cor na televisão, e hoje só posso dizer que foi muito bom. Como Clara Pinto Correia, que «tinha 14 anos no 25 de Abril».
É assim, com a idade, que ela começa «Trinta Anos de Democracia – E Depois, Pronto». E continua: «Foi muito bom./ E não tenho qualquer espécie de dúvida de que a vivência democrática que iniciámos a seguir deu frutos preciosos que nunca poderíamos ter recolhido da atmosfera rarefeita que andávamos a respirar antes. Basta olhar para pessoas que admiro, ou recolher amostragens pessoais entre os meus amigos e familiares. É indiscutível que foram esses tempos complexos que permitiram que…» Seguem-se inúmeras referências, a nomes e obras que só mesmo uma outra «atmosfera» permitiu que surgissem em Portugal. «Foi muito bom.» Foi mesmo muito bom. Só que… «Mas, entretanto, precisamente enquanto estava a ser possível acontecer tudo isto, foram passando três décadas./ E durante esse espaço de tempo, lentamente, subtilmente, ocorreu um fenómeno paralelo do qual provavelmente ninguém estava à espera. Quase não demos por ele enquanto esteve a definir-se. Não temos qualquer marco preciso para podermos estabelecer quando é que foi que o deslize começou a acontecer e como./ (…) Aquela ditadura antiga, (…) na sua face visível, foi substituída por outra ditadura diferente, que nós ainda entendemos mal, e que não se fez anunciar por hino absolutamente nenhum.» É esta «nova ditadura» que Clara Pinto Correia apresenta em cerca de cem páginas sobre o Portugal dos últimos trinta anos. Para quem ainda não a conhece, ou para quem a conhece, até de ginjeira, mas simplesmente não se preocupa com ela, com os caminhos que segue, se calhar porque lhe falta a polícia política, a televisão a preto e branco e os senhores de voz tremelicante.
Clara Pinto Correia escreveu um texto notável sobre os 30 anos que se seguiram ao 25 de Abril. Um «sermão», como se deduz das inúmeras referências ao longo do livro, desde uma nota de abertura intitulada «Sermões aos Peixes» até promessas de novos sermões para assuntos específicos em notas de rodapé. Um texto notável, pela lucidez com que analisa o que nos tem vindo a acontecer, e de uma clareza impressionante, bem escrito, fluente e incapaz de chatear o leitor, nem que seja num qualquer recanto de uma frase. Se as análises que por cá vão surgindo fossem assim escritas, decerto entenderíamos bem melhor a «nova ditadura». Talvez não passasse já de uma simples recordação, num país verdadeiramente democrático.
Nota: entrevista a Clara Pinto Correia no meu outro blog (Mundo RH).
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