quarta-feira, 27 de setembro de 2006

Lá na Rússia

Spartak de Moscovo – 1, Sporting – 1 (Nani). Talvez pudesse ter sido melhor, mas também não está mal. Umas notas, do Sporting e não só. Não gostei de o décimo nono jogador (o que ficou de fora) ter sido Ronny, de quem Caneira está a anos-luz. Miguel Veloso mais uma vez confirmou-se como central, o problema é que Polga confirmou-se como central inamovível da equipa. Fora do Sporting, vi com espanto Peter Crouch, do Liverpool, marcar um golo em pontapé de bicicleta; um mistério... Ouvi sem espanto, no rádio do carro, Fernando Santos dizer doze vezes «na realidade» na curtíssima intervenção que fez logo a seguir à derrota com o Manchester United (ainda antes da intervenção na sala da comunicação social – aí deve ter dito umas cento e vinte). Ouvi no mesmo rádio que Luisão deu um tremenda descompostura a Karagounis durante o jogo; achei piada ser o jogador medíocre a repreender o jogador com talento. Quanto ao Porto, o problema é que o adversário chamava-se Arsenal; se fosse Naval…

Textos sobre livros - 3

Há dias li uma crítica arrasadora sobre o último romance de José António Saraiva, «As Herdeiras de Adriano Gentil» (Oficina do Livro). Saiu no suplemento «Mil Folhas», do jornal «Público». Eu tenho o livro em causa comigo; li as primeiras páginas e desisti, porque não aguentei mais do que essas primeiras páginas (umas cinco). De qualquer forma, como gostei do primeiro romance de Saraiva, «O Último Verão na Ria Formosa», aqui fica o texto que escrevi sobre ele (curiosamente, para o mesmo suplemento do «Público») no Verão de 2001.
Livro: «O Último Verão na Ria Formosa», de José António Saraiva (Publicações Dom Quixote, 260 pp.)

Labirinto de emoções

Muito mais do que na investigação da morte de um jovem, a trama do primeiro romance de José António Saraiva assenta numa teia obscura, insondável. Como quase todas as que têm a ver com as relações humanas.
Vá lá perceber-se por quê, nunca faltaram no mundo defensores da literatura como feudo de um grupo muito restrito. Defensores sempre atentos a invasões, e prontos para combatê-las até à última letra da última palavra. Actores, políticos, publicitários, mas sobretudo jornalistas (se calhar porque habitualmente escrevem), estão invariavelmente na calha para serem zurzidos se se meterem em aventuras literárias. Isto tudo, imagine-se, quando a própria literatura, vivendo muito dos chamados escritores-escritores, tem conhecido também grandes momentos à custa de invasões, seja de médicos, seja de advogados, seja de políticos, seja até, e tantas, tantas vezes, de jornalistas.
Parece ser este último caso o de José António Saraiva, director de um jornal, autor do romance «O Último Verão na Ria Formosa», um indiscutível bom momento. Sem ter história de relevo na ficção, decidiu escrever um romance e, sacrilégio maior, poderão dizer certos puristas, publicá-lo. Pois em boa hora o fez, presenteando um público vasto (até porque é uma figura bastante conhecida) com uma obra bem meritória.
O romance logo logo talvez não desperte a atenção. Ao percorrer-se as primeiras páginas, numa leitura transversal, pode chocar-nos com a sua estrutura, quase a lembrar um diário, e mais ainda com o tempo presente de boa parte do texto. Em manuais de escrita criativa, por vezes, vê-se defender que o uso do presente na literatura costuma ser associado a escritores menores. Talvez não seja uma ideia para levar muito a sério, até pelos inúmeros casos de grandes obras escritas no presente. Por esta também.
«O Último Verão na Ria Formosa» lê-se de um fôlego. Ao fim de poucas páginas, percebe-se o despropósito dos óbices iniciais, precisamente por redundarem, eles mesmo, em fonte de prazer para a leitura. Afinal, em última análise, é isso que interessa ao leitor de ficção: o prazer retirado da leitura. Também se lê «O Último Verão na Ria Formosa» com um sentimento de pena, porque à medida que as páginas avançam toma-se consciência de que em poucas horas sairemos de uma grande história. E que talvez nos mantenhamos a pensar nas personagens e no seu mundo ainda tão recente, de há vinte e cinco, trinta anos [a contar de 2001]. Tão recente, mas tão diferente do dos nossos dias. O Portugal do final do Estado Novo, que exerce o seu fascínio sobretudo porque agora é possível observá-lo de longe, a salvo dos desmandos da ditadura. E o Portugal dos anos imediatamente a seguir ao 25 de Abril.
José António Saraiva conseguiu um romance inteligente e com uma narrativa empolgante. A escrita é simples e com uma pontuação que parece ser apenas a estritamente necessária, confiando mais na disciplina de respiração do leitor do que no uso das vírgulas. Esta frugalidade quase faz lembrar a casa da personagem central. Já a profundidade psicológica chega por vezes a parecer imbatível. Apesar de se tratar de um primeiro romance, «O Último Verão na Ria Formosa» é um romance de alguém que já viveu e que já leu o suficiente para saber aquilo que deve apresentar aos potenciais leitores. E de alguém que já passou pela escrita para televisão (entre 1977 e 1980, chegou a ensiná-la na RTP); nota-se isso página a página, porque todas elas se apresentam como se nos fosse permitido estar a um canto, discretos, à espreita de cada cena.
Jacinto de Jesus é um médico beirão a exercer a actividade em Tavira. Anda pelos quarenta anos e ainda é solteiro. Foi a mãe, viúva e a viver numa aldeia da Beira Baixa, que lhe comprou o pijama que usa na noite em que tudo começa. «Está para se enfiar na cama quando o telefone toca. – Doutor Jacinto de Jesus? - interpela uma voz áspera, enérgica, antes de o médico ter podido dizer alguma coisa. – Sim, é o próprio... – Fala o sargento Faria, da GNR. Houve um acidente aqui na área. Um carro que se meteu na ria.»
No Verão, Jacinto substitui o delegado de saúde local, enquanto este goza férias, de modo que é ele que passa a certidão de óbito de um jovem encontrado morto no interior do carro. Escreve «Afogamento» na certidão, mas há-de começar a ter suspeitas de que não foi isso que aconteceu. Decide então investigar, não por simples curiosidade, mas por reencontrar uma mulher cuja visão numa esplanada de Tavira o deixara fascinado. «Um grito agudo soa na noite como um uivo e Mariana Mendes lança-se nos braços de Jacinto. – Desculpe – diz ela ao fim de alguns momentos, sem olhar para o médico. – É o meu filho – explica numa voz rouca, arrastada, endireitando-se lentamente e procurando recuperar a compostura. Então ele reconhece-a.»
Não tardará a que a história se embrenhe por um labirinto de emoções, com todos os seus mistérios. Muito mais do que na investigação de uma morte, seguindo modelos banais do romance policial, «O Último Verão na Ria Formosa» assenta numa teia obscura, insondável, como quase todas as que têm a ver com as relações humanas. A investigação nunca passa de um conjunto de suposições, que como se irá descobrindo não são apenas as do médico Jacinto de Jesus...
«O Último Verão na Ria Formosa» é a primeira experiência de José António Saraiva na literatura de ficção. Numa entrevista, questionado sobre o seu futuro como escritor, disse que depois do primeiro romance não contava meter-se a fazer outro. Haverá por certo muita gente a lamentar.

