Em tempos fiz uma entrevista ao escritor inglês Robert Wilson. Ia estragando um bocado o carro para chegar à casa dele, na Serra d’Ossa, mas lá consegui. Tinha acabado de sair o primeiro livro da série com o inspector Javier Falcón e eu tinha gostado muito da leitura, embora talvez não tanto como do belíssimo «Último Acto em Lisboa», a que tinha sucedido um romance pouco conseguido («A Companhia de Estranhos»). O segundo livro com Javier Falcón («As Mãos Desaparecidas») foi para mim uma desilusão; a história arrasta-se até que a certa altura Robert Wilson deixa tudo descambar nem se percebe bem para onde. Vamos a ver o que acontece agora na terceira aventura («Assassinos Escondidos»), se Robert Wilson terá conseguido recuperar o brilhantismo com que começou a saga de Javier Falcón. Deixo a seguir a entrevista, feita em 2004.
Na cadeira da vítima
Uma entrevista a Robert Wilson
Com dois romances muito ligados a Portugal, um dos quais assente na investigação conduzida por um polícia português a quem parece que a literatura não arranjará mais casos para resolver, Robert Wilson regressa com «O Cego de Sevilha». A acção principal muda de país e o polícia é espanhol. Mais, esse polícia está tão envolvido na própria história sob investigação que chega a sentar-se na cadeira da vítima; ele e o leitor, como quis Robert Wilson. O novo polícia chama-se Javier Falcón e a literatura reserva-lhe quatro casos.
Porque é que há pessoas tão infelizes nos seus livros?
Não faço ideia... Bom, não estou seguro de que crime e violência sejam particularmente atractivos para pessoas felizes. Normalmente, os romances policiais, os thrillers, partem de actos violentos, e esses actos necessariamente dão cor ao que depois acontece, têm influência no romance. E as razões para a violência são dificuldades, talvez problemas psicológicos. Isto está necessariamente ligado a pessoas infelizes, pessoas complicadas. Mas nem todas as minhas personagens são infelizes, há pessoas que ganham conhecimento próprio, que vivem como todos nós. Nem eu estou certo de que a existência normal tenha de ser feliz. Não creio que os seres humanos sejam afeitos à utopia. Muitas vezes, as pessoas funcionam melhor quando têm dificuldades. Em tempos difíceis, não estão sempre felizes mas podem demonstrar as suas virtudes.
Também há muitas pessoas más nos seus livros...
Crime, violência e maldade andam de mãos dadas. O que tentei fazer no último livro, «O Cego de Sevilha», foi demonstrar até onde pode o ir a maldade, como pode ela apoderar-se das pessoas. O que eu próprio tentei entender, não mostrar mas entender – e eu não tinha nenhum conhecimento especial – foi isso. Nos livros, tento perceber a razão de as pessoas fazerem coisas más. Se olharmos para trás, a história dos seres humanos está cheia de coisas terríveis feitas pelas pessoas.
Quando começou a escrever «O Cego de Sevilha», tinha ideia de como era, ou seria, o pai do polícia que investiga o caso, o pintor Francisco Falcón?
Tinha uma espécie de esboço, uma ideia geral. Para «O Cego de Sevilha», eu não tinha um mapa claro da história, tinha um caminho, sabia como as coisas iriam desenvolver-se, mas não sabia os detalhes, de Francisco Falcón, por exemplo. Não sabia nada dos diários dele. Eu queria escrevê-los como se as coisas estivessem a acontecer, de forma que deixei as coisas irem andando. Desenvolvo as personagens e deixo-as andar, deixo-as interagir umas com as outras. Coloco-as na acção e depois tenho de saber como desenvolvê-las.
Não seria então capaz de descrever Francisco Falcón antes de escrever os diários?!
Não creio que fosse. Tinha uma ideia do seu carácter, de como devia ser desenvolvido, mas não sabia como ele seria. A legião, a legião azul a ir para a Rússia, isso, por exemplo, inventei na altura em que escrevia.
E há alguma razão para a cena inicial, violenta, e no final do livro para uma parecida?
