segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Uma crónica do Luís Graça (2)

Segunda de uma série de crónicas do Luís Graça. A primeira pode ser lida aqui

O cromo do Müller valia 50
O cromo do Gerd Müller, o grande «artilheiro» do Mundial de 1974, valia 50. Era um cromo difícil, daqueles que convinha pôr no cofre dos nossos afectos. «G. Müller (Alemanha Ocidental). Avançado, 28 anos e 50 vezes internacional. Marcou já 62 golos como internacional. Joga actualmente pelo Bayern de Munique.»
Estas quatro linhas do segundo cromo a contar da esquerda da última fila da quinta página da «Caderneta Mundial 74» pareciam-nos mais do que suficientes. Afinal, o futebol era uma religião de ídolos que raras vezes víamos na televisão, numa altura em que a hora de ponta se situava entre as 19 e as 20 horas. Nos dias de transmissão televisiva as buzinadelas eram maiores. Eu saía do liceu e ia a correr para casa. Não se podia perder o Bayern de Munique e o Müller. O Müller que foi a perdição da Holanda do Cruyff na final do Mundial. Sim, o Cruyff que aparecia no último lugar da última fila da décima quarta página: «J. Cruyff (Holanda). Avançado, 26 anos e 26 internacionalizações. Em 1973 foi trespassado do Ajax para o FC Barcelona. Futebolista europeu do ano de 1971. Já ganhou três Taças da Europa.»
E depois a rapaziada discutia. Que as Taças da Europa eram a Taça dos Campeões Europeus, que o Cruyff não tinha sido futebolista europeu do ano só em 1971. O pior é que, vá-se lá saber por que bulas, quem valia 50 cromos era o Müller, que não tinha o poder de finta do Cruyff. E os miúdos portugueses adeptos do Sporting não percebiam mesmo por que raio o Yazalde não aparecia na colecção. Bolas, só avançados era meia página da Argentina: Chazarreta, Telch, Ponce, Balbuena, Guerin, Ayala, Avallay e Alonso. E também faltava o Kempes.
O Mundial de 1974 é das colecções de cromos que tenho completa. Assim como a do Camões. «Colecção de 124 cromos, 4ª edição. A biografia por imagens do maior poeta português, com todos os principais passos da sua atribulada existência de moço trovador, espadachim, guerreiro e genial autor das inspiradas estrofes de ‘Os Lusíadas’.» O moço trovador aparecia na bela capa da quarta edição da Agência Portuguesa de Revistas (1966) já com a pala no olho, numa pose ameaçadora para um «infiel», em cabelo desgrenhado, a proferir um «Yáá» à Bruce Lee, que não se ouvia mas que se adivinhava.
Completei a colecção do Camões em pleno sarampo. A cabeça toda cheia de bolhas e um amigo ex-sarampista à cabeceira da cama, num tráfico de movimentos automatizados, feito com o polegar e o indicador, enquanto os cromos se acumulavam em dois montinhos. «Tens? Tenho. Não. Não. Tenho. Tenho. Não. Pára. Dou-te o 123 por esse.»
Não era fácil completar as colecções de cromos. Os repetidos eram uma praga de impossível erradicação. As praças dos Restauradores e do Rossio acudiam à nossa aflição. Personagens de boné à Pedroto e dedos amarelos da nicotina abriam-nos as malas diplomáticas com o ar clandestino de quem trafica droga. E nós pagávamos mais pelo alegre privilégio de escolher os cromos fora das carteirinhas. Era o que valia.
Por completar ficaram a caderneta didáctica «O Mundo em Bandeiras» (200 cromos), que começava com Portugal e acabava com Angra do Heroísmo; «Notas de banco de todo o mundo» (242 cromos de notas que tinham um carimbo a dizer «sem valor legal»); «Figuras e monumentos nacionais, cromos-adivinhas» (primeira edição, Outubro de 1968, colecção de 167 cromos), desenhos de Júlio Amaro e legendas de J. de Oliveira Cosme.
O primeiro era o Viriato. «Denodado comandante/ De um punhado de serranos/ Em brava luta constante/ Vence os antigos romanos/ E tão grande apreensão/ Acaba por lhes causar/ Que estes resolvem mandar/ Assassiná-lo à traição/ Recordar é sempre grato/ o nome de...». E nós, se fôssemos um bocadinho vivaços, com a nossa caligrafia inocente escrevíamos «Viriato», com a satisfação característica de quem acabou de descobrir a pólvora.
O último cromo era dedicado a Marcelo Caetano. E rezava assim: «Não podendo Salazar/ Prosseguir o seu mandato/ Foi, por Conselho de Estado/ Eleito p’ra o seu lugar/ Activo e desassombrado/ De modernas concepções/ Segue um caminho traçado/ Sem ceder a ilusões/ Quem é? Digam, sem engano/ Doutor...».
Incompletas ficaram ainda «História das Descobertas», «Transportes, terra, mar e ar», «História Natural», «Internacionais da Bola», «Futebol 77, a grande selecção», «Futebol 1975/ 1976», «Futebol 77». Mas a minha maior paixão era a «História de Portugal», graças a Deus completa.
As memórias são dos bens mais preciosos que temos. Escondem os nossos prazeres e conservam os amores numa arca frigorífica cheia de afectos. Coleccionamos os nossos prazeres ao longo dos anos, sabemos que armazenar as nossas afeições é uma tarefa inata de suprema paciência. Todos os nossos afectos têm uma hierarquia, uma espécie de semáforos que regulam um carreiro de formigas. As colecções de cromos fazem parte dela. Pequenos rectângulos de referências múltiplas. São os Picassos, Mirós, Gauguins e Monets das crianças. Ainda bem.

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