Nota de agora: o que eu escrevi no último parágrafo perdeu entretanto a vaidade; José António Saraiva, como se sabe, já escreveu mais dois romances e inclusive disse numa entrevista ao jornal que então dirigia que tinha esperanças de vir a ganhar o Prémio Nobel da Literatura.

domingo, 24 de setembro de 2006

Passagem pelas Aves

Desportivo das Aves – 0, Sporting – 2 (Alecsandro e Tonel). Desta vez um jogo tranquilo. Dos dez jogadores de campo que entraram de início (Miguel Garcia, Polga, Miguel Veloso e Ronny; João Moutinho; Yannick, Nani e Tello; Alecsandro e Liedson), tirando Polga (é difícil descrever tanta falta de jeito), todos dão garantias de que sabem jogar à bola, obviamente uns mais do que outros, mas a verdade é que dão. Dois dos que entraram na segunda parte (Romagnoli e Tonel), a mesma coisa. Fica o lamento pela insistência de Paulo Bento em Caneira (substituiu Ronny na segunda parte), mas já parece que é sina do Sporting. Resta o imprevisível Ricardo, que teve pouco que fazer mas que numa das vezes arranjou uma confusão das que só ele sabe.
Uma nota para o jogo do Porto com o Beira-Mar, em que o verdadeiro acontecimento foi a presença de Jardel. Mesmo estando na moda questionar o comportamento dos árbitros, o que eu questiono é o de um dos defesas centrais do Beira Mar, de nome Alcaraz (uma espécie de Polga de Aveiro); refiro-me ao segundo golo do Porto, e que depois de uma tentativa de alívio (ou atraso para o guarda-redes, nem percebi), e tendo um jogador do Porto conseguido desviar a bola para a baliza, lentamente, o mesmo Alcaraz pulou por cima do seu companheiro guarda-redes, foi atrás da bola, também lentamente, como que só a acompanhar a sua trajectória, e não fez nada para evitar o golo. A sério que não percebi. E se a bola tivesse parado em cima da linha de baliza? Teria Alcaraz tentado mais um alívio à maluca e feito a bola entrar?

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Um comentário

O post do «Grrr…», ali em baixo, teve um comentário, a que já respondi. Como acho que é importante, trago-o agora para aqui, que sempre é um lugar mais visível (de qualquer forma, pode ser lido também no blog «O Leão da Estrela». Eu concordo em boa parte com a análise que é feita no comentário. Não é muito normal ver opiniões de sportinguistas que não alinhem sempre pela cartilha dos dirigentes, e isso é tão mais estranho quanto o facto de o clube nos últimos anos não ter tido muita sorte com a gente que lhe tem saído ao caminho – talvez agora as coisas a esse nível até estejam menos mal, mas mesmo assim de vez em quando ainda dá para os adeptos se arrepiarem.
A segunda parte do primeiro parágrafo é praticamente uma cópia do que respondi ao comentário. Quanto ao comentário, é o seguinte:
«A ideia de pedir a repetição do jogo Sporting-Paços de Ferreira, que é defendida pelos juristas da SAD do Sporting, é mais um episódio destinado a entrar no anedotário bem recheado do grande pântano em que vive o futebol português, à semelhança do célebre luto sportinguista decretado há uns anos pelo ex-presidente Dias da Cunha./ Infelizmente, nos últimos 25 anos, a história do futebol português está resumida a títulos do FC Porto, entremeados com títulos do Benfica enquanto andava por lá Fernando Martins, o grande amigo de Pinto da Costa em Lisboa./ Para o Sporting, que investiu como ninguém em grandes equipas e em grandes treinadores, ficaram três campeonatos e umas taças sobrantes, conquistados em anos de crise e distracção dos controladores. Nos anos 90, o Sporting ganhou uma Taça de Portugal e uma Supertaça porque tinha mesmo uma grande equipa, o mesmo acontecendo quando foi campeão em 2000 e 2002, falhando muito ingloriamente um tri-campeonato porque o Boavista de Valentim Loureiro se meteu na luta, presumivelmente por ‘determinação’ do tal ‘sistema’, vencendo a Liga de 2001. Quem não se lembra do anti-jogo e do jogo violento que levou o Boavista ao título? Quem não se lembra da protecção dos árbitros a esse tipo de jogo?/ Apesar do jejum de títulos, é curioso verificar as tentativas do Sporting para abraçar os métodos nortenhos, ao ponto de o ‘namoro’ incluir trocas de jogadores com o FC Porto e transferências de quadros técnicos. É também curioso lembrar o silêncio do Sporting quando a classificação da equipa no campeonato indicava o cumprimento dos objectivos.../ O mesmo silêncio, afinal, que se verificou antes do último Nacional-Sporting, e mesmo depois dele. O árbitro Paulo Paraty nunca poderia ser o escolhido e a sua nomeação deveria ter sido recusada ou aceite sob protesto, mais a mais por se tratar de um dos homens do ‘apito dourado’. Mas ele acabou por dar a vitória ao Sporting e o clube assobiou para o ar e para os lados. Também a nomeação de João Ferreira deveria ter sido chumbada antes do jogo com o Paços de Ferreira, nomeadamente por anteriores graves prejuízos que esse árbitro já provocou ao Sporting./ O ‘sistema’ mafioso que domina o futebol português é tão requintado que, em apenas dois jogos, conseguiu arrumar com a legitimidade de quaisquer críticas do Sporting. Numa jornada, o ‘sistema’ deu três pontos na Madeira, ante o silêncio cúmplice do clube. Noutra, logo a seguir, tratou de retirar os mesmos três pontos. Enquanto isso, o FC Porto faz o seu caminho sem arbitragens polémicas, repete excelentes inícios de campeonato em termos de facturação de pontos e, como noutros anos, ganha balanço para mais um título.../ Neste quadro, a argumentação que a administradora da SAD Rita Figueira e outros juristas do Sporting estão a reunir deixa de ter sentido, nomeadamente por já ter passado a ideia de que o clube só está contra quando é lesado, calando-se quando é beneficiado. E, deste modo, o Sporting, nesta cruzada, pode ter o apoio dos adeptos e simpatizantes mais ferrenhos, mas não tem seguramente o apoio da opinião pública.»

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

Textos sobre livros - 2

Mais um post com um texto que em tempos escrevi sobre um livro.

Livro: «Desaparecido no Salon du Livre», de Júlio Conrado (Bertrand Editora, 159 pp.)