Você pode pensar que é uma cena violenta, mas o que se descobre é que é algo desconfortável de ler. O leitor senta-se na cadeira da vítima, mas não sabe o que acontece... A única coisa que sabe é que a vítima está a ser forçada a olhar para alguma coisa, mas não sabe o quê, e não sabe o que está a ser feito à vítima para a fazer olhar para a televisão. A justificação para isso, e é a justificação para o livro, é que a sua imaginação, a imaginação do leitor, é mais poderosa do que a minha. Porque todos os seus medos estão a ser modelados por você. Se eu inventar, se lhe contar o meu medo, você dirá: não tenho medo de pensar, porquê estar assustado. O que eu faço nessa cena é com que você, o leitor, imagine o seu próprio medo. E é o que se apanha da cena seguinte, quando Javier Falcón, o inspector jefe, descobre a vítima, quando lhe vê os olhos. É uma experiência chocante para ele.
Algumas pessoas disseram-me que ler «O Cego de Sevilha» é bom, mas em relação à cena do início...
Foi minha intenção que o leitor perceba que vai ser algo difícil. O livro chama-se «O Cego de Sevilha», sabe-se antes de se abrir que será algo sobre percepção, sobre a forma como se vê determinadas coisas, como se reconhece coisas sobre nós. Assim, a cena inicial, ao leitor que está na cadeira da vítima, reconhecer coisas dele próprio, isso custa, dói, magoa... De certa maneira, é metafórico, não é necessariamente uma experiência real, serve apenas para causar problemas ao leitor, mas quando ele lê o livro depois da cena inicial, depois continua a lembrar-se dela. O momento do medo...
Bom, houve quem me dissesse que esteve para desistir, e depois disse que foi bom ter continuado...
É assim que deve ser. Mas eu acho que nas três primeiras páginas não há a violência clássica. O leitor está apenas numa posição muito inconfortável. Porque está consciente de que alguém anda à sua volta, está na cadeira da vítima, mas não sabe de nada. É a imaginação do leitor que causa todos os problemas. Eu não fiz nada, apenas o pus nessa posição, e é ele, és você, o leitor, a fazer a si próprio sentir-se inconfortável, imaginando. Imaginando horror, imaginando horrores que não estão lá. Javier Falcón não sabe por que está assustado, por que está a viver aquele tremendo medo. Ele compreende que, no fundo, é algo que já viveu, e tem de fazer um processo de redescoberta, algo que lhe aconteceu na infância, algo relacionado com o seu pai, com a sua mãe.
A escrita dos diários...
Escrevi «O Cego de Sevilha» até ao capítulo catorze, e depois vi que tinha de parar e escrever os diários. Só a seguir é que continuei o livro.
E a cena inicial?
Escrevi-a primeiro.
Porque vão as suas histórias tanto para o passado? Chegam a recuar mais de meio século...
Parte é por eu ter interesse em História, e parte por ter interesse em olhar para dois países, Portugal e Espanha, que partilham muitas coisas na História.
Porque se interessa por estes dois países? Podia situar a acção dos seus romances noutros sítios...
Viajei muito quando era jovem. Estive na América, na Ásia. Foi nos tempos da universidade. E trabalhei em África. Uma experiência que resultou dessas viagens foi sentir o interesse em descobrir coisas de certas pessoas, mas no regresso senti desapontamento, porque não entendi nada das pessoas que vi. Falei com elas e não entendi nada delas, não entendi por que eram aquele tipo de pessoas...
E em Portugal e em Espanha? Não me diga que aí já as entendeu...
Não, foi igual. O que foi diferente foi o facto de para Espanha e Portugal ter viajado de bicicleta. De Londres para a Península Ibérica de bicicleta. Tentei perceber como os portugueses eram diferentes dos espanhóis, mas não consegui. Depois vim viver para Portugal, escrevi um guia, e aí tive de olhar para a História. Percebi as similaridades. Por vezes, Portugal e Espanha foram o mesmo, tiveram o mesmo rei, os mouros estiveram em Portugal e em Espanha, embora mais tempo em Espanha, mas é a mesma cultura nos dois países. A única diferença que consegui ver é que os espanhóis olham para o Mediterrâneo e os portugueses para o Atlântico.
