Mais um post com um texto que em tempos escrevi sobre um livro.
Livro: «Desaparecido no Salon du Livre», de Júlio Conrado (Bertrand Editora, 159 pp.)
Em terra regada de manhosos, para utilizar uma expressão de um amigo meu (o jornalista Tiago Salazar), seria difícil a cultura escapar, também ela, de ter os seus manhosos. Aliás, e pensando um pouco, talvez seja exactamente na cultura que se encontram por cá dos manhosos mais proeminentes. Vem isto a propósito de um romance de Júlio Conrado, «Desaparecido no Salon du Livre».
Mas como com os manhosos não vale a pena perder muito tempo, vamos à trama de «Desaparecido no Salon du Livre». O narrador chama-se Joel Boaventura e é detective privado. O que tem para contar, no caso a um jovem advogado, é a história do desaparecimento de Aureliano Viegas, professor no secundário e escritor de romances de amor nas horas vagas. Aureliano não integra os escritores seleccionados para o Salon du Livre, em Paris, contudo também faz a viagem, a convite da editora francesa de um seu romance, acabadinho de traduzir. O pior é que no regresso da comitiva a Portugal, de Aureliano nem sinal. E aí Joel Boaventura é chamado a intervir, a pedido da esposa do escritor, que com ela deixou um dossier cheio de indicações sobre os perigos que corria. Boaventura embrenha-se então em terrenos que lhe parecem pantanosos, os dos lobbies das letras portuguesas, para ver se descobre o que aconteceu ao infeliz Aureliano. Vai chegar, em duas penadas, ao comissário português ao Salon du Livre, o gorducho Inocêncio Píndaro, provavelmente o manhoso maior, ou antes, o mais gordo. Será ele o responsável pelo desaparecimento de Aureliano Viegas?
Conta Joel Boaventura ao jovem advogado, de seu nome Carlos Morales – Aureliano Viegas diz ter reconhecido logo na escolha dos nomes as unhas de veludo do comissário Píndaro. Dramaturgos, não havia. Escritores da área infanto-juvenil, idem, aspas. Poetas e prosadores, os dos circuitos do poder estavam lá todos, os outros nem por isso, salvo os amigos do costume. Críticos literários, dois ou três. Sobre a Associação dos Críticos e a Sociedade dos Autores nem uma palavra, vindo a confirmar-se mais tarde que tinham ficado de fora dos convites institucionais. Enfim, Morales, como vê, ainda quase ninguém sabia que «Um Homem Comum na Revolução dos Cravos» seria lançado no Salon, o que por si só explicava a ausência do Aureliano dessa primeira lista, e já este se auto-excluía lavrando o seguinte vaticínio sobre uma sua hipotética integração na selecção dos escritores a mandar a França com o maillot das quinas orgulhosamente colado ao tronco: Nunca o I. Píndaro, rancoroso como é, incluiria na delegação um tipo que ousou escrever um artigo em que, entre outras coisas, o censurava por não saber dançar. Por não saber dançar? Ó Morales: você vê lógica nisto? Por não saber dançar? É de gritos! Estaria o Aureliano a ficar pirulas, quando exarou nos seus documentos esta patusca anotação?
De facto, o comissário Inocêncio Píndaro não sabia dançar, principalmente por falta de ajuda da carcaça bem desenvolvida para os lados. Algumas páginas à frente deste «Desaparecido no Salon du Livre», vamos encontrar Diana, a assistente de Joel Boaventura, bem enturmada com o comissário, a representar o papel de massagista e professora de dança. Os dois conversam numa esplanada:
- E o senhor o que faz, se não é indiscrição?
- Guru. Sou o guru da literatura portuguesa. Um sábio.
- Oh, que giro! Nunca tinha falado com um sábio. É bom ser sábio?
- Levam-se uns tantos pontapés.
- Tenhas tu cu, não te faltarão pontapés, diz o povo, cheio de razão, como sempre.
- Cu é coisa que não me falta.
Mais adiante:
- Quer dizer: quem quiser ser alguém, na literatura, tem de lhe ir ao beija-mão, é isso?
- Não exageremos, sou apenas um modesto sábio condutor de opinião. Não deixe passar o meu artigo de hoje no «Audiência». Toco os mais diversos problemas da sociedade de que sou guardião. Leia o «Audiência». Zurzo o presidente da Câmara de uma ponta à outra do texto. Moro nesta vila, tenho direito a zurzi-lo. É incrível o que se passa com a selva do betão. O homem anda a transformar o paraíso no inferno, mas vai pagar a factura nas próximas eleições, disso pode ele estar absolutamente seguro. Se sou eu que o digo...
- Cuidei que fosse um sábio da literatura e pronto.
- Sou um sábio de tudo e mais alguma coisa. Literatura, economia, futebol (estou a ficar especialista em prognósticos dos resultados dos jogos), política, cinema, fado, especialmente o que se canta em França. Vejo sempre o mundo em termos de estrutura. Tudo tem a ver com tudo. Nada me escapa.
Como há-de descobrir Joel Boaventura, nem o pobre Aureliano Viegas escapou.
Livro: «Desaparecido no Salon du Livre», de Júlio Conrado (Bertrand Editora, 159 pp.)