Em terra regada de manhosos, para utilizar uma expressão de um amigo meu (o jornalista Tiago Salazar), seria difícil a cultura escapar, também ela, de ter os seus manhosos. Aliás, e pensando um pouco, talvez seja exactamente na cultura que se encontram por cá dos manhosos mais proeminentes. Vem isto a propósito de um romance de Júlio Conrado, «Desaparecido no Salon du Livre».
Mas como com os manhosos não vale a pena perder muito tempo, vamos à trama de «Desaparecido no Salon du Livre». O narrador chama-se Joel Boaventura e é detective privado. O que tem para contar, no caso a um jovem advogado, é a história do desaparecimento de Aureliano Viegas, professor no secundário e escritor de romances de amor nas horas vagas. Aureliano não integra os escritores seleccionados para o Salon du Livre, em Paris, contudo também faz a viagem, a convite da editora francesa de um seu romance, acabadinho de traduzir. O pior é que no regresso da comitiva a Portugal, de Aureliano nem sinal. E aí Joel Boaventura é chamado a intervir, a pedido da esposa do escritor, que com ela deixou um dossier cheio de indicações sobre os perigos que corria. Boaventura embrenha-se então em terrenos que lhe parecem pantanosos, os dos lobbies das letras portuguesas, para ver se descobre o que aconteceu ao infeliz Aureliano. Vai chegar, em duas penadas, ao comissário português ao Salon du Livre, o gorducho Inocêncio Píndaro, provavelmente o manhoso maior, ou antes, o mais gordo. Será ele o responsável pelo desaparecimento de Aureliano Viegas?
Conta Joel Boaventura ao jovem advogado, de seu nome Carlos Morales – Aureliano Viegas diz ter reconhecido logo na escolha dos nomes as unhas de veludo do comissário Píndaro. Dramaturgos, não havia. Escritores da área infanto-juvenil, idem, aspas. Poetas e prosadores, os dos circuitos do poder estavam lá todos, os outros nem por isso, salvo os amigos do costume. Críticos literários, dois ou três. Sobre a Associação dos Críticos e a Sociedade dos Autores nem uma palavra, vindo a confirmar-se mais tarde que tinham ficado de fora dos convites institucionais. Enfim, Morales, como vê, ainda quase ninguém sabia que «Um Homem Comum na Revolução dos Cravos» seria lançado no Salon, o que por si só explicava a ausência do Aureliano dessa primeira lista, e já este se auto-excluía lavrando o seguinte vaticínio sobre uma sua hipotética integração na selecção dos escritores a mandar a França com o maillot das quinas orgulhosamente colado ao tronco: Nunca o I. Píndaro, rancoroso como é, incluiria na delegação um tipo que ousou escrever um artigo em que, entre outras coisas, o censurava por não saber dançar. Por não saber dançar? Ó Morales: você vê lógica nisto? Por não saber dançar? É de gritos! Estaria o Aureliano a ficar pirulas, quando exarou nos seus documentos esta patusca anotação?
De facto, o comissário Inocêncio Píndaro não sabia dançar, principalmente por falta de ajuda da carcaça bem desenvolvida para os lados. Algumas páginas à frente deste «Desaparecido no Salon du Livre», vamos encontrar Diana, a assistente de Joel Boaventura, bem enturmada com o comissário, a representar o papel de massagista e professora de dança. Os dois conversam numa esplanada:
- E o senhor o que faz, se não é indiscrição?
- Guru. Sou o guru da literatura portuguesa. Um sábio.
- Oh, que giro! Nunca tinha falado com um sábio. É bom ser sábio?
- Levam-se uns tantos pontapés.
- Tenhas tu cu, não te faltarão pontapés, diz o povo, cheio de razão, como sempre.
- Cu é coisa que não me falta.
Mais adiante:
- Quer dizer: quem quiser ser alguém, na literatura, tem de lhe ir ao beija-mão, é isso?
- Não exageremos, sou apenas um modesto sábio condutor de opinião. Não deixe passar o meu artigo de hoje no «Audiência». Toco os mais diversos problemas da sociedade de que sou guardião. Leia o «Audiência». Zurzo o presidente da Câmara de uma ponta à outra do texto. Moro nesta vila, tenho direito a zurzi-lo. É incrível o que se passa com a selva do betão. O homem anda a transformar o paraíso no inferno, mas vai pagar a factura nas próximas eleições, disso pode ele estar absolutamente seguro. Se sou eu que o digo...
- Cuidei que fosse um sábio da literatura e pronto.
- Sou um sábio de tudo e mais alguma coisa. Literatura, economia, futebol (estou a ficar especialista em prognósticos dos resultados dos jogos), política, cinema, fado, especialmente o que se canta em França. Vejo sempre o mundo em termos de estrutura. Tudo tem a ver com tudo. Nada me escapa.
Como há-de descobrir Joel Boaventura, nem o pobre Aureliano Viegas escapou.
Júlio Conrado (n. Olhão, 1936) vive desde criança na linha do Estoril. Escritor, poeta e crítico literário, assinou com «Desaparecido no Salon du Livre» um dos mais conseguidos romances que a literatura portuguesa deu a conhecer nos últimos anos. Para ler de um fôlego e talvez a lamentar que só tenha centena e meia de páginas.

domingo, 17 de setembro de 2006

Grrr…

O «grrr» não é um rugido, é um lamento… Sporting – 0, Paços de Ferreira – 1. O prémio da criatividade vai para o jogador que marcou o golo, com a mão; no final do jogo disse que não se apercebeu de nada porque foi um lance muito rápido; chama-se Ronny, como o defesa lateral esquerdo do Sporting. A propósito deste último, que mais uma vez entrou ao intervalo para o lugar de Caneira (que foi jogar para o lado direito), uma coisa que não consigo compreender: por quê esta insistência em Caneira, um jogador tão limitado? (o mesmo parece que está a acontecer na selecção, e com o golo que marcou ao Inter se calhar é para continuar)

sábado, 16 de setembro de 2006

Textos sobre livros - 1

Com este post, dou início neste blog à publicação de alguns textos sobre livros, textos que escrevi para jornais, revistas e programas de rádio. Escolhi para começar precisamente o único que é inédito, pois na revista para que foi escrito não o publicaram. É sobre um livro de Ray Bradbury chamado «Vamos Todos Matar Constance».

Livro: «Vamos Todos Matar Constance», de Ray Bradbury (Publicações Europa-América, 205 pp.)

Se não fosse pedir muito

As ideias de Bradbury mereciam uma escrita mais cuidada, e mais densa, sem substituir a narração por itálicos, maiúsculas e coisas do género. E, já agora, se não fosse pedir muito, que o começo não se revelasse tão penoso.

Só que com «Vamos Todos Matar Constance» disponível um pouco por todo a parte, e ainda por cima com milhares e milhares de fãs com o livro em casa, é mesmo pedir muito. Já não há nada a fazer, ou melhor, a pedir. Enfim, um desespero... Como o de Constance Rattigan, «ou, como era vulgarmente chamada, A Rattigan», antiga vedeta de Hollywood. Venice, Califórnia, uma noite de tempestade... «A Rattigan» chega, com os «clarões tremeluzentes que racham o céu», ao bungalow do escritor-narrador, depois de correr «rapidamente à frente da Morte». A mulher está molhada que nem um pintainho, e bate os dentes, a mulher treme, o que até nem é caso para menos, pois a verdade é que correu à frente da morte, a que o escritor-narrador dá honras de letra maiúscula - como ao tempo, «o Tempo» - e, nalguns casos, modela a itálico, «A Morte»; e mais, traz dois livrinhos com nomes de pessoas ou já mortas ou «marcadas», «especiais». «- Especiais, sim. Não estão mortos. Ou assim o penso. Mas estão marcados, não estão? Com uma cruz a seguir ao nome, o que significa o quê?» Recuando um bocadinho... «- Dois quase-Livros dos Mortos - disse eu./ - Quase, sim - disse Constance. - Olha aqui, e aqui, e também aqui.»
Bom, o escritor-narrador partilha a cama com Constance, «A Rattigan» («- Cama e abraços? Mas nada de educação física!»), mas quando acorda já não a vê. «Três da manhã», a hora em que «todas as almas morrem quando precisam de morrer.» (?). Quinze minutos antes... «Às duas e quarenta e cinco, no meio da tempestade escura, um terrível relâmpago embateu contra a terra, por detrás do meu bungalow. O som do trovão irrompeu. Ratos morreram nas paredes.» (?) Mais tarde... «Às seis da manhã, o alvorecer estava lá fora, algures, mas não se conseguia ver devido à chuva. Os relâmpagos ainda dardejavam e tiravam fotografias da maré abatendo-se sobre a costa.» O escritor-narrador sabe que se se «esticasse através da cama, o outro lado estaria vazio». Mas sabe mais... «- Está tudo bem contigo! - gritei.»
O escritor-narrador vai ter com Crumley. «- Crumley, é o Doido. Deixa-me entrar!/ - Nem penses - replicou a voz de Crumley, agora em estado líquido, pois ele já abrira a primeira cerveja. - A tua mulher telefonou./ - Raios! - sussurrei./ Ouvi Crumley engolir./ - Ela disse que, de cada vez que deixa a cidade, tu cais do pontão afundando-te profundamente em excrementos, ou cortas ao meio com um golpe de karaté um par de anãs lésbicas.»
Isto é só mesmo o início, cinco dos pequeninos capítulos. A história acaba por ir dar a algum sítio, onde se descobre o que Bradbury tenta esconder a todo o momento, depois de insinuações que muitas vezes não têm mais do que duas ou três linhas a separá-las. Leva o leitor amarrado a essa espécie de trela, e assim se caminha. Quem não tropeçar em itálicos e em tantos outros recursos estilísticos de Bradbury, chegará feliz e sem nódoas negras. Ao final, quando uma onda rebenta. «Crumley, Fritz, Henry, Maggie, e eu suspendemos a respiração.» É a penúltima frase, e nela tropecei numa vírgula a mais. Não caí, por ser apenas uma vírgula, mas até aí, bom, até aí só eu é que sei.

