Em tempos escrevi uma crónica inspirada num ministro com nome de futebolista que por cá havia, o Fernando Gomes. Tinha a ver com touros. Estava longe de imaginar que alguns anos depois um outro ministro iria fazer-me lembrar de touros. Deixo a crónica a seguir.
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Ministros de morte em Barrancos
Eu vi, mas não vi tudo. Foi num noticiário televisivo das oito da noite, coisa de há uns anos. Lembro-me de que o canal era a TVI e o apresentador um relativamente conhecido mas talvez não o suficiente para se tornar romancista, José Carlos Castro. O que passava era imagens de gente eufórica num cercado de Barrancos. Noutros canais, na volta, a coisa era parecida. A certa altura mostraram um touro, enorme, ainda com alguma altivez, mas já com as forças a fugirem-lhe. Parecia ter a vida presa eu nem conseguia imaginar a quê; talvez a umas gotas de sangue, as que teimavam em não sair pelos buracos que antes lhe tinham feito. O touro fazia um barulho horrível, de arrepiar. De repente, aproximou-se um homem; um cobarde que meia-hora antes o mais certo era estar empoleirado nalgum sítio seguro do cercado. Começou a fazer mais buracos no touro, desta vez na cabeça. Não percebi se o fazia com uma faca se era com um pau afiado, ou um ferro; fosse lá com o que fosse. A multidão estava em delírio. Parecia que tinha saído a lotaria a toda a gente, ou que para todos, de repente, tinham anunciado um subsídio bem nutrido da União Europeia. As imagens tremiam; lembro-me de que pensei que o operador de câmara não estava a gostar do serviço que o tinham mandado fazer. Quem poderia gostar de sair de Lisboa e fazer mais de duzentos quilómetros para se meter em filmagens em pleno inferno?
Mudei de canal antes do final da reportagem, e ainda com o touro a aguentar-se nas patas. Mas com o cobarde cada vez mais atrevido. Quando regressei ao noticiário, uns cinco minutos depois, o cenário era bem diferente. Como se tivessem pensado em amenizar as coisas, tinham metido um ministro. Talvez já pouca gente se lembre dele, pelo menos como ministro; era um dos de António Guterres, com nome de jogador de futebol. Pensei que o assunto era outro, com um ministro em vez de um touro massacrado, mas não, continuava tudo na mesma. Talvez os responsáveis do noticiário tivessem achado que um ministro ficava bem a seguir a um touro de morte – ou a seguir à morte de um touro, para ser exacto. Poderiam assim acabar a reportagem, nem sei se devo usar a expressão, em beleza.
Na altura tinham tomado decisões para Barrancos, para os touros e para as gentes das redondezas. Eu cada vez ligava menos ao caso, porque para mim estava mais do que visto que dali nunca haveria de sair nada de jeito, e por isso fui apanhado de surpresa com a presença do ministro a seguir ao touro e ao cobardolas. O ministro trocou-se todo, falou de multas, de excepções, de valores até oitenta mil contos, de cinquenta mil escudos (estava quase a chegar o euro), de leis e o país isto e mais aquilo. Estava na televisão, afinal, por causa do touro. E eu pensava que era por causa do «Euro 2000», o campeonato da Europa de futebol, que estava para começar e onde ele já tinha feito saber – como outros cromos da governação – que haveria de marcar presença. Era na Bélgica, e também na Holanda, terra conhecida igualmente por Países Baixos, mas baixos só de topografia, porque o adjectivo, com coisas como aquelas do touro no cercado, se calhar justificava-se mais cá para as nossas bandas.
O ministro acabou por sair do noticiário. De repente, como o touro deveria ter saído – só que o ministro saiu vivo, enquanto o touro muito provavelmente morto e já sem uma pinga de sangue, quem sabe arrastado por algum tractor. O apresentador, com um ar de escandalizado que qualquer pessoa abaixo de secretário de Estado haveria de fazer, ou talvez abaixo de chefe de gabinete, o apresentador explicou tudo. Mesmo assim eu não compreendi. O ministro tinha acabado de anunciar que aquelas selvajarias se fossem praticadas em Portugal podiam dar multas até aos oitenta mil contos, exceptuado se acontecessem em Barrancos, onde ficariam só pela «módica quantia» de cinquenta mil escudos. De euros, nessa altura ainda nem sinal.
