Com este post, dou início neste blog à publicação de alguns textos sobre livros, textos que escrevi para jornais, revistas e programas de rádio. Escolhi para começar precisamente o único que é inédito, pois na revista para que foi escrito não o publicaram. É sobre um livro de Ray Bradbury chamado «Vamos Todos Matar Constance».
Livro: «Vamos Todos Matar Constance», de Ray Bradbury (Publicações Europa-América, 205 pp.)
Se não fosse pedir muito
As ideias de Bradbury mereciam uma escrita mais cuidada, e mais densa, sem substituir a narração por itálicos, maiúsculas e coisas do género. E, já agora, se não fosse pedir muito, que o começo não se revelasse tão penoso.
Só que com «Vamos Todos Matar Constance» disponível um pouco por todo a parte, e ainda por cima com milhares e milhares de fãs com o livro em casa, é mesmo pedir muito. Já não há nada a fazer, ou melhor, a pedir. Enfim, um desespero... Como o de Constance Rattigan, «ou, como era vulgarmente chamada, A Rattigan», antiga vedeta de Hollywood. Venice, Califórnia, uma noite de tempestade... «A Rattigan» chega, com os «clarões tremeluzentes que racham o céu», ao bungalow do escritor-narrador, depois de correr «rapidamente à frente da Morte». A mulher está molhada que nem um pintainho, e bate os dentes, a mulher treme, o que até nem é caso para menos, pois a verdade é que correu à frente da morte, a que o escritor-narrador dá honras de letra maiúscula - como ao tempo, «o Tempo» - e, nalguns casos, modela a itálico, «A Morte»; e mais, traz dois livrinhos com nomes de pessoas ou já mortas ou «marcadas», «especiais». «- Especiais, sim. Não estão mortos. Ou assim o penso. Mas estão marcados, não estão? Com uma cruz a seguir ao nome, o que significa o quê?» Recuando um bocadinho... «- Dois quase-Livros dos Mortos - disse eu./ - Quase, sim - disse Constance. - Olha aqui, e aqui, e também aqui.»
Bom, o escritor-narrador partilha a cama com Constance, «A Rattigan» («- Cama e abraços? Mas nada de educação física!»), mas quando acorda já não a vê. «Três da manhã», a hora em que «todas as almas morrem quando precisam de morrer.» (?). Quinze minutos antes... «Às duas e quarenta e cinco, no meio da tempestade escura, um terrível relâmpago embateu contra a terra, por detrás do meu bungalow. O som do trovão irrompeu. Ratos morreram nas paredes.» (?) Mais tarde... «Às seis da manhã, o alvorecer estava lá fora, algures, mas não se conseguia ver devido à chuva. Os relâmpagos ainda dardejavam e tiravam fotografias da maré abatendo-se sobre a costa.» O escritor-narrador sabe que se se «esticasse através da cama, o outro lado estaria vazio». Mas sabe mais... «- Está tudo bem contigo! - gritei.»
O escritor-narrador vai ter com Crumley. «- Crumley, é o Doido. Deixa-me entrar!/ - Nem penses - replicou a voz de Crumley, agora em estado líquido, pois ele já abrira a primeira cerveja. - A tua mulher telefonou./ - Raios! - sussurrei./ Ouvi Crumley engolir./ - Ela disse que, de cada vez que deixa a cidade, tu cais do pontão afundando-te profundamente em excrementos, ou cortas ao meio com um golpe de karaté um par de anãs lésbicas.»
Isto é só mesmo o início, cinco dos pequeninos capítulos. A história acaba por ir dar a algum sítio, onde se descobre o que Bradbury tenta esconder a todo o momento, depois de insinuações que muitas vezes não têm mais do que duas ou três linhas a separá-las. Leva o leitor amarrado a essa espécie de trela, e assim se caminha. Quem não tropeçar em itálicos e em tantos outros recursos estilísticos de Bradbury, chegará feliz e sem nódoas negras. Ao final, quando uma onda rebenta. «Crumley, Fritz, Henry, Maggie, e eu suspendemos a respiração.» É a penúltima frase, e nela tropecei numa vírgula a mais. Não caí, por ser apenas uma vírgula, mas até aí, bom, até aí só eu é que sei.
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