Quando escreveu «Último Acto em Lisboa» e «A Companhia de Estranhos», muito centrados em Portugal, tinha intenção de os publicar em Espanha?
Tinha uma ideia. Um amigo meu vive em Sevilha, vou lá várias vezes por ano. Ele já lá vivia quando fiz a viagem de bicicleta, há 20 anos, em 1984.
Conseguia imaginar nessa altura que haveria de ser escritor?
Sempre pensei em ser escritor. Aos catorze anos já pensava nisso.
Escritor de que tipo?
Aos catorze anos...
Ou aos 20, ou 25?
Queria ser um grande poeta. É uma profissão louca. Mas foi o meu primeiro interesse. Tinha muito interesse na maneira como as palavras trabalham juntas. A musicalidade das palavras… Quando cheguei à escrita, comecei a ter mais interesse em escrever do que noutras coisas. O mais difícil aconteceu quando comecei a escrever o tipo de livros que escrevo. A história, isso é muito importante, se não se tiver uma história o leitor cansa-se, perdemos o leitor. É o maior desafio. Se olharmos para a ficção literária... Aí as coisas não acontecem. Na ficção que escrevo, as coisas têm de acontecer a cada página. Se as coisas não acontecem, o leitor deixa o livro. Isto é o ponto mais importante. Pode-se escrever maravilhosamente, mas se não se fizer com que as coisas aconteçam, e de forma credível... É a maior dificuldade deste tipo de ficção, é a maior dificuldade ao escrevê-la. Mais do que ficção literária, por causa da história.
Mas «O Cego de Sevilha» é ficção literária...
Não acho. Creio que a distinção é... É difícil distinguir. Nos meus livros, eu estou sempre a sacrificar algo. Sacrifica-se por causa da história, na busca de fazer as coisas acontecerem. O interessante para mim é: como faço eu isso, como consigo parar... Daí que eu diga que não é ficção literária. Porque aí não precisaria de me preocupar. Na ficção literária, há a preocupação de comunicar as próprias ideias, desenvolver essas ideias nas personagens, e a história passa a ser menos importante.
Bom, então «O Cego de Sevilha» é pelo menos mais literário do que os seus dois livros anteriores?!
Você, provavelmente, está certo. Acho que a diferença entre «Último Acto em Lisboa» e «O Cego de Sevilha», a principal diferença, é a escrita. Se você me dissesse que estavam ao mesmo nível, eu sentia que tinha falhado, que não tinha desenvolvido a minha escrita.
Eu continuo a gostar muito de «Último Acto em Lisboa»...
Por vezes, penso que com esse livro foi a primeira vez que tentei contar uma história, e isso é complicado. Antes, eu tinha quatro livros africanos... Conhece Chandler?
De nome...
Chandler, Philip Marlow... Eu escrevi quatro livros africanos, com um herói chamado Bruce Medway.
Que publicou em Inglaterra…
Sim, e nos Estados Unidos.
Vão ser publicados em Portugal?
Penso que os portugueses não estariam interessados. Estão escritos na mesma linha de ideias de Chandler. Só que Chandler escrevia na Califórnia em 1940, e eu escrevia na África Oriental em 1990.
Durante quanto tempo escreveu esses livros?
Escrevi o primeiro em 1992, e acabei o quarto em 1997.
Teve sucesso com eles em Inglaterra?
Os livros fizeram sucesso junto de um pequeno grupo de pessoas. Dez ou quinze mil pessoas.
E nos Estados Unidos?
Não foram comprados para aí quando os escrevi. Isso só aconteceu alguns anos depois, e agora estão bem, mesmo muito bem.
Que tipo de escritor é Robert Wilson em Inglaterra, isto em termos da ideia geral feita pelas pessoas?
Com os meus três últimos livros... Se falar de mim, a primeira coisa que as pessoas pensarão é em «Último Acto em Lisboa». Talvez agora também em «O Cego de Sevilha». Sou associado a thrillers literários. Para mim, um thriller literário é um thriller bem escrito. De qualquer forma, eu tento fazer mais uma distinção: quando um thriller literário termina, existe mais do que uma história, tem-se pensado noutras coisas além da história.
