quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Uma crónica do Luís Graça (3)

Terceira de uma série de crónicas do Luís Graça. A primeira pode ser lida aqui e a segunda aqui.

Caricas ao sprint
Definitivamente, as corridas de caricas fazem parte do passado. Já não há miúdos a jogar à carica na praia, em cima de um muro, no chão, em qualquer lado.
Para quem não saiba, as caricas são as tampas das garrafas. Um produto de grande valor desportivo para qualquer miúdo da minha geração. Uma carica lisa (que não tivesse ficado muito vincada na hora de abrir a garrafa de cerveja ou o refrigerante) possuía grande valor para os potenciais «ciclo-cariquistas» da minha infância.
O processo de criação de um ciclista não era muito complicado, mas requeria humildade, «olho clínico» e paciência. Primeiro, a criança munia-se de um saco de plástico onde guardar as caricas abandonadas pelos empregados de café; posteriormente, dirigia-se ao dito estabelecimento, à «hora de ponta», quando houvesse muitas caricas no chão; depois, recolhia as caricas que estivessem mais lisinhas, ou seja, com aspecto de competição. Ainda era necessário passar pela papelaria mais próxima e comprar papel de lustro de várias cores, bem como fita gomada e uma tesoura. Claro que o lar já estava equipado com o «Diário de Notícias», que incluía na secção de desporto a constituição de todas as equipas participantes na Volta a Portugal.
A etapa seguinte na fabricação de uma carica de alta competição assemelhava-se a um acto cirúrgico. A precisão tornava-se imperiosa na arte de recortar as tirinhas minúsculas com o nome do ciclista. Uma distracção e o ciclista desaparecia abruptamente da Volta a Portugal, verdadeiramente vítima da tesoura involuntária da censura. Qual doping...
Conforme a equipa, assim era a cor do papel de lustro que constituía a «camisola» do ciclista. Seria a primeira coisa a ocupar o pequeno espaço circular de uma carica. Por cima, justapunha-se o nome do ciclista, que muitas vezes sobrava e ficava dobrado. Entrava então na dança a fita gomada, com muito jeitinho, pois mal aderisse ao papel de jornal o ciclista ficava irremediavelmente colado, para o bem e para o mal. O processo repetia-se para todo o pelotão da Volta a Portugal.
Fácil será depreender que a época nobre do «ciclo-cariquismo» coincidia com o mês de Agosto. Por um duplo motivo: as férias escolares (então ditas férias grandes, que na altura se prolongavam até Outubro) e a disputa da Volta a Portugal em Bicicleta.
De férias no campo, eu era um verdadeiro todo-o-terreno do «ciclo-cariquismo». Jogava à carica nos muros da minha vivenda (exercício de perícia, dada a exiguidade do espaço e a irregularidade da superfície), no chão de pedra (onde se desenhou uma pista a tinta vermelha, com bandeira de xadrez na chegada e tudo) e no quintal, na terra batida à volta do pinheiro manso. Aí, a pista era esculpida facilmente com a ajuda de uma colher de pedreiro, criando um carreiro de excelente qualidade. Tudo isto se passava na Venda do Pinheiro, depois tornada famosa pelo «Big Brother». Na altura, os miúdos estavam mais na onda do Joaquim Agostinho, do Fernando Mendes, do Leonel Miranda, do Emiliano Dionísio, do José Martins ou do Firmino Bernardino.
Mas o fenómeno do «ciclo-cariquismo» era universal. Na Praia de S. Martinho do Porto fui espectador privilegiado das competições que decorriam em gigantescas pistas à beira-mar, na areia molhada. Havia de tudo, como na farmácia: túneis, prémios da montanha com subidas em espiral e saltos à MacGyver para rectas enormes, curvas com relevé e dezenas de adultos que observavam com admiração o engenho dos miúdos com 13 ou 14 anos, mais velhos do que eu aquela meia-dúzia de anos que parecia uma eternidade.
Ouviam-se os nomes de Eddy Merckx, Poulidor ou Van Impe, porque nem todos podiam ser o Joaquim Agostinho. Na praia, as caricas não tinham o nome dos ciclistas. Eram de usar-e-deitar-fora.
Outro acessório útil ao «ciclo-cariquista» era o penso rápido. Porque essa coisa de passar horas a mandar piparotes com o indicador numa superfície metálica bicuda fazia mesmo pequenos buracos que nos punham a sangrar ligeiramente. Como uma bailarina clássica com os pés em sangue, por dançar em pontas – a comparação não é a mais feliz, mas foi o que se pôde arranjar.
As caricas eram uma paixão. O berlinde e o pião estavam decididamente a perder terreno para a carica, objecto que possuía a enorme capacidade onírica de transformar uma tampa de garrafa num herói à escolha. Era a vertigem da velocidade.
Curiosamente, a carica nunca foi usada no motociclismo. Não havia caricas do Giacomo Agostini, do Barry Sheene ou do Angel Nieto. Nem havia caricas de pilotos de Fórmula Um. No último caso, a explicação era simples: havia os carrinhos em miniatura.
De resto, as situações eram perfeitamente complementares. Os «ciclo-cariquistas» eram também apreciadores de corridas de carrinhos. E as caricas serviam também como marcos de delimitação das pistas. Obviamente, para delimitar as pistas era necessário muitas caricas. Nada que constituísse um problema na Venda do Pinheiro, terra da fábrica da Laranjina C. Para além do preto-e-vermelho da Laranjina C, havia outras caricas famosas no mercado: Sagres, Trinaranjus, Luso – só para dar alguns exemplos.
Que saudades das caricas, caraças!...

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3 comentários:

Luis Eme disse...

curiosamente, ou talvez não, este ano encontrei um pai saudosista que montou uma pista na praia e fez uma corrida com os filhos...

o meu filho curioso, quis saber o que era aquilo...

embora aquela corrida mais parecesse de BTT, porque a areia não estava molhada e as caricas quase se enterravam na areia, era uma espécie de jogo da carica...

Anónimo disse...

Isto está grave! O filho do Luís Eme já perguntou "o que era aquilo".

Na série "Conta-me com foi", o miúdo que faz de protagonista (Luís Ganito) também joga à carica com os amigos. Não por acaso, tem exactamente a minha idade, na série.

Tinha piada fazer uma entrevista aos três miúdos sobre o que aprenderam com os papéis que representaram e o que acham do mundo "do nosso tempo".

jcb disse...

Grandes corridas de caricas fiz em que quase sempre o Joaquim Agostinho ficava nos três primeiros lugares. Mas não havia papel de lustro: escrevia-se, a esferográfica, no plástico do interior da carica, o nome do ciclista. O Fernando Mendes também não costumava ficar mal classificado -- embora fosse do Benfica... O Firmino Bernardino é um outro nome que agora me ocorre -- e não me lembro de nos últimos largos anos recordar este nome e muito menos escrevê-lo... As corridas de caricas, no muro de granito da escola, chegaram a ser uma espécie de mundo perfeito dentro do prosaico mundo que (os outros) se vivia. Eu, se me permitem dizê-lo, cheguei a ter uma destreza peraí...