«Balada da Praia dos Cães», de José Cardoso Pires (Publicações Dom Quixote, 256 pp. na minha edição de bolso)
Recordar José Cardoso Pires
Recordar José Cardoso Pires
Com escrevi aqui, vai sair este mês um romance inédito de José Cardoso Pires, na nova editora de Nelson de Matos. Pretexto para recordar o que escrevi em finais de 2000 sobre um romance do autor, que tinha falecido dois anos antes, o notável «Balada da Praia dos Cães»; o texto serviu de suporte a uma das emissões de um programa de rádio, sobre livros.
Vamos recuar até ao ano já distante de 1982. É a forma de chegar a um livro emblemático de um escritor desaparecido não há muito tempo. Refiro-me a «Balada da Praia dos Cães», de José Cardoso Pires, editado pelas Publicações Dom Quixote.
José Augusto Neves Cardoso Pires nasceu no dia dois de Outubro de 1925, na Beira Baixa, em São João do Peso, e veio a falecer no dia 26 de Outubro de 1998, em Lisboa. Faz agora dois anos, mas a mim ainda me parece que foi ontem.
Apesar das suas origens, Cardoso Pires não gostava nada do campo, e da Beira Baixa então nem se fala. À primeira vista, será difícil compreender essa aversão, mas se atentarmos na explicação do próprio escritor para o que denominava de «mal português», as coisas mudam de tom. O «mal português» vinha dos ares da Beira, da pequena burguesia (que se calhar já se mudou para as grandes cidades e passou a chamar-se classe média), e vinha sobretudo de Salazar. Como compreendo Cardoso Pires... Também eu não haveria de gostar de que Salazar fosse algarvio, e então se por azar (ou até por sal e azar ao mesmo tempo, como diria Pessoa), se por azar tivesse visto a luz do dia pela primeira vez na minha terra, em Monchique, bem, aí é que seria a vergonha completa para mim.
José Cardoso Pires era um Lisboeta convicto. Os pais fixaram-se em Lisboa quando ele era ainda criança, de forma que cresceu em Arroios, fugindo da escola a sete pés para ver de perto os mais conceituados figurões da Almirante Reis (por exemplo, carteiristas, chulos ou pequenos aldrabões). Habituou-se desde miúdo a frequentar com o mesmo desembaraço as capelas da cultura e os bares mal recomendados (não esquecendo aqui que também acerca das capelas da cultura nem sempre se pode escrever boa prosa). Tudo isto apurou em José Cardoso Pires algo que poderemos identificar como um certo sentido de que na vida tudo é relativo. Daí até à explosão do seu génio literário terá sido apenas um pequeno passo, mas tão seguro que o haveria de colocar na história como o grande escritor de Lisboa.
Mas esta não é a altura para falarmos dos livros de José Cardoso Pires sobre a sua cidade. Nem da marcante obra de 1997 («De Profundis, Valsa Lenta»), onde o escritor conta a sua primeira aventura na morte, depois do um acidente vascular-cerebral que em 1995 o deixou, segundo palavras suas, uma «pessoa de coisíssima nenhuma». A altura é de «Balada da Praia dos Cães» (apesar de tudo tendo como pano de fundo a capital), o romance galardoado com o «Grande Prémio do Romance e da Novela da Associação Portuguesa de Escritores» em 1982.
«Balada da Praia dos Cães» é um romance que foi traduzido em numerosos países, tendo mesmo sido seleccionado pelo conceituado «The Sunday Times» como um dos melhores livros estrangeiros publicados em Inglaterra no ano de 1986. Também em Portugal, além dos aplausos da crítica e do reconhecimento da Associação Portuguesa de Escritores, teve a adesão dos leitores, ultrapassando em muito a centena de milhar de exemplares vendidos. O realizador José Fonseca e Costa passou-o mesmo ao cinema, num filme que teve um carreira bem meritória, com Raul Solnado no papel de um chefe de brigada da Polícia Judiciária, Elias Santana de seu nome, à primeira vista um pobre diabo mas, se observado com mais atenção, uma figura carregada de peculiaridades.
O romance, que apresenta como subtítulo «Dissertação Sobre um Crime», baseia-se em factos reais, passados em 1960, em plena ditadura do criminoso de Santa Comba. O cadáver de um desconhecido é encontrado na Praia do Mastro, cinquenta quilómetros a norte de Lisboa. É o dia três de Março. Foram alguns cães que o encontraram. Um deles chamou a atenção de um pescador, que acaba por dar com o macabro achado. Cardoso Pires escreve… «Viu no fundo de uma cova uma conspiração de cães à volta de um cadáver de um homem; alguns saltaram para o lado assim que ele apareceu mas logo retomaram a presa; outros nem isso, estavam tão apostados na sua tarefa que se abocanharam entre eles por cima do corpo do morto./ Há aqui uma certa ironia, diz o inspector Otero da Polícia Judiciária. Segundo consta, a vítima gostava desvairadamente de cães.»
Elias Santana, o chefe de brigada, começa então a investigação e as surpresas não hão-de parar. O corpo crivado de bolas e com um par de botas calçadas ao contrário, como se diz ser de uso fazer aos traidores, tinha uma longa história atrás de si.
3 comentários:
António:
Sem dúvida um grande escritor. E as obras citadas, neste artigo, são também duas grandes obras.
Ele era de facto um Lisboeta apaixonado. Lembro-me de uma das últimas fotografias dele, publicadas na imprensa. Estava num café, junto ao cais dos cacilheiros, com um olhar vago na direcção do Tejo.
Uma ou outra vez, passei por ele na Rua do Arsenal, perto do Cais do Sodré. Era uma figura consistente!
Será um "cliché", mas pessoas assim nunca morrem. Pelo menos enquanto os seus livros forem lidos.
Quanto ao resto, a Beira continua a fazer jus a essa prodigalidade…
Um abraço.
Manuel
Já há uns tempos que lhe devo estas palavras. Os blogs, como os livros, fazem-se sobretudo dos seus leitores. Por isso, muito obrigado pela atenção que tem dado a este blog nos últimos tempos. Não coloco nele coisas capazes de espantar este mundo e o outro, mas pelo menos faço o melhor que posso.
Um abraço,
António
António:
Não tem que agradecer. O "blog" é bom.
Nem só os especialistas podem falar de economia; de ética ou, sequer, de política.
Mais importante: este "blog", para mim, já é um ponto de encontro!
Obrigado, sou eu.
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