Quanto a Portugal... Tem ideia de como por cá olham para si como escritor?
Não há uma grande tradição de escrita de romances policiais e de thrillers em Portugal. Não creio que haja um mercado desenvolvido para este tipo de livros, como nos Estados Unidos ou na Alemanha, por exemplo. Trata-se de mercados diferentes. Em Portugal, há muito o que eu chamo leitores gerais. Acredito que em Portugal satisfaço as pessoas que lêem ficção literária e penso que também as que não se interessam por ficção literária, as que preferem ficção geral.
Vai continuar a situar as suas histórias na Península Ibérica?
A continuação de «O Cego de Sevilha»...
Quando acabou de escrever «O Cego de Sevilha»?
Creio que em 2002.
Saiu já há algum tempo em Inglaterra. Em Portugal demorou bem mais...
Bom, também mudei de editora...
E a continuação de «O Cego de Sevilha»?
São quatro livros, uma série de quatro livros. Estou a escrever o terceiro.
Qual é a ligação? Javier Falcón?!
Javier Falcón, sim. O interessante de fazer a série com a mesma personagem...
Porque não escreveu mais dois ou três livros com o Zé Raposo?
Zé Coelho...
Sim, Zé Coelho, de «Último Acto em Lisboa».
Zé Raposo é um bom nome...
Pode usá-lo à vontade, se quiser...
A única razão por que não fiz outra história com o Zé Coelho é a seguinte: eu não tinha outra história.
O Zé Coelho não estava ligado à história que investigava. Javier Falcón sim, faz parte da história...
O que senti com Javier Falcón foi que estava a desenvolver uma personagem. Quando trabalhava em «Último Acto em Lisboa», o Zé Coelho não era o mais importante. O que me interessava era a ideia do ouro nazi, o volfrâmio, Portugal e a Segunda Guerra Mundial. Mas eu não queria escrever um romance histórico, eu queria escrever um policial. Tinha que ter uma investigação criminal, mas arranjei um crime fora de comum, o assassinato de uma jovem que de alguma forma estava ligado a coisas que aconteceram na Segunda Guerra Mundial. O desafio era ligar as duas histórias, e ligá-las de forma a fazer o leitor sentir tensão. Era preciso criar essa tensão. Ou seja, tratava-se de uma abordagem diferente. Nos dois livros, «Último Acto em Lisboa» e «O Cego de Sevilha», os protagonistas são polícias, ambos de meia-idade. Uma pessoa que é inspector jefe tem de andar pelos 40... E o problema com os homens de meia-idade é que não mudam, já desenvolveram o seu carácter, a personalidade; muda-se mais dos 25 aos 35. Assim, há um problema se se quer escrever sobre uma personagem dessas: como fazer ela mudar? O meu desafio foi fazer mudar Javier Falcón do início para o fim de «O Cego de Sevilha». Ele era uma personalidade antes e passou a ser outra depois. Há uma mudança dramática em resultado de um trauma psicológico. No segundo livro, ele vai surgir uma outra pessoa. A boa coisa para mim é que nestes livros de séries as personagens são as mesmas. Muitos leitores gostam das personagens que eu desenvolvi. Lê-se muito, mas sempre um pouco diferente.
Talvez Javier Falcón seja mais, digamos assim, literário, do que o Zé Coelho... Mas outra coisa, você é um mestre a descrever os locais onde se desenrolam as suas histórias, a atmosfera de cada um, Lisboa da Segunda Guerra Mundial em «A Companhia de Estranhos», Tanger de há algumas décadas em «O Cego de Sevilha», que lembra o filme «Casablanca»; Tanger parece a preto e branco nos diários de Francisco Falcón. Como consegue isso?
Vivi em Espanha e em Portugal. Vejo os portugueses e os espanhóis, são diferentes, vou daqui a Badajoz e as pessoas lá são completamente diferentes das pessoas de Elvas. O que eu faço é olhar. Tenho a sensação de que são diferentes mentalidades. Quanto a Tanger, li muito, fui lá, apanhei o ambiente...