Comprei o Sol

Comprei o Sol. O jornal, claro, o que hoje teve o número um, não o Sol que cada vez mais aquece o mundo, ideia que me faz lembrar uma história de ficção científica de uns xicos-espertos que andavam nos Estados Unidos a tentar vender coisas como a Lua, as Montanhas Rochosas ou a Estátua da Liberdade; ninguém caía, o tempo passava e eles não vendiam nada, até que um dia lhes apareceram uns tipos um bocado estranhos que em menos de nada compraram tudo o que havia para vender, sem discutirem nenhum dos preços – passou um dia sobre o fecho do grande negócio e o que é certo é que tudo (Sol, Montanhas Rochosas, Estátua da Liberdade…), o que é certo é que tudo desapareceu, porque os estranhos tipos, que eram de outro planeta, que tinham uns poderes especiais (para os padrões terrestres, já se vê) e que pelos vistos até eram honestos e defensores da ética nos negócios, esses estranhos tipos levaram tudo com eles.
Bom, comprei o «Sol». Já ponho aspas a partir deste parágrafo. Não consegui comprar o «Expresso», que agora esgota sempre por causa do DVD, mas como lá a maior parte das vezes já só lia a crónica do Miguel Sousa Tavares e a da Clara Ferreira Alves não há-de haver grande problema (acabarei por lê-las um destes dias, talvez num exemplar que costuma circular pelo escritório). À primeira vista, ainda sem ler muito, gostei do «Sol». Creio que vou passar a comprar. Do pouco que li, não me vou pôr agora a fazer comentários. Não para estar aqui com aquelas coisas do «não comento notícias» e do «não comento comentadores», mas sim porque não me apetece estar a comentar. E depois do que irei ler, espero que aconteça o mesmo. Uma excepção apenas, a crónica de José António Saraiva, o director: diz coisas óbvias, apenas coisas óbvias, sobre a teima manhosa do governo em desertificar o interior do país (encerramento de maternidades, escolas, etc), contudo são coisas óbvias que raramente se ouvem por cá; foi dos melhores conjuntos de coisas óbvias que li nos últimos tempos em artigos de opinião (na volta, não são tão óbvias assim para muita gente).

O regresso do inquisidor

Estranho a surpresa de muita gente perante as declarações do papa que tantos protestos têm originado no mundo islâmico. Não era de esperar uma postura diferente por parte de quem antes de, sabe-se lá como, ter sido feito papa exercia o cargo de chefe daquilo em que a velha e desprezível inquisição acabou por se tornar. O que eu estranho é que só agora Ratzinger tenha regressado.

Ainda a justiça e a corrupção

Sobre o post ali de baixo («Justiça e corrupção»), mais umas palavrinhas… Aquilo de eu achar que não é de admirar que no pacto do PS e do PSD sobre a justiça tenha ficado de fora a corrupção. Só um anjinho acreditaria que deixar as coisas como elas têm andado no país não é o que mais interessa nos dois partidos a muita gente, assim como a amigos, amigalhaços e mais uns quantos que se calhar até são em número considerável. Vi António Barreto dizer isto na televisão, por outras palavras, é claro; fê-lo depois de o ter dito numa cerimónia cujo tema, ou cujo assunto, ou cujo nome – sei lá!... – não retive. Na cerimónia estava também o ministro da Justiça, que logo se apressou a dizer que não, que não era nada disso. Parecia tranquilo, sereno, ou talvez anestesiado, mas o mais certo era estar com a lição bem estudada. Fiquei com a ideia de que ele, o ministro, fez uma grande figura de urso. Creio que ele também terá ficado com essa ideia, se não for anjinho. As lições bem estudadas, por vezes, têm custos que se traduzem nestas figuras.
Claro que no fim os ursos acabamos por ser todos nós…

quarta-feira, 13 de setembro de 2006

Entrada de leão

Um post com um título à moda das preciosidades criativas dos jornais desportivos para o primeiro jogo do Sporting na Liga dos Campeões desta época: Sporting – 1, Inter – 0 (Caneira). Há dias, ou noites, em que tudo corre bem. Eu ia a conduzir para casa para ainda ver a segunda parte do jogo e lembro-me de que a certa altura pensei, pelo rumo que as coisas estavam a tomar (era o que me parecia através do relato), que o Sporting poderia talvez ganhar por um a zero, se as coisas não ficassem empatadas; e depois pensei no que haveria de ser se fosse o Caneira a marcar ou, milagre dos milagres, o dificilmente imitável Polga. No fim do jogo lembrei-me disso. Talvez eu não devesse dizer que Caneira não tem lugar no plantel do Sporting depois do golo que marcou… A verdade é que gostei muito da equipa. Ricardo, Abel, Tonel, Polga, Caneira, Miguel Veloso, João Moutinho, Nani, Romagnoli, Liedson e Yannick. Destes, os oito nos quais confio estiveram excelentes, os três que acho que podem causar problemas (Ricardo, Polga e Caneira) a mesma coisa; até o Polga, imagine-se, além de Caneira com o golo (e os suplentes utilizados, Alecsandro e Tello, igualmente bem integrados). Continua-me a parecer que Paulo Bento sabe como ter as coisas controladas (sei do que falo, pois como sportinguista já tive nos últimos tempos dois professores do contrário, Fernando Santos e José Peseiro).

Justiça e corrupção

A propósito do pacto sobre a justiça, assinado entre PS e PSD, não foi logo no mesmo dia mas ao fim de dois ou três, começou a falar-se de a corrupção ter ficado de fora. Como se fosse de admirar…. Mas alguma vez PS e PSD iriam meter a questão da corrupção ao barulho? Não vale a pena ter grandes ilusões. De qualquer forma, no meio disto tudo, a visão mais lúcida, e por isso mais incómoda, como sempre, tem sido a de Maria José Morgado; também ela não parece ter grandes ilusões.
A propósito, deixo a seguir uma entrevista feita com a magistrada (por mim e pela jornalista Fernanda Cachão – revista «Pessoal», Janeiro de 2003).

Crime, disse ela

«Se a economia paralela não é combatida, a economia legítima vai-se degradando. É como o pó em casa: temos de o limpar todos os dias e todos os dias há pó.» Maria José Morgado dixit. Esta é uma entrevista com sinal de aviso de perigo. Vermelho, portanto. Segundo diz a magistrada, ex-responsável da DCIEF, da Polícia Judiciária, longe vão os tempos em que Portugal era o tal país de brandos costumes.

