sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Eu numa história do José Eduardo Agualusa

Esta história já está disponível na Internet, por isso a coloco aqui também. Foi publicada há uns meses pelo José Eduardo Agualusa, na revista do «Público». Dei lá com o meu nome, ou seja, de certa forma posso dizer que eu também entro. Quando o José Eduardo fez a apresentação de um romance meu, acabado de chegar do Brasil (ele, não o romance), eu disse na intervenção que fiz que ele estar ali a apresentar o romance era uma honra tão grande para mim como se de repente tivessem chegado da Colômbia para o fazer ou o nobel Gabriel García Márquez, ou o notável Santiago Gamboa, ou como se numa viagem mais curta, de Espanha, tivesse chegado o fantástico escritor Javier Cercas. Aparecer numa história do José Eduardo Agualusa é quase o mesmo, é como se García Márquez, Gamboa ou Cercas, ou tantos outros escritores de livros para mim inesquecíveis, soubessem que eu existo e me referissem numa história, nem que fosse só a passar numa rua, sem participar em nada, tipo a fazer número. A história do José Eduardo Agualusa chama-se «O meu primeiro livro».
***
O meu primeiro livro
José Eduardo Agualusa
Certa ocasião, numa livraria de Lisboa, um poeta postou-se diante de mim e começou a declamar. Fazia-o com ânimo, com ênfase, os puros olhos rasos de água. Julguei reconhecer alguns dos versos; mais do que isso reconheci-me neles enquanto jovem. Eram, talvez, um pouco ingénuos, da forma apaixonada, desastrada, com que eu mesmo fui ingénuo aos vinte anos. Finalmente o poeta sossegou. Puxou de um lenço e secou as lágrimas. Aclarou a voz:
– Lembras-te?
Puxei pela memória, desesperado (tenho má memória). Ia arriscar um nome quando ele prosseguiu:
– É teu! É um poema teu! Publicaste-o há muitos anos nas páginas do DN Jovem.
A revelação acendeu em mim uma série de imagens. Lembrei-me, claramente, de um grupo de jovens reunidos em torno de uma larga mesa, numa esplanada do Parque Eduardo VII. Voltei a ver o belo sorriso do Manuel Dias, coordenador do suplemento, ao qual devo a publicação do meu primeiro livro, pois foi ele quem entregou o manuscrito ao editor. O DN Jovem foi um espaço importante para mim e para muitas dezenas de outros jovens escritores. Pelas suas páginas passaram nomes como o José Luís Peixoto, Pedro Mexia, José Riço Direitinho, António Manuel Venda, e muitos outros, hoje bastante conhecidos.
– E o Manel? – Perguntei, tentando distraí-lo, fazê-lo esquecer o poema. – Tens sabido do Manel?
O poeta ignorou soberanamente a minha questão.
– Gosto muito daquele teu poema. Não imaginas quanto. Fotocopiei-o, ampliei-o, e tenho-o emoldurado no escritório, pendurado na parede, mesmo diante da minha secretária.
Fiquei sem fala. Ia para agradecer-lhe. Ia para o abraçar. Mas antes que tivesse tempo o poeta disparou, brutal:
– Depois disso nunca mais publicaste nada de jeito!
E foi-se embora, deixando-me ali, atordoado, com meia dúzia de romances e outras tantas colectâneas de contos – vinte anos de trabalho! – que, no entanto, não valem, segundo ele, um único poema escrito no início de tudo.
Lembrei-me deste episódio quando, recentemente, um jornalista me perguntou se voltei a reler o meu primeiro romance e o que acho hoje dele. Respondi-lhe que não, que não o reli porque tenho medo de me envergonhar. O jornalista pensou, e escreveu-o, que receio envergonhar-me com as imperfeições dessa primeira aventura literária. Mas não: receio é envergonhar-me, ao relê-lo, com aquilo que escrevo hoje.
A idade, a experiência, dá-nos um maior domínio das técnicas, uma maior sabedoria, mas desconfio que, com o passar dos anos, se nos vai esmorecendo a paixão. Quanto a mim prefiro a vida, a arder de vida, mesmo com muitos erros, do que uma morta versão da vida, por mais elegante que seja o embrulho. Conta-se que o pintor catalão Jaume Casanovas encontrou um dia numa feira o retrato de uma criada de quarto, e que se deteve, fascinado, a estudá-lo: não obstante certa rudeza havia naquele rosto uma verdade, uma intensidade, que ele procurara anos a fio. Então reparou na assinatura, a um dos cantos, e era a sua. Pintara-a ainda adolescente, e depois esquecera-se dela.
Se não houver emoção pode haver verdade, ou a ilusão da verdade? E o que é a literatura sem a ilusão da verdade? Um bom romance é o que assegura ao leitor, «tudo isto aconteceu», e ele acredita, e se comove – ao menos enquanto o está a ler.
Picasso gostava de dizer que levou a vida inteira para conseguir pintar como uma criança. Foi também ele quem disse, creio, que se leva muito tempo para se ser jovem. Agrada-me esta ideia – e Picasso esforçou-se, com sucesso, para a demonstrar – porque nos devolve a esperança de que é possível recuperar, não a juventude, mas o melhor da juventude: a paixão, certa saudável inconsciência, o olhar inédito sobre as coisas.

Imagem: José Eduardo Agualusa, fotografado por Jordi Burch em Lubango (Angola) – 2005

1 comentário:

Anónimo disse...

estou lendo e me deliciando com os contos do livro" manual prático de levitação", do escritor José Eduardo Agualusa. O cara é fera!