Em terra regada de manhosos, para utilizar uma expressão de um amigo meu (o jornalista Tiago Salazar), seria difícil a cultura escapar, também ela, de ter os seus manhosos. Aliás, e pensando um pouco, talvez seja exactamente na cultura que se encontram por cá dos manhosos mais proeminentes. Vem isto a propósito de um romance de Júlio Conrado, «Desaparecido no Salon du Livre».
Mas como com os manhosos não vale a pena perder muito tempo, vamos à trama de «Desaparecido no Salon du Livre». O narrador chama-se Joel Boaventura e é detective privado. O que tem para contar, no caso a um jovem advogado, é a história do desaparecimento de Aureliano Viegas, professor no secundário e escritor de romances de amor nas horas vagas. Aureliano não integra os escritores seleccionados para o Salon du Livre, em Paris, contudo também faz a viagem, a convite da editora francesa de um seu romance, acabadinho de traduzir. O pior é que no regresso da comitiva a Portugal, de Aureliano nem sinal. E aí Joel Boaventura é chamado a intervir, a pedido da esposa do escritor, que com ela deixou um dossier cheio de indicações sobre os perigos que corria. Boaventura embrenha-se então em terrenos que lhe parecem pantanosos, os dos lobbies das letras portuguesas, para ver se descobre o que aconteceu ao infeliz Aureliano. Vai chegar, em duas penadas, ao comissário português ao Salon du Livre, o gorducho Inocêncio Píndaro, provavelmente o manhoso maior, ou antes, o mais gordo. Será ele o responsável pelo desaparecimento de Aureliano Viegas?
Conta Joel Boaventura ao jovem advogado, de seu nome Carlos Morales – Aureliano Viegas diz ter reconhecido logo na escolha dos nomes as unhas de veludo do comissário Píndaro. Dramaturgos, não havia. Escritores da área infanto-juvenil, idem, aspas. Poetas e prosadores, os dos circuitos do poder estavam lá todos, os outros nem por isso, salvo os amigos do costume. Críticos literários, dois ou três. Sobre a Associação dos Críticos e a Sociedade dos Autores nem uma palavra, vindo a confirmar-se mais tarde que tinham ficado de fora dos convites institucionais. Enfim, Morales, como vê, ainda quase ninguém sabia que «Um Homem Comum na Revolução dos Cravos» seria lançado no Salon, o que por si só explicava a ausência do Aureliano dessa primeira lista, e já este se auto-excluía lavrando o seguinte vaticínio sobre uma sua hipotética integração na selecção dos escritores a mandar a França com o maillot das quinas orgulhosamente colado ao tronco: Nunca o I. Píndaro, rancoroso como é, incluiria na delegação um tipo que ousou escrever um artigo em que, entre outras coisas, o censurava por não saber dançar. Por não saber dançar? Ó Morales: você vê lógica nisto? Por não saber dançar? É de gritos! Estaria o Aureliano a ficar pirulas, quando exarou nos seus documentos esta patusca anotação?
De facto, o comissário Inocêncio Píndaro não sabia dançar, principalmente por falta de ajuda da carcaça bem desenvolvida para os lados. Algumas páginas à frente deste «Desaparecido no Salon du Livre», vamos encontrar Diana, a assistente de Joel Boaventura, bem enturmada com o comissário, a representar o papel de massagista e professora de dança. Os dois conversam numa esplanada:
- E o senhor o que faz, se não é indiscrição?
- Guru. Sou o guru da literatura portuguesa. Um sábio.
- Oh, que giro! Nunca tinha falado com um sábio. É bom ser sábio?
- Levam-se uns tantos pontapés.
- Tenhas tu cu, não te faltarão pontapés, diz o povo, cheio de razão, como sempre.
- Cu é coisa que não me falta.
Mais adiante:
- Quer dizer: quem quiser ser alguém, na literatura, tem de lhe ir ao beija-mão, é isso?
- Não exageremos, sou apenas um modesto sábio condutor de opinião. Não deixe passar o meu artigo de hoje no «Audiência». Toco os mais diversos problemas da sociedade de que sou guardião. Leia o «Audiência». Zurzo o presidente da Câmara de uma ponta à outra do texto. Moro nesta vila, tenho direito a zurzi-lo. É incrível o que se passa com a selva do betão. O homem anda a transformar o paraíso no inferno, mas vai pagar a factura nas próximas eleições, disso pode ele estar absolutamente seguro. Se sou eu que o digo...
- Cuidei que fosse um sábio da literatura e pronto.
- Sou um sábio de tudo e mais alguma coisa. Literatura, economia, futebol (estou a ficar especialista em prognósticos dos resultados dos jogos), política, cinema, fado, especialmente o que se canta em França. Vejo sempre o mundo em termos de estrutura. Tudo tem a ver com tudo. Nada me escapa.
Como há-de descobrir Joel Boaventura, nem o pobre Aureliano Viegas escapou.
Júlio Conrado (n. Olhão, 1936) vive desde criança na linha do Estoril. Escritor, poeta e crítico literário, assinou com «Desaparecido no Salon du Livre» um dos mais conseguidos romances que a literatura portuguesa deu a conhecer nos últimos anos. Para ler de um fôlego e talvez a lamentar que só tenha centena e meia de páginas.
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