A corrupção e a fraude são como ervas daninhas. Ou como o pó, definição de Maria José Morgado, que sabe do que fala. Esteve dos dois lados: administrou a Justiça com o fiel da balança conferido ao magistrado e liderou a investigação dos crimes económicos na Polícia Judiciária. Por pouco tempo, é certo, mas o suficiente para agitar águas. Vale e Azevedo que o diga. Futebol à parte, quanto mais não fosse moldou também uma certa forma de investigar e deu rosto à DCIEF. Houve quem se incomodasse, quem a acusasse de protagonismo, mas ela pouco se importou ou importa. «Tirem o cavalinho da chuva», esta senhora sempre teve por princípio dar a cara. Talvez por isso, admite especial simpatia por Baltazar Garzón.
Mudou o Governo, mudou o titular da pasta, Maria José saiu sem querer da Judiciária. Nos dias que correm senta-se na circunspecta sala de audiências da Relação de Lisboa; foi ali, para as bandas da Rua do Arsenal, que a «Pessoal» a entrevistou, pedindo-lhe primeiro que definisse...
... economia paralela.
Um sinónimo: economia subterrânea ou, então, se formos para a definição, economia subterrânea que viola as regras da concorrência legítima e põe em causa o património das empresas, nomeadamente mobiliário, bens e, até, o património moral das empresas.
Quando se fala em crimes económicos, estamos já noutro campo?
No nosso país, o fenómeno do crime económico está pouco estudado. O que faz com que, muitas vezes, se misturem meras irregularidades com a criminalidade propriamente dita.
Pode distinguir as diversas tipologias do crime económico?
Ainda antes disso, o crime económico verdadeiro – segundo a própria definição do Conselho da União Europeia (UE) – está no coração do crime organizado por duas razões: uma porque visa o lucro máximo com o mínimo de risco, os lucros fabulosos; outra porque quer o poder, seja o poder económico, seja infiltrar-se nas instituições democráticas, nos partidos, no governo, na imprensa, etc, etc. Como tal, a própria UE considera o combate ao crime económico uma prioridade tão importante como o combate ao terrorismo, na medida em que aquele é um instrumento vital para as grandes estruturas criminosas. A fraude fiscal, a fraude transnacional propriamente dita, a evasão fiscal e o branqueamento de capitais têm exactamente os mesmos circuitos financeiros e económicos. Foram incrementadas pela corrupção e pelo desenvolvimento das novas tecnologias (fonte de grande poder à criminalidade dos lucros fabulosos). Gerou-se uma economia de mafias...
Não é a mesma coisa dizer economia de mafias ou economia paralela?!
Economia paralela é uma economia fora dos circuitos normais.
Então tanto pode ser uma organização criminosa ou uma coisa de vão de escada...
Há de tudo... Mas a grande questão, é que se a economia paralela não é combatida com resultados visíveis, a economia vai-se degradando. É como o pó em casa: temos de o limpar todos os dias e todos os dias há pó. A questão não é existir economia paralela mas ver quando há casos graves. Com os tribunais e as polícias no terreno, na investigação criminal, a distinguirem o que é grave do que não é, a atacarem o fenómeno naquilo que representa os aspectos lesivos para as empresas que estão licitamente no mercado. Por exemplo: uma empresa que cria outras empresas fictícias para simular transacções de IVA para o estrangeiro, para países da comunidade, para beneficiar depois de reembolsos ilícitos. Esta empresa, que cria uma empresa fictícia, para fraudulentamente ter direito ao reembolso do IVA, está a prejudicar empresas que têm uma actividade lícita no mercado e que podem ir à falência por causa de práticas lesivas, ou anti-concorrenciais.
E se num passe de mágica fosse possível acabar com toda a economia paralela nos diversos países...
A economia paralela é um fenómeno mais de terceiro mundo do que de países desenvolvidos. É um fenómeno de países que não fizeram a Revolução Industrial, como Portugal.
No nosso país já houve uma ideia de tributar o que não era legal. Acha que isso é uma solução?
A Lei Geral Tributária prevê situações dessas, mas já é uma solução de recurso, de desespero...
Se não os podes vencer...
Sim, enquanto não há saída... Como é que em Portugal existem – e estamos a falar de um país da Europa – indivíduos que dão entrevistas a proclamarem que ganham o salário mínimo e que, portanto, pagam o mínimo ou não pagam nada? E que depois têm um crédito ilimitado na banca? Há situações, no nosso país, de pessoas que não pagam impostos e adquirem sociedades por 300 mil contos. Como é que isto é possível? Como é possível que não se acenda uma luz encarnada no sistema? O sistema devia fazer um cruzamento de dados e, quando surgissem bens cuja proveniência não fosse justificada licitamente, devia proceder-se a uma averiguação. Se a proveniência é criminosa, porque não agir criminalmente? Em relação àqueles que são cumpridores, seria uma medida perfeitamente legítima. Caso contrário, ninguém pagava os impostos; mas, então, o que seria do Estado de direito? E como se pagavam as escolas, os hospitais, as polícias, a saúde, os tribunais?
Acha que a economia paralela é socialmente tolerada?
Em Portugal há uma atitude de tolerância. Talvez aquilo a que no Grupo de Estados Contra a Corrupção chamam – referindo-se a países onde existe essa tolerância – uma cultura de corrupção, na qual não existem exigências éticas. Por exemplo: as pessoas acham que o contrabando não tem mal nenhum, quando é considerado pela União Europeia como das actividades mais lesivas para o orçamento...
Recentemente, um gestor, António Carrapatoso, afirmou que devíamos ensinar nas escolas que o lobo mau não pagava impostos...
Acho que ele tem razão. Na República Popular da China ensinam às crianças os princípios de luta anti-corrupção, depois levam-nas às empresas para falarem dos tratados contra a corrupção, para ensinarem os mais velhos a não serem corruptos.
Talvez porque na China o desespero é total...
As pessoas deviam compreender que o combate à corrupção é uma tarefa de todos nós e que as próprias empresas têm interesse em combater a corrupção. Está em vigor, desde o ano passado, o crime de corrupção privada; ou seja, enquanto que o crime de corrupção no nosso país – e na maior parte dos países da Europa – estava ligado à violação dos deveres de um funcionário, ou de alguém que exercesse funções na Administração Pública, nos tribunais, no Governo, agora abrange o crime de corrupção às empresas. Um funcionário de uma multinacional, por exemplo, que receba dinheiro para prejudicar a empresa, suponhamos para praticar um acto contrário àquilo que são os seus deveres contratuais, pratica o crime de corrupção. Ainda não há nenhum caso, nenhum inquérito, mas já está previsto, creio que é a lei nº108/ 2001.
A ideia que existe é que o problema não está propriamente na produção legislativa mas na sua aplicação.
O nosso quadro legal é perfeito. O problema é a prática. Aliás, o nosso código legal só tem uma reforma neste momento a ser feita, do ponto de vista processual penal, que é a adaptação do processo penal às novas tecnologias de informação.
Quando se diz que se falha na aplicação, falha-se a que níveis?
Na criminalidade económica, falha-se porque há uma desigualdade tremenda na aplicação da justiça.
Isso não devia preocupar os responsáveis?
Devia porque, também disso depende a consolidação do Estado democrático.
Pode fazer uma análise das cifras negras do crime económico?
As cifras negras são enormes e prendem-se, sobretudo, com o tráfico de droga, associado ao contrabando de tabaco e álcool. Os transitários, os armazéns, as rotas que servem para uma coisa servem para outra. O tráfico de droga envolve grandes riscos porque as penas são pesadas e existem, de facto, prisões. No contrabando, até este momento, ninguém foi preso. Falo, evidentemente, do crime de contrabando organizado, aquele que interessa e que constitui a grande preocupação do OLAF, o Organismo de Luta Anti-Fraude da União Europeia. Portugal é a placa giratória dos circuitos internacionais deste contrabando.
Em virtude da inépcia das autoridades policiais?!
Não, não... O quadro legal é uma manta de retalhos. As competências estão divididas pela Polícia Judiciária, pela Brigada Fiscal, pelas alfândegas e pela GNR. Enquanto for assim, existirá gente responsável a mais, não existirá cruzamento de dados e as fiscalizações não funcionarão. Hoje em dia, o contrabando de tabaco representa um orçamento de milhões em IEC, os impostos especiais sobre o consumo. Um contentor de contrabando de tabaco que passe as barreiras alfandegárias sem pagar os impostos especiais sobre o consumo representa 200 mil contos. Segundo cálculos policiais, por cada contentor apreendido passam cinco.
Estávamos a falar das tipologias do crime económico...
... do crime económico, sim... Com peso em Portugal está o contrabando nas mercadorias sensíveis – álcool e tabaco –, questão com prejuízos enormes para todos os Estados membros. Está ligado ao tráfico de droga e envolve a criação de empresas fictícias, com testas-de-ferro. As finanças não conseguem cobrar os impostos especiais sobre o consumo porque essas empresas são tituladas por prostitutas, vadios, fulanos sem eira nem beira, que não têm bens. Outro aspecto é a fraude internacional, transnacional, aliada à corrupção, com utilização de off-shores para transferência de dinheiro. A fraude aparece em todo o lado; na utilização de circuitos bancários, através de empresas supostamente normais mas que só existem no papel. Quando se vai à suposta sede não está lá nada; é um cabeleireiro, uma empresa de modas, não sei o quê... São empresas que existem com o único fito da fraude internacional e em todas as matérias. Outra tipologia é a fraude ao IVA, quer com mercadorias supostamente importadas, quer supostamente exportadas. A fraude ao IVA em carrossel, ou seja, em vários países, em várias empresas, com facturas fictícias em cascata, de forma a obter reembolsos indevidos.
Portugal tem um longo historial nesse aspecto?!...
Na fraude ao IVA, cá, em Maio de 2002, foram presos dois membros do conselho de administração de uma determinada empresa.
Da área de informática?!
Sim. Está em segredo de justiça, não sei o que aconteceu até agora.
Os casos da Partex...
Esses são mais antigos. Fraude na obtenção de subsídios. É um tipo de criminalidade relativamente ultrapassada.
Também, com os subsídios a acabarem...
Pois, agora está a ser substituída por coisas mais sofisticadas, como a referida fraude ao IVA em carrossel ou as empresas fictícias para o contrabando organizado. O tráfico internacional de combustíveis, sem pagamento de IEC e de IVA; o tráfico internacional de viaturas importadas e sem pagar Imposto Automóvel e sem pagar o IVA.
Há quem diga que, apesar de tudo, Portugal é ainda um cantinho à beira mar plantado. Outros avaliam a situações de forma negra. Em que é que ficamos?
A situação é grave e existe um grande laxismo por parte das autoridades alfandegárias...
Os profissionais liberais são acusados de serem pouco cumpridores no que se refere a impostos.
O que consta é que as declarações de IRS não são compatíveis com os sinais exteriores de riqueza de determinadas pessoas.
E as empresas que continuamente dão prejuízo?
Lá está… Se calhar, estamos perante um fenómeno da economia paralela. Mas acho que o Governo está a tentar fazer qualquer coisa nesse campo.
Estas questões entroncam com o sigilo bancário...
Em matéria de sigilo bancário também houve um grande progresso. A Lei nº 5 de 2002, que entrou em vigor em Fevereiro, permite o acesso directo, por ordem da autoridade judiciária competente, às contas bancárias, nomeadamente no caso de crime fiscal. Essa lei também prevê a inversão – digamos assim – do ónus da prova em casos de condenação e se houver uma desproporção entre o património detido nos últimos cinco anos e os rendimentos líquidos. Aí, o Ministério Público pode propor aos tribunais a declaração de perda desses bens por proveniência criminosa. O proprietário é que terá de provar a origem lícita dos bens. Não conheço casos de aplicação, mas está em vigor e é muito importante. Há aqui um acento no património enquanto medida punitiva. Um pouco à semelhança do regime irlandês que, no entanto, vai mais longe, ao prever que aquele que não paga impostos e tem bens de fortuna pode ver declarada a perda administrativa desses bens. Ou há risco de facto para quem pisa o risco, ou não há risco. O que é que interessa ser cumpridor?
No crime económico, a recolha de elementos de prova é mais difícil?
