quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Uma crónica de Luís Graça (6)

Sexta de uma série de crónicas do Luís Graça. Anteriores: 1, 2, 3, 4 e 5.
Nota: escrita para o projecto «Cidades Crónicas», um espaço da lusofonia com grande colaboração de brasileiros (o que justifica certas explicações ao longo do texto); o Luís participou no projecto em 2006 e 2007 a convite do seu criador, Paulo José Miranda.
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Um mouro na invicta
«Mouros, mouros, andamos nós a trabalhar o ano inteiro lá em cima para vocês torrarem tudo cá em baixo.»
Foi assim. Há uns anos valentes. Um adepto portista (torcedor do Futebol Clube do Porto) e portuense (presumo que o senhor fosse natural ou habitante da Cidade Invicta) não resistiu às provocações bem-humoradas de um adepto do Sporting em pleno Estádio de Alvalade (o antigo estádio do Sporting, em Lisboa).
A discussão começara a propósito de uma jogada qualquer entre «leões» (Sporting) e «dragões» (Porto). Rapidamente passou do futebol para o famoso e clássico Porto – Lisboa, bem ao estilo de um duelo verbal entre cariocas e paulistas.
Esta pequena história, presenciada na bancada Superior Norte de Alvalade por um sportinguista (eu) e um portista e portuense (o meu amigo Manuel Perez), serve para ilustrar as enormes diferenças culturais que três centenas de quilómetros podem provocar.
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Gosto do Porto. Do Porto-cidade de gente com o coração quente e a língua sempre afiada para um vernáculo consagrado, cujo templo é o Mercado do Bolhão, onde as vendedoras exercitam a bem-falância de insultar sem maldade, como dizia outro amigo meu, que exerce o mister de camionista.
Passei mais de dez anos sem ir ao Porto. O casamento de uma prima levou-me de volta às margens do Douro (o rio que banha a cidade, onde navegam os barcos com os tonéis do famoso Vinho do Porto).
Fiquei triste. A crise económica e as obras deram à cidade um ar ainda mais cinzento e circunspecto do que aquele que lhe era já bem tradicional.
Na Praça da Batalha, onde fiquei instalado, os toxicodependentes misturam-se com as gaivotas e os pombos (em confrontos por vezes letais para os pombos, na discussão da migalha diária); com os estudantes que desenham a fachada do imponente Teatro de S. João, enquanto a cem metros de distância a palavra «Águia» no topo de um edifício sujo é apenas um jazigo do defunto cinema onde os cartazes de «Os Vikings» (com Kirk Douglas e Tony Curtis, realizado pelo falecido Richard Fleisher) me fascinaram sem remissão.
Em pleno século XXI, há pessoas que consideram andar de skate um passatempo eticamente reprovável. Em frente do falecido cinema, os miúdos espinoteiam alegremente, enquanto um cidadão não resiste a invectivá-los: «Vão trabalhar, caralho!»
O Porto é agora uma cidade em que os grandes centros comerciais asfixiaram o pequeno comércio. As lojas são cada vez mais iguais. E mesmo a vetusta Livraria Lello, um prodígio arquitectónico, não resiste à ignorância de algumas pessoas, porque os livros são um luxo. «A Lello? Não sei. Mas há ali uma livraria antiga.»
O Majestic, deslumbrante café no centro da cidade (na Rua de Santa Catarina, que deu origem ao pequeno poema de Jorge de Sousa Braga, chamado «Nos semáforos de Santa Catarina» – «ao menos os teus olhos/ permanecem verdes/ todo o ano») é mais frequentado por estrangeiros do que por portugueses. Paga-se nove euros e setenta e cinco cêntimos por um «Chá à Majectic» (dá direito a chá, cacau ou leite, torradas com compota, scones e uma tarte), mas sabe-se que é apenas um investimento. A limpeza da alma também se paga. Faz muito bem ficar sentado nas mesas do Majestic a ouvir o piano e ver os empregados a circular nas suas fardas brancas, a lembrar os grumetes de navio.
À noite, sai-se do Majestic, sobe-se a Rua de Santa Catarina e corta-se à esquerda por alturas do Automóvel Clube de Portugal. Junta de Freguesia de Santo Ildefonso. Por baixo de um dos únicos edifícios construídos em Portugal para abrigar jornais (no caso o «Jornal de Notícias», líder de vendas), travestis brasileiros e putas portuenses de baixo nível dividem o território numa aparente coexistência pacífica, lado a lado. Nem Santa Catarina nem Santo Ildefonso valem de nada, para as presas dos azares da vida, sejam brasileiras ou lusitanas. Os carros passam no viaduto. As putas estão paradas à chuva. A vida continua.
Alguns metros acima, o Pérola Negra (há não muitos anos famoso pelos espectáculos de sexo ao vivo) converteu-se à língua inglesa e vende Table Dances a cinquenta euros, com entrada a vinte e cinco, correspondente ao consumo mínimo. De ténis não se pode entrar. Nem tampouco de boné, gorro ou lenço na cabeça.
