Afirma Vítor Pereira
«Afirma Pereira tê-lo conhecido num dia de Verão.» É a primeira frase de «Afirma Pereira», um romance de Antonio Tabuchi, de 1994, que dois anos depois haveria de ser adaptado ao cinema (com uma das últimas aparições de Marcello Mastroianni).
Em 1997, não num dia de Verão mas numa noite de Inverno, o Benfica defrontou o Belenenses e ganhou por dois a um, num jogo de arbitragem esquisita que me fez lembrar da história de Tabucchi; por causa do título e por causa do nome do árbitro, Vítor Pereira. Se as recordações fossem para a frente e não para trás, em vez de um filme esse jogo haveria de ter-me feito lembrar de um processo, o «Apito Dourado».
Já perto do fim o Belenenses vencia por um a zero, mas depois surgiu um golo benfiquista em fora-de-jogo e logo a seguir algo ainda pior, uma bola que não entrou na baliza azul mas que o fiscal de linha resolveu considerar que tinha entrado. Se a primeira asneira teve pouco falatório, então a segunda deu para muitos comentários. Eu, na altura, acabei por também fazer os meus; foi num artigo chamado «Afirma Vítor Pereira», que começava assim…
«Afirma Vítor Pereira que durante cinco segundos teve a certeza de que a bola cabeceada pelo benfiquista Edgar não entrou na baliza do Belenenses. Foram cinco segundos de lucidez, a anteceder a confusão que depois viria a acontecer. De repente, sem mais nem menos, o árbitro achou que não, achou que devia consultar o auxiliar, porque ele era a pessoa mais bem colocada para decidir, por ter visto a bola passar a linha de golo através do corpo, para ele, ele auxiliar, entenda-se, através do corpo transparente do guarda-redes do Belenenses.»
Vítor Pereira afirmava para ver se se desculpava. Já o guarda-redes do Belenenses o que afirmava não era para se desculpar de nada. Vejamos…
«Valente, o infeliz guarda-redes, afirma que não, e afirma-o duplamente. Afirma que a bola não passou a linha de golo e, sobretudo, que o seu corpo não é transparente. Claro que assim, com enredos destes, o que não pode ser transparente é o futebol português, afirmam certas pessoas. Já outras afirmam que desde há muito tempo, talvez desde a fatídica derrota de Alcácer-Quibir, ou até desde ainda antes, o futebol luso de transparente não tem nada, nem sequer o corpo do guarda-redes do Belenenses, que só é mesmo transparente para o auxiliar de Vítor Pereira.»
E o treinador do Belenenses – que era, imagine-se, o agora bem sucedido Manuel Cajuda –, o que é que afirmava?
«O que ainda ninguém afirmou é se esse auxiliar tem ou não tem filhos. Mas Manuel Cajuda, o treinador do Belenenses, afirma que não queria ser filho de um pai assim, e também que agora, se calhar, nem a União Europeia poderá ajudar o seu clube a recuperar os pontos que lhe foram roubados por Vítor Pereira e pelo famoso auxiliar. Nem sequer um subsídio de pontos deverá dar a União Europeia, afirma ainda Manuel Cajuda, e isso é pena, porque talvez assim se resolvesse a situação.»
E Pinto da Costa, ao ver o Benfica tão ajudado, teria alguma coisa para afirmar? Claro que tinha (e metia também o Sporting ao barulho, por causa de um jogo com o Varzim em Alvalade).
«Afirmam na União Europeia que o desemprego é o principal problema da Europa, mas o senhor Jorge Nuno Pinto da Costa, o presidente do Porto, afirma que o problema grande mesmo é agora o seu clube ter de contar também com os árbitros e os fiscais de linha que marcam golos a favor do Sporting e do Benfica.»
O meu Sporting, é claro, defendia-se, pela boca do assustador José Roquette.
«Quanto ao doutor José Roquette, o presidente do Sporting, afirma que os árbitros e os auxiliares só marcam golos para o Benfica e que o que aconteceu no jogo entre o Sporting e o Varzim nem ele já se lembra bem o que foi.»
O futebol português, naqueles tempos de 1997, como nos de agora, como sempre, era bom para escrever crónicas. Uma, mil, as que fosse preciso. Um romance já seria mais difícil. Se desse para romances, Tabucchi, por exemplo, talvez não tivesse escrito o «Afirma Pereira», talvez tivesse optado por outro, qualquer coisa do género «Afirma Vítor Pereira». Mais tarde, em vez de «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro» – que data precisamente de 1997 – poderia escrever «A Cabeça Perdida do Auxiliar de Vítor Pereira», ou mesmo, quem sabe, «A Cabeça Perdida dos Senhores do Futebol». Até agora, em 2008, um romance assim chamado poderia fazer sentido.