É muito difícil. Porque o crime económico é sofisticado, aproveita as novas tecnologias de informação... Já repararam o que é, no decurso de um inquérito de crime económico, apanhar 10, 20 CPU?!... Está tudo lá, mas foi tudo apagado... Isto em relação às novas tecnologias, mas há ainda outros problemas. Por exemplo: o carácter internacional do crime económico. O criminoso económico está no mercado mundial, não é uma coisa que se passe só aqui no quintal. Tiremos o cavalinho da chuva!... Quando estava na polícia, houve uma falsificação de certificados de depósito supostamente emitidos pelo Banco da Argentina, vendidos com fraude a norte-americanos que os compraram convencidos de que eram verdadeiros. E quem é a criatura que vende e difunde nos Estados Unidos estes certificados de depósito? Um português.
E a questão do branqueamento de capitais?
Bom, isso é a dissimulação da origem do dinheiro sujo, outra das características do crime económico. Como se gera lucros fabulosos, tem de se lavar esses lucros.
Há sectores mais susceptíveis do que outros...
O imobiliário, o automóvel... Há obrigatoriedade de comunicação...
Na prática, parece que ninguém comunica...
A estatística é baixíssima. No sistema belga, a empresa que vende um carro topo de gama é obrigada a mandar para os impostos essa operação, cruzando-se depois essa informação com a declaração de rendimentos do comprador. Também é assim na Alemanha.
Bom, mas as dificuldades de investigação...
É um crime sofisticado, poderoso e normalmente é feito por via indirecta. É um crime opaco; não é como o tráfico de droga, que tem uma cara, um rosto visível, percebe-se o modus operandi, assim como no banditismo, no terrorismo... O crime económico é uma criminalidade muito mutável, muito criadora; uma coisa espantosa. Todos os dias, as polícias são confrontadas com novas modalidades do fenómeno. Uma das maiores dificuldades tem também a ver com a natureza empresarial do crime; são utilizadas empresas como fachada. Existe diluição da responsabilidade individual penal porque esta é, por vocação, individual. Se não se identifica o autor, estamos perdidos no processo-crime e, portanto, o crime é arquivado. O nosso sistema está definido a respeito das pessoas singulares, da responsabilidade penal individual; já a responsabilidade das pessoas colectivas só se prevê em determinados casos. Uma das recomendações do Grupo de Estados Contra a Corrupção é que seja legislada a responsabilidade das pessoas colectivas na prática destes crimes, quando esta é utilizada como um meio essencial de práticas fraudulentas, de crimes graves, etc. Muitos casos acabam por morrer porque não é possível encontrar o autor.
Perante estas questões, em sua opinião como funciona o Ministério da Justiça?
É muito grande, muito grande e, depois, tem muitas sensibilidades, muita clientela, muita gente, muitos sectores, muitas áreas, muitos campos, etc.
Há, portanto, quintas...
Pois, há o problema das quintas... Defendo que deveria de haver uma ética de responsabilidade, quem desse a cara e que respondesse pelos resultados. Sempre procurei mostrar os resultados e responder por eles. Foi por isso que me acusaram de protagonismo. Isto é um país pequeno demais, se calhar, não sei...
Falámos há pouco da dificuldade de investigação. E as dificuldades de julgamento?
Aí, aumentam. O grande problema é falta de especialização dos magistrados, nomeadamente na criminalidade grave. Porque um magistrado que está numa comarca, num tribunal, julga tudo, é um magistrado treinado em submeter o facto à norma e em despachar as coisas de acordo com um padrão. Quando lhe aparece um caso fora desse padrão, tem dificuldades enormes. É compreensível.
E soluções?
Nós não vamos descobrir aqui a pólvora. Vamos ver o que é que se passa lá fora. Espanha criou o Tribunal de Grande Instância Penal para os casos de criminalidade grave organizada. É o tribunal do Baltazar Garzón...
Também acusado de protagonismo...
Acho que injustamente, mas pronto... O Tribunal de Grande Instância julga processos de criminalidade organizada transnacional. Em França também já há estruturas especializadas na investigação, na acusação e no julgamento desses casos. Em Itália também. Em Portugal não existem essas estruturas, existe ao nível do Ministério Público mas não tem correspondência nos tribunais. A polícia faz uma investigação sofisticadíssima, avançadíssima e, depois, chega-se ao tribunal e o magistrado não consegue compreender o que tem diante de si.
E a questão das pressões, nos crimes de colarinho branco, quando envolve pessoas mediáticas...
Por princípio, o magistrado é imune a pressões... Os manuais de criminologia ligam a história do colarinho branco e a desigualdade no tratamento da justiça a uma interiorização da parte das polícias e das magistraturas da condição económica dos arguidos.
Uma questão de preconceito?!
Será uma questão cultural, que ninguém pode fiscalizar e que tem a ver com a formação dos magistrados. Eu desconfio muito de um magistrado que diga que não é influenciável. Um magistrado não deve ser influenciável, mas deve estar em guarda para a hipótese de, na sua própria estrutura mental, surgirem mecanismos de má compreensão de situações, seja por razões sociais, por razões da sua inserção de classe ou da condição da própria pessoa que é perseguida penalmente. Devemos estar em guarda, e isso significa admitir a hipótese de podermos ser influenciados mas influenciados honestamente, sem querer.
Ouve-se às vezes em conversas de rua que, em Portugal, no que toca a crimes de colarinho branco, que só João Vale e Azevedo é que teve mesmo azar...
No caso de Vale e Azevedo, o que sucedeu é que foi um processo rápido. Em menos de um ano e meio, o Tribunal de Primeira Instância considerou provado o crime de peculato e o Tribunal de Recurso considerou que a condenação era correcta e a condenação transitou em julgado em menos de um ano e meio. Ora, isto é uma coisa nova. Nunca tinha sucedido até agora uma tamanha celeridade num crime que envolveu uma investigação num paraíso fiscal, no caso Gibraltar. Aliás, Gibraltar, passando também pelo off-shore da Madeira.
Mas que condições houve para tamanha celeridade?
Teve a ver com as pessoas, com métodos de trabalho inovadores. A forma como foi investigado foi célere, graças a adopção de um método de cooperação com especialização. Tivemos a cooperação da Inspecção-Geral de Finanças, estabeleceu-se uma cooperação muito estreita com o Ministério Público, que acompanhou estreitamente a investigação da Polícia Judiciária, e esta fez uma investigação cirúrgica, descodificada para os magistrados, o que permitiu essa celeridade. Uma celeridade tal que até leva a que as pessoas desvalorizem.
Então, a partir de agora, vamos ter investigações e casos a transitar em julgado muito mais rapidamente?!
O que eu digo é que o método ficou lá, na polícia.
A forma como falou na colaboração das instituições parece que terá sido caso raro; uma espécie de favor...
A colaboração é um dever institucional. Mas a verdade é que vivemos num país de quintas. Mas a Inspecção-Geral de Finanças é uma entidade muito colaborante, muito eficiente e muito competente.
A interligação de instituições, como por exemplo o Banco de Portugal ou a CMVM, facilitaria muito mais o trabalho das polícias?!
Facilita, pois a ideia é obter cooperação com especialização. O Banco de Portugal para aquilo que tenha a ver com a moeda, por exemplo, e com as fraudes bancárias; a Inspecção-Geral de Finanças para o que tenha a ver com as questões fiscais... Devo dizer que, na minha pequena experiência na polícia, sempre tive a melhor colaboração de todas estas entidades: a melhor, a mais rápida, a mais eficiente. Só tenho a louvar.
Pode falar-se de actividades mais vulneráveis do que outras ao crime económico?
Há sectores vulneráveis, com mecanismos de controlo mais deficientes. A construção civil é um sector muito vulnerável à fraude...
Fala-se de milhares de empresas sem alvará... E depois há empresas aparentemente legítimas que mantêm relações com empresas que não estão na legalidade.
Se o risco for zero... A construção civil, as empreitadas de obras públicas, é uma área da qual sempre se falou mas não existe correspondência em número de inquéritos instaurados.
E o futebol, a que agora chamam indústria?
A minha análise criminológica no futebol... Claro, é um mundo onde há muito dinheiro em jogo, há visibilidade, interesses…
Por causa da visibilidade, da mediatização, não será hoje em dia mais fácil uma investigação na banca, ou até na construção civil, do que no futebol?
É evidente. Não podemos esquecer de que a investigação criminal tem de ser muito concreta e delimitada; não se pode investigar um sector inteiro. A investigação criminal é para casos graves e delimitados; é uma questão de irem surgindo ou não. Na área do crime económico há outro problema: ninguém se queixa. Não há queixa-crime porque é um crime sem vítima. Ou melhor, somos todos nós. A criminalidade participada nem sempre corresponde à criminalidade que está a acontecer. Aqui, como ninguém se queixa, tem de haver um levantamento de situações, feito pelas polícias, ou pelo Ministério Público.
Não é exclusivo do crime económico... No caso da Casa Pia, durante muito tempo, também não houve queixosos.
O caso da Casa Pia mistura fenómenos de repressão, de autoridade, de miséria, com fenómenos de comércio sexual de menores. Aliás, o fenómeno da pedofilia, sobretudo na Internet, é um mercado de milhões.
E está ligado ao crime económico.
É uma das suas manifestações. Gera lucros fabulosos. Neste momento, o suporte principal do comércio sexual de menores é a Internet. Recentemente, no Texas (EUA), foi desmantelada uma rede de pedofilia que tinha duzentos e cinquenta mil subscritores; cada um pagava setenta euros por mês. Havia, inclusive, violações em directo... Um negócio destes tem de ter um mercado e esse mercado tem de ter menores... Ora, esses menores são arregimentados de entre as crianças mais pobres, mais dependentes... Aliás, esta rede tinha as principais imagens produzidas na Indonésia e na Rússia. A pedofilia na Internet é considerada uma das manifestações mais graves do crime económico organizado e transnacional. E é uma criminalidade que se pratica a coberto do domicílio; basta ter um computador. É na própria residência, onde não entra ninguém sem mandato.
E é barato...
Sim, cada vez mais acessível. Devo sublinhar que, em Portugal, para as novas tecnologias de comunicação há uma falha legislativa grave. Não existe obrigação das operadoras de telecomunicações e dos ISP (prestadores de serviços de Internet) de guardarem, preservarem, os dados de tráfego, por forma detectar a casa de residência do dono do e-mail, o nome, quem envia a mensagem, ou seja, as questões essenciais para a determinação do autor do crime.
E as questões da confidencialidade?
A confidencialidade, a privacidade dos dados, tem de ser respeitada mas admite as excepções necessárias à prevenção e repressão de crimes. E os próprios operadores têm problemas de segurança. Vai começar em Março, na Boa Hora, o julgamento que envolve uma empresa chamada Alcazar; sites pornográficos que passavam da linha de serviços normais de Internet para chamadas de valor acrescentado, com um programa informático supostamente elaborado por um dos arguidos. O dono da empresa é um holandês, o programador é russo, o contabilista é espanhol, etc, e a empresa estava sediada na baixa lisboeta e tinha uma facturação de cerca de cinco mil contos por dia.
Houve queixa-crime?
Sim, dos desgraçados dos pais que, a certa altura, viram chegar contas de mil contos, quinhentos contos, porque os filhos entravam naqueles sites. Estas empresas, que são empresas, afinal de contas, de fachada e que praticam fraudes, estão no mercado ao lado das empresas honestas.
Existem grupos de trabalho da União Europeia para estudarem formas de combater estes fenómenos que não são, porém, muito conhecidos do cidadão comum...
Pois, não são... Mas definem orientações que podem, quanto mais não seja, inspirar o poder, já que são baseadas na experiência, no diagnóstico feito para a criminalidade de cada país.
Como é que vê o papel da Comunicação Social na denúncia destas situações?
Basicamente, tirando um ou outro excesso, a Comunicação Social tem desempenhado um bom papel. Às vezes há alguma superficialidade, uns exageros, mas basicamente tem tido um papel correcto e bom.
Falou-se muito de si na Comunicação Social. Ficou ressentida com alguma coisa?
Não. Quando falam de mim na Comunicação Social, é como se falassem de uma terceira pessoa; não me diz respeito.

