quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O início

O início do primeiro conto do meu primeiro livro (livro de contos «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade», conto «A Bruxa do Bairro Alto de São Roque»).
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O século ainda ia novo, mas a vida – que às idades não parecia ligar muito – já andava outra vez agitada por Lisboa. Ele era milagres de Santo António dia sim dia não, ele era as pessoas a falarem do anjo que alguém tinha avistado no alto da torre da igreja de Nossa Senhora da Graça, ele era ainda outras criaturas, talvez mandadas por Deus e observadas por quem jurava a pés juntos que não eram foliões mascarados. E o bispo inquisidor, enquanto tão grandes maravilhas tinham relato, lá se ia entretendo a mandar queimar hereges e judeus, uns por coisas vistas, outros porque, bem vistas as coisas, não haveria no reino deles necessidade.
Tudo isto, que já não era pouco, ia acontecendo ao mesmo tempo que os castelhanos arranhavam por terra a toda a hora e os franceses picavam por mar de vez em quando. E para ajudar à festa, el-rei todo poderoso, o quinto João com que o reino alombava, ainda se punha a morder dentro das próprias fronteiras com impostos tais que a riqueza de jóias e vestes que à corte se via nunca antes tinha sido assim notada. Mas o
povo não era tão desligado como deixava parecer a quem o observava das varandas reais, e por isso nem a desculpa do ouro de Terras de Santa Cruz o convencia de que nesses altos enxovais não figurava moeda plebeia.
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Os casos de admirar eram tantos que os novos logo abafavam outros já bem repisados. E conseguiam-no mais pela força que tinham do que pela falta dela nos anteriores, pois cada um que surgia deixava três ou quatro para trás no que respeitava a falatórios. Nunca se tinha pensado que no reino pudessem vir a caber todos, mas eles iam cabendo, e isso era uma coisa que ninguém desmentia, tanto mais que Deus também não dava sinais de querer fazê-lo.
Foi por esses tempos que se começou a falar na bruxa do Bairro Alto de São Roque. Inês Duarte, que era o nome que ao baptismo lhe tinha calhado, apareceu de repente aos olhos de todos como uma criatura destinada a tornar ainda mais notável aquele ano de 1706. Deu-se isso de forma tão espantosa que o bispo inquisidor se encarregou de a levar assim que o caso lhe chegou aos ouvidos. E decerto que não iria tardar muito a mandar queimá-la no Rossio, de bruxas e feiticeiros acompanhada, numa fogueira bem grande, que assim era ao gosto do povo, assim Dom João aprovava, assim Deus não se opunha, tão-pouco o Diabo, que esse toda a gente dizia ser das chamas apreciador certo.
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