«Afirma Pereira tê-lo conhecido num dia de Verão.» É a primeira frase de «Afirma Pereira», um romance de Antonio Tabuchi, de 1994, que dois anos depois haveria de ser adaptado ao cinema (com uma das últimas aparições de Marcello Mastroianni).
Em 1997, não num dia de Verão mas numa noite de Inverno, o Benfica defrontou o Belenenses e ganhou por dois a um, num jogo de arbitragem esquisita que me fez lembrar da história de Tabucchi; por causa do título e por causa do nome do árbitro, Vítor Pereira. Se as recordações fossem para a frente e não para trás, em vez de um filme esse jogo haveria de ter-me feito lembrar de um processo, o «Apito Dourado».
Já perto do fim o Belenenses vencia por um a zero, mas depois surgiu um golo benfiquista em fora-de-jogo e logo a seguir algo ainda pior, uma bola que não entrou na baliza azul mas que o fiscal de linha resolveu considerar que tinha entrado. Se a primeira asneira teve pouco falatório, então a segunda deu para muitos comentários. Eu, na altura, acabei por também fazer os meus; foi num artigo chamado «Afirma Vítor Pereira», que começava assim…
«Afirma Vítor Pereira que durante cinco segundos teve a certeza de que a bola cabeceada pelo benfiquista Edgar não entrou na baliza do Belenenses. Foram cinco segundos de lucidez, a anteceder a confusão que depois viria a acontecer. De repente, sem mais nem menos, o árbitro achou que não, achou que devia consultar o auxiliar, porque ele era a pessoa mais bem colocada para decidir, por ter visto a bola passar a linha de golo através do corpo, para ele, ele auxiliar, entenda-se, através do corpo transparente do guarda-redes do Belenenses.»
Vítor Pereira afirmava para ver se se desculpava. Já o guarda-redes do Belenenses o que afirmava não era para se desculpar de nada. Vejamos…
«Valente, o infeliz guarda-redes, afirma que não, e afirma-o duplamente. Afirma que a bola não passou a linha de golo e, sobretudo, que o seu corpo não é transparente. Claro que assim, com enredos destes, o que não pode ser transparente é o futebol português, afirmam certas pessoas. Já outras afirmam que desde há muito tempo, talvez desde a fatídica derrota de Alcácer-Quibir, ou até desde ainda antes, o futebol luso de transparente não tem nada, nem sequer o corpo do guarda-redes do Belenenses, que só é mesmo transparente para o auxiliar de Vítor Pereira.»
E o treinador do Belenenses – que era, imagine-se, o agora bem sucedido Manuel Cajuda –, o que é que afirmava?
«O que ainda ninguém afirmou é se esse auxiliar tem ou não tem filhos. Mas Manuel Cajuda, o treinador do Belenenses, afirma que não queria ser filho de um pai assim, e também que agora, se calhar, nem a União Europeia poderá ajudar o seu clube a recuperar os pontos que lhe foram roubados por Vítor Pereira e pelo famoso auxiliar. Nem sequer um subsídio de pontos deverá dar a União Europeia, afirma ainda Manuel Cajuda, e isso é pena, porque talvez assim se resolvesse a situação.»
E Pinto da Costa, ao ver o Benfica tão ajudado, teria alguma coisa para afirmar? Claro que tinha (e metia também o Sporting ao barulho, por causa de um jogo com o Varzim em Alvalade).
«Afirmam na União Europeia que o desemprego é o principal problema da Europa, mas o senhor Jorge Nuno Pinto da Costa, o presidente do Porto, afirma que o problema grande mesmo é agora o seu clube ter de contar também com os árbitros e os fiscais de linha que marcam golos a favor do Sporting e do Benfica.»
O meu Sporting, é claro, defendia-se, pela boca do assustador José Roquette.
«Quanto ao doutor José Roquette, o presidente do Sporting, afirma que os árbitros e os auxiliares só marcam golos para o Benfica e que o que aconteceu no jogo entre o Sporting e o Varzim nem ele já se lembra bem o que foi.»
O futebol português, naqueles tempos de 1997, como nos de agora, como sempre, era bom para escrever crónicas. Uma, mil, as que fosse preciso. Um romance já seria mais difícil. Se desse para romances, Tabucchi, por exemplo, talvez não tivesse escrito o «Afirma Pereira», talvez tivesse optado por outro, qualquer coisa do género «Afirma Vítor Pereira». Mais tarde, em vez de «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro» – que data precisamente de 1997 – poderia escrever «A Cabeça Perdida do Auxiliar de Vítor Pereira», ou mesmo, quem sabe, «A Cabeça Perdida dos Senhores do Futebol». Até agora, em 2008, um romance assim chamado poderia fazer sentido.
Sem comentários:
Enviar um comentário