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Ministros de morte em Barrancos
Eu vi, mas não vi tudo. Foi num noticiário televisivo das oito da noite, coisa de há uns anos. Lembro-me de que o canal era a TVI e o apresentador um relativamente conhecido mas talvez não o suficiente para se tornar romancista, José Carlos Castro. O que passava era imagens de gente eufórica num cercado de Barrancos. Noutros canais, na volta, a coisa era parecida. A certa altura mostraram um touro, enorme, ainda com alguma altivez, mas já com as forças a fugirem-lhe. Parecia ter a vida presa eu nem conseguia imaginar a quê; talvez a umas gotas de sangue, as que teimavam em não sair pelos buracos que antes lhe tinham feito. O touro fazia um barulho horrível, de arrepiar. De repente, aproximou-se um homem; um cobarde que meia-hora antes o mais certo era estar empoleirado nalgum sítio seguro do cercado. Começou a fazer mais buracos no touro, desta vez na cabeça. Não percebi se o fazia com uma faca se era com um pau afiado, ou um ferro; fosse lá com o que fosse. A multidão estava em delírio. Parecia que tinha saído a lotaria a toda a gente, ou que para todos, de repente, tinham anunciado um subsídio bem nutrido da União Europeia. As imagens tremiam; lembro-me de que pensei que o operador de câmara não estava a gostar do serviço que o tinham mandado fazer. Quem poderia gostar de sair de Lisboa e fazer mais de duzentos quilómetros para se meter em filmagens em pleno inferno?
Mudei de canal antes do final da reportagem, e ainda com o touro a aguentar-se nas patas. Mas com o cobarde cada vez mais atrevido. Quando regressei ao noticiário, uns cinco minutos depois, o cenário era bem diferente. Como se tivessem pensado em amenizar as coisas, tinham metido um ministro. Talvez já pouca gente se lembre dele, pelo menos como ministro; era um dos de António Guterres, com nome de jogador de futebol. Pensei que o assunto era outro, com um ministro em vez de um touro massacrado, mas não, continuava tudo na mesma. Talvez os responsáveis do noticiário tivessem achado que um ministro ficava bem a seguir a um touro de morte – ou a seguir à morte de um touro, para ser exacto. Poderiam assim acabar a reportagem, nem sei se devo usar a expressão, em beleza.
Na altura tinham tomado decisões para Barrancos, para os touros e para as gentes das redondezas. Eu cada vez ligava menos ao caso, porque para mim estava mais do que visto que dali nunca haveria de sair nada de jeito, e por isso fui apanhado de surpresa com a presença do ministro a seguir ao touro e ao cobardolas. O ministro trocou-se todo, falou de multas, de excepções, de valores até oitenta mil contos, de cinquenta mil escudos (estava quase a chegar o euro), de leis e o país isto e mais aquilo. Estava na televisão, afinal, por causa do touro. E eu pensava que era por causa do «Euro 2000», o campeonato da Europa de futebol, que estava para começar e onde ele já tinha feito saber – como outros cromos da governação – que haveria de marcar presença. Era na Bélgica, e também na Holanda, terra conhecida igualmente por Países Baixos, mas baixos só de topografia, porque o adjectivo, com coisas como aquelas do touro no cercado, se calhar justificava-se mais cá para as nossas bandas.
O ministro acabou por sair do noticiário. De repente, como o touro deveria ter saído – só que o ministro saiu vivo, enquanto o touro muito provavelmente morto e já sem uma pinga de sangue, quem sabe arrastado por algum tractor. O apresentador, com um ar de escandalizado que qualquer pessoa abaixo de secretário de Estado haveria de fazer, ou talvez abaixo de chefe de gabinete, o apresentador explicou tudo. Mesmo assim eu não compreendi. O ministro tinha acabado de anunciar que aquelas selvajarias se fossem praticadas em Portugal podiam dar multas até aos oitenta mil contos, exceptuado se acontecessem em Barrancos, onde ficariam só pela «módica quantia» de cinquenta mil escudos. De euros, nessa altura ainda nem sinal.