CAIXA
»»» A vida é bela
Acreditou na revolução proletária chinesa e, com a teimosia própria da militância, encarou com orgulho a prisão. Quando o espírito deixou de torcer à esquerda, teve uma filha, enveredou pela magistradura. Chama-se Maria José Morgado e, aos 51 anos, depois da Polícia Judiciária, senta-se na cadeira dos juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.
Nasceu em Angola, durante a comissão de serviço do pai. Da terra de berço guarda apenas a «ideia de infância» e uma noção de pobreza. Lição que se lhe agarrou e lhe moldou o temperamento: «talvez venha daí a vontade de fazer qualquer coisa que pusesse termo à miséria e à repressão». A propósito do pai, quadro administrativo destacado da metrópole, diz Maria José: «quando chegava a qualquer lado fazia sempre uma igreja e uma escola, tinha preocupações humanitária muito grandes, mas fazia parte de um aparelho repressivo em Angola e representava a ocupação colonial».
A família (existe ainda uma irmã, hoje no mundo na moda) regressou antes do 25 de Abril e da leva dos que ganharam a alcunha de retornados. No continente encontra novamente o terreno da miséria, na aldeia do avô paterno, agricultor na região demarcada do Vinho do Porto, numa aldeia de nome Carlão. «Só vim para Lisboa para o sétimo ano e depois para a faculdade.» A marca da pobreza, «primeiro dos negros em Angola, depois dos camponeses em Trás-os-Montes», foi sempre coisa incómoda na memória e trouxe-lhe o desejo de alinhar pelas «causas justas».
Na universidade, Maria José não levou uma vida pacata. «Era uma agitadora», intitula-se. E à conta desse estado irrequieto de ser, a estudante foi presa pela PIDE. «Fazia parte da direcção da associação de estudantes da Faculdade de Direito de Lisboa, do movimento estudantil, daquelas coisas todas. Depois tive um processo disciplinar, fui expulsa da faculdade e a seguir presa pela PIDE, acusada de crimes contra a segurança do Estado.»
Como arguida, entrou pela primeira vez num tribunal. «Fui colocada em regime de liberdade provisória, com caução de setenta contos, em Fevereiro de 1974, com dois outros colegas que também estavam presos comigo... Para arranjar a quantia necessária, houve um peditório entre os estudantes.» Os pais enchem-se também de brios e o dinheiro que avançam reverte para o partido da filha, o MRPP. «Foi-lhes devolvido depois do 25 de Abril.»
Diga-se que a inusitada benesse da liberdade provisória chegara com uma Primavera, a Marcelista. «Foi a primeira vez que, com uma acusação tão grave, permitiram que se aguardasse julgamento em liberdade.» Mesmo assim, conhece a prisão de Caxias, entre Outubro de 1973 e Fevereiro de 1974. A PIDE queria que ela por lá ficasse oito anos. «Se não fosse a revolução, não me teria safado com menos.»
Mao na ponta da língua
Não se pense que a vida aos quadradinhos pesava à estudante Maria José. A condição de detida era o troféu das convicções. «A prisão fazia parte do programa; era a prova de que se era firme ou não, de que se acreditava nos ideais ou não. E os nossos ideais eram a revolução proletária na China... O bando dos quatro, aqueles radicalismos todos.» Lembra Godart e «La Chinoise» como o retrato perfeito, feito em filme, de como «tudo aquilo era absurdo». «Éramos todos muito teimosos, muito mecanicistas e não havia nada que nos fizesse mudar daquele rumo. O marxismo-leninismo na sua versão mais teimosa. Quando a PIDE me levou, ia para a prisão com as citações do presidente Mao Tse Tung decoradas.»
Depois, o mundo rodou. «Logo a seguir ao 25 de Abril, estive presa pelo COPCON, pelo Otelo, por associação de malfeitores. Na altura, o MRPP chamava ao COPCON a nova PIDE e eles consideraram que nós éramos uma associação de malfeitores e desataram a prender-nos... O meu mandato de captura estava em branco.»
Novamente atrás das grades, Maria José reflecte: acha que «o marxismo-leninismo é uma ideologia mecanicista e pouco segura...». «Quando saí já não tinha convicções revolucionárias iguais às anteriores. Gradualmente fui interiorizando uma rotura com o marxismo-leninismo e abandonei o MRPP.» Antes de se divorciar da política – «por desilusão completa» – ainda passa pela UDP. Depois casa em segundas núpcias com uma profissão. «Quando abandonei a militância partidária, decidi acabar o curso... Nunca fui pessoa de servir a dois senhores ao mesmo tempo... E fui para a magistratura.»
A Justiça não é uma causa utópica. «Os tribunais cumprem a sua missão caso a caso. São casos concretos, nada mais do que isso. Se num se fizer justiça, já é uma grande missão.»
Em 2000 entrou pela porta da Judiciária para uma etapa marcante mas curta demais. Com nova ministra de novo governo, Maria José Morgado sai ao fim de ano e meio em funções. A propósito desse tempo... «Não sabia o que ia encontrar... Fui pela convicção de combate à corrupção. Durante toda a minha carreira sempre achei que o meu lugar era o tribunal e no Tribunal de Primeira Instância. Em sítios quanto mais difíceis melhor...» Passou pelo Tribunal de Instrução Criminal, durante dois anos, mas a sua carreira ficará para sempre associada à Boa Hora. Agora, arribou lá para as bandas da Rua do Arsenal, no Tribunal da Relação de Lisboa. «Só aceitei a promoção porque me garantiram que não me retiravam da área crime.» E foi lá que desabafou: «quanto mais experiência temos e mais subimos na carreira, mais afastados ficamos do terreno; esse é o verdadeiro drama.» FC

