terça-feira, 16 de março de 2010

Pai

Na semana do Dia do Pai, três excertos de «O Sorriso Enigmático do Javali».
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«O pai do pequeno Tuki costumava falar de uma mulher a quem chamavam a Perdizinha, uma mulher de tempos já passados. Tratavam-na assim porque era muito baixa, mas sobretudo por andar depressa. Uma mulher desembaraçada e pequenina, um verdadeiro contraste com outra desses tempos, a Pata Larga, forte, alta e sempre a gabar-se de que calçava o quarenta e três. A Pata Larga, tinha-lhe o pai contado, falava como se carregasse na boca dois torrões de terra, um de cada lado, quem sabe se por causa dos equilíbrios, embora ela não precisasse muito de equilíbrios, principalmente por causa dos pés alongados.»
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«O pai do pequeno Tuki estendeu a pá para a zona do grelhador. A motosserra do estômago da gineta parecia que ia explodir a qualquer momento. A pá avançava muito devagar, entre a parede e o corpo da gineta. Era preciso forçar um pouco, mas sem precipitações, com paciência. O tempo parecia não passar. A gineta tinha os olhos de um lado para o outro, como que à procura do melhor sítio para escapar. Agora via-se que ela percebia a urgência de arranjar forças para sair dali. O pequeno Tuki pensou que o pai deveria ter calçado botas de borracha, umas que tinha e que lhe chegavam quase aos joelhos, não fosse a gineta atirar-se-lhe às pernas e dar-lhe alguma dentada. Mas não, as botas não seriam suficientes. A gineta era capaz de dar uns altos enormes, ele já tinha visto ginetas aos saltos no montado. Saltavam muito alto. Talvez o pai devesse ter calçado umas luvas e colocado a máscara de proteger o rosto que usava com a máquina de cortar erva.»
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«A cobra também não se mexia, tirando o nervoso que lhe tinha tomado conta da língua. E o pai do pequeno Tuki naquilo, parado, a pensar, em tantas coisas, mas sem se mexer. Ouvia o filho atrás com o ancinho, de volta das ervas, e nem se conseguia virar para ver se ele estava a uma distância segura da fogueira. Mas também a fogueira já não ardia muito, era uma coisa pequena, à espera de mais ramagem para tomar outras proporções. A ramagem das oliveiras que limparia a seguir. O pai do pequeno Tuki conseguia pensar normalmente, só não se conseguia mexer. Compreendia que por desconhecer se a cobra era venenosa estava a correr riscos ali, tão perto dela. Mas o facto de compreender isso não fazia com que se protegesse. Conseguia até pensar na imagem das cobras a hipnotizarem as presas antes de atacarem, e pensava que isso podia estar a acontecer com ele, aquela cobra a hipnotizá-lo, mas mesmo assim não se mexia. Ou seria ele, inadvertidamente, que estava a hipnotizar a cobra? Ele não se mexia, mas ela, à parte a língua, também não se mexia.»
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1 comentário:

Daniel Vieira disse...

Muito legal! Achei muito interessante essa passagem!
Estou seguindo!
Abraços!