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Dias depois, na Holanda, a seguir à vitória da nossa selecção sobre a Inglaterra, o mesmo ministro com nome de jogador de futebol colocou-se à frente dos adeptos que estavam a ser filmados para um canal de televisão que não aquele do touro. Estava todo contente, o ministro, mas quando lhe puseram um barrete quase de campino na cabeça tirou-o logo, e ainda por cima pondo-se com ares de irritação. Onde é que já se tinha visto uma coisa assim, um barrete verde, vermelho e amarelo e com o escudo nacional com as cinco chagas de Cristo numa pessoa de fato e gravata, ainda por cima ministro da nação? Era a pergunta que parecia atravessar-lhe o pensamento.
Quanto a mim, o que me atravessou o pensamento ao ver aquilo foi ainda a diferença das multas para castigar as selvajarias. Mas por quê uma diferença tão disparatada? De cinquenta contos a oitenta mil, se não me falhavam as contas, ainda iam setenta e nove mil e novecentos e cinquenta (contos, que os euros estavam para chegar mas ainda não tinham chegado). Podia dizer-se que dava para comprar duas casas em Lisboa. Ou que dava para os administradores da Lazio de Roma pagarem três semanas do salário de Luís Figo, se o conseguissem contratar – e na altura bem que andavam a tentar.
O que teria Barrancos de tão especial? A cultura? A tradição? Era nisto que eu pensava. E a certa altura lembrei-me… E se o ministro lá fosse, a Barrancos, como tinha ido para as europas, ele mesmo, de fato e gravata e sem barrete com as cores de Portugal? Se fosse ele em pessoa multar os matadores de touros e toda a gente que participava naquelas selvajarias? E se algum mais destrambelhado o levasse para o meio do cercado e depois de umas voltas se lembrasse de afiambrá-lo com uma estocada? Sempre seria coisa, em casos normais, para dar uns vinte anos de prisão, nomeadamente se a estocada fosse fatal. Mas acontecendo a tragédia em Barrancos talvez com dois anos de pena suspensa tudo se resolvesse. «Além do mais», haveria de desculpar-se o artista, «o senhor ministro entrou na festa sem o barrete da selecção.»
.Quanto a mim, o que me atravessou o pensamento ao ver aquilo foi ainda a diferença das multas para castigar as selvajarias. Mas por quê uma diferença tão disparatada? De cinquenta contos a oitenta mil, se não me falhavam as contas, ainda iam setenta e nove mil e novecentos e cinquenta (contos, que os euros estavam para chegar mas ainda não tinham chegado). Podia dizer-se que dava para comprar duas casas em Lisboa. Ou que dava para os administradores da Lazio de Roma pagarem três semanas do salário de Luís Figo, se o conseguissem contratar – e na altura bem que andavam a tentar.
O que teria Barrancos de tão especial? A cultura? A tradição? Era nisto que eu pensava. E a certa altura lembrei-me… E se o ministro lá fosse, a Barrancos, como tinha ido para as europas, ele mesmo, de fato e gravata e sem barrete com as cores de Portugal? Se fosse ele em pessoa multar os matadores de touros e toda a gente que participava naquelas selvajarias? E se algum mais destrambelhado o levasse para o meio do cercado e depois de umas voltas se lembrasse de afiambrá-lo com uma estocada? Sempre seria coisa, em casos normais, para dar uns vinte anos de prisão, nomeadamente se a estocada fosse fatal. Mas acontecendo a tragédia em Barrancos talvez com dois anos de pena suspensa tudo se resolvesse. «Além do mais», haveria de desculpar-se o artista, «o senhor ministro entrou na festa sem o barrete da selecção.»
2 comentários:
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