CAIXA
Palavras Cruzadas
· Contabilidade criativa - que não seja fraude; penso em fraude mas não devia pensar
· Saco azul - crime organizado e branqueamento
· Ética - responsabilidade, isenção, imparcialidade
· Jogo de influências - tráficos
· Planeamento fiscal - cumprimento
· Zona franca - lavagens de dinheiro (sujo ou cinzento; o dinheiro negro é uma distinção que fazem os anglo-saxónicos e que provém de crimes graves; o dinheiro cinzento é o que vem da fraude fiscal)
· Testa de ferro - fraude organizada, organizadíssima
· Luvas - corrupção, tráfico de influências
· Informador - descoberta da verdade (ponto de interrogação)
· Corrupção - degradação da democracia, do Estado
· Polícia Judiciária - operacionalidade (estou a ser espontânea)

domingo, 10 de setembro de 2006

O Sporting na segunda jornada

Pareceu-me um jogo tranquilo o Nacional – 0, Sporting – 1 (Nani); tranquilo para o Sporting, já se vê. Fiquei contente com a vitória, com os três pontos e com o facto de a equipa alinhar quase na totalidade com jogadores que não têm uma relação difícil com a bola. Explico… Jogadores de campo: Miguel Garcia, Tonel, Polga, Ronny, Miguel Veloso, João Moutinho, Nani, Romagnoli, Liedson e Bueno – tirando Polga, que é sempre um perigo, são todos bons ou pelo menos razoáveis; bons, Ronny, Miguel Veloso, João Moutinho, Nani, Romagnoli e Liedson; razoáveis os outros; Alecsandro estreou-se e parece melhor que Bueno, mas não deve ser nenhum Liedson; João Alves jogou uns minutos e não destoa na equipa; Rodrigo Tello a mesma coisa, mas dele não vale a pena esperar muito, joga e pronto. Outra coisa que me deixou contente, a possibilidade de ver a equipa sem Caneiras, Custódios e outras aves raras parecidas. Falta Ricardo: não deu problemas e portanto vale a pena cada sportinguista, segundo o respectivo credo, agradecer da forma mais conveniente.

domingo, 3 de setembro de 2006

Podia ser, mas não foi

«Eu podia ser um bom ministro.» Esta frase vinha na capa do Jornal de Negócios de dia 18 de Agosto (foi agora para o lixo e por isso me lembrei). Acompanhava Francisco Murteira Nabo, que desta vez anda pela Galp num dos cargos do costume, chairman, que como muitos outros cargos passou por cá a ter denominação inglesa. «Podia ser um bom ministro», disse à entrevistadora, nada mais nada menos do que Anabela Mota Ribeiro, que lá conduziu as coisas sem grandes ondas e a fazer do entrevistado (na capa do jornal de fato e gravata, deitado à beira de uma piscina) uma vítima de perseguição. «Podia ser um bom ministro», disse ele. Não disse é que podia não ter burlado o Estado a cujo governo pertencia, burla essa que o obrigou a demitir-se (quando a comunicação social descobriu). Foi então ministro por um curto período, que é o que deve colocar no currículo. Será que acrescenta as razões da demissão? E será que na Galp (e o mesmo vale para a PT, que o acolheu depois da saída do governo) não sentem vergonha de o terem na liderança?