Fiquei à porta. Vi as fotos das strippers. Cheiro de Leste e Brasil. Mas não soube se eram apenas fotos exemplificativas ou se correspondiam às strippers a trabalhar na casa.
A madrugada pode ser boa conselheira. Aconselhou-me a ler a situação. Raciocínio rápido, marcha lenta e descontraída. Podem ser uma boa combinação para evitar um assalto. Não sei se ia acontecer. Podia ter acontecido. Como um pequeno tubarão curioso, um sujeito de mau aspecto e cabelo apanhado em rabo-de-cavalo farejou-me a existência despistada. Talvez a burguesa exibição do meu blusão de pele proporcionasse pensamentos libidinosos ao moinante.
A precaução não deixou o pânico tomar conta de mim. A Câmara Municipal estava a cinco minutos de distância, numa avenida central agora transformada em terreno bombardeado por B-52. Ou talvez seja apenas as crateras/ cicatrizes provocadas pelas obras do Metropolitano.
Um café clássico está travestido de MacDonalds. Não chove, mas está frio. O blusão e o cachecol sabem-me bem. Regresso à Messe da Batalha com duas sanduíches de queijo embrulhadas.
Passa das duas da manhã. Leio os jornais do dia, presos a um pau, fechado a cadeado. Um hábito que não conheço em mais lado nenhum. Como se o leitor se pudesse transformar em toureiro e sacasse de meia-dúzia de verónicas (passe de toureio) para fintar as más notícias com traje de luzes.
Na secção de «Massagens», o calor humano do Porto faz-se sentir. É uma prostituição mais aconchegante, como uma sopa dos pobres, como um pedido de desculpas, uma carícia nos cabelos encaracolados do Princípezinho de Saint-Exupéry. «O que significa cativar?»
«Universitária + amiga. Por necessidade atendem cavalheiros e casais. Show lésbico.»
«25 anos. Faz convívios para poder pagar a renda. Ajude-me.»
«A iniciar. Polaca. Seja educado.»
«Senhora 25 A, loira. Não sou profissional. Recebe alguns amigos em troca de pequena ajuda. Não ligue para brincar.»
Priscila, mulata brasileira, quer brincar. Gosta de sexo. É garota de programa há sete meses. Confessa muita coisa no blog e recusa comparações com Bruna Surfistinha, que começou por se prostituir, experimentou a escrita epistolar blogueira, lançou um livro e reformou-se como celebridade nacional, sem perder a vergonha de sentir o peso da condenação familiar.
Priscila diz apenas que a sua família não pode saber.
Mas não tem medo de assumir a sua preferência clubística: Benfica. Há posts e mais posts sobre o seu clube do coração em Portugal. E nem sequer se importa que os jogadores do Futebol Clube do Porto que conhece pessoalmente possam ficar irritados com o facto. A ideia não é essa.
Para além do Benfica, os clientes também dão prazer a Priscila, que tem de fazer um esforço para não se deixar envolver. Priscila tem orgasmos com os clientes. Precisa de quarenta minutos antes de qualquer marcação. Porque não há desculpas para o desleixo e a falta de higiene. Aprendeu com os seus pais.
«O trem é bagunçado, mas mesmo assim tem gerência.»
Priscila choca-se com a falta de exigência de alguns clientes. É vaidosa. Escreve muitas vezes que é gostosa.
«Tem uns [clientes] que não dispensam nada. Pegam tudo que é bagaceira.»
E o casamento?
A minha prima Irene pegou na faca e arrependeu-se à última da hora, olhando com alguma desconfiança para o bolo de noiva.
«Passo-lhe a palavra para cortar o bolo.» E o sabre imponente passou para as mãos do diligente funcionário do Hotel Nave.
Fui para o bar, ver um jogo de voleibol entre o Benfica e o Vitória de Guimarães. Até à hora do futebol (Sporting de Braga – Benfica) estive só. Depois o bar fervilhou de provocações, uns pelo Benfica, outros contra.
Acordei sem ressacas e fui fazer uma aula de hidroginástica para o Holmes Place da Boavista, onde encontrei um campeão de Riade (Portugal foi campeão mundial de Sub-20 na Arábia Saudita, em 1989). Como agora tenho barba, o Jorge Couto não me reconheceu.
Anónimo continuei na hidroginástica. Mas a sentir o calor humano dentro de água, principalmente quando a monitora Rosália se mandou para dentro da piscina vestida e tudo, executando os exercícios com os alunos, num carnaval de ritmo e salpicos que meteu «rodinhas» e «lagartinhas». No Holmes do Arrábida Shopping (em Gaia, do outro lado do Rio Douro) senti o mesmo calor humano dentro de água. Com um núcleo totalmente diferente.
Regressei de comboio, a ler a revista «Águas Furtadas», cujo editor é o meu amigo Rui Amaral, que já não encontrava desde 1996. Prometi-lhe um conto.
E bamos acabar esta crónica, carago, que já bai longa.
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