Precisa de ver os lugares...
Não. Eu não vi Berlim Leste de «A Companhia de Estranhos». Quando escrevi o livro não tinha dinheiro para ir a Berlim. Li livros, pedi a pessoas que me falassem da cidade, e que me falassem daquele tempo. Fui recentemente a Gigón e estava lá um cubano que leu «A Companhia de Estranhos» em castelhano, um homem que fez parte da segurança de Fidel Castro e foi mandado para a escola do KGB em Moscovo. Ele disse-me: a tua descrição da Alemanha de Leste é exactamente como era quando eu fui para o KGB em Moscovo. E eu disse-lhe que nunca tinha ido a Berlim Leste, que apenas li coisas que aconteceram, e sobretudo um guia de um jornalista norte-americano que se apaixonou por uma alemã ocidental, um jornalista que esteve em Berlim quando o muro caiu. Ele, para ficar na Alemanha com a rapariga, escreveu um guia que consiste em pequenos passeios por Berlim Leste, logo depois de o muro cair, de forma que era o mesmo cenário da Segunda Guerra Mundial. Ele punha o seu ponto de vista. E «A Companhia de Estranhos» é a guerra fria, depois da Segunda Guerra Mundial, e o incidente do livro na Segunda Guerra Mundial prolonga-se nos anos 60, 70, e em Berlim... Eu imaginei tudo coberto de neve, tudo uniformizado, a preto e branco, cinzento, sem cor. Com essa sensação, esse feeling, podia desenvolver as personagens. Com Zé Coelho, de «Último Acto em Lisboa», foi um amigo que tenho em Paço d'Arcos... Sei como é a vida em Paço d'Arcos, posso imaginar a história lá.
Os escritores portugueses não são muito de colocar Paço d'Arcos num romance... Ou a Avenida Duque d'Ávila, ou Carcavelos, ou o Cabo da Roca...
Eu vivi no Cabo da Roca.
Você usa esses lugares sem constrangimentos, e até o polícia Zé Coelho é um tipo normal em Portugal. Usou pessoas, locais, situações que os escritores portugueses dificilmente usariam. Tem consciência disso?
Conheço muito pouco da literatura portuguesa, como os escritores portugueses vêem o seu próprio país. Algo de Saramago, algo de Eça de Queirós, o que escreveu de Lisboa, mas não mais do que isso. Tenho de ver à minha maneira.
É livre para escrever...
O que é importante é o número de portugueses que vêm ter comigo e perguntam, em relação a «Último Acto em Lisboa», por exemplo: como sabia que era assim?
Também me lembro de alguém falar de que você descrevia os portugueses de há algumas décadas como baixos, de bigode e, creio, gordos...
Ao escrever «Último Acto em Lisboa», para desenvolver as personagens... Bom, eu estava muito interessado em saber como se vivia na ditadura de Salazar, e também em perceber o milagre do 25 de Abril, como os portugueses foram tão brilhantes para não terem uma guerra civil, que facilmente poderia ter acontecido. O impacto de tudo isso na sociedade portuguesa, e como os portugueses se desenvolveram depois do 25 de Abril... Eu não sabia o que tinha acontecido. Muitos portugueses vêm ter comigo e dizem-me: os portugueses não aprenderam muito com a história, em várias situações... Por exemplo, os alemães, aquilo que aconteceu na Segunda Guerra Mundial, eles preocupam-se em saber o que lhes aconteceu nessa altura, têm consciência... Muitos portugueses dizem que fazem o mesmo, mas não se questionam sobre o que aconteceu debaixo do regime de Salazar. Eu sempre senti que por cá se tinha decidido diferente do que aconteceu em Espanha, um país que teve uma guerra civil, em que as pessoas se mataram umas às outras, numa guerra política. Isso faz uma grande diferença na evolução do carácter. Uma guerra cria mais a tendência para se saber o que aconteceu na realidade. E os portugueses não tiveram isso. Os portugueses fizeram a revolução no regime de Caetano, depois veio a integração europeia, é diferente. Não têm nada de específico para olhar para trás e examinar, não é preciso uma reconciliação.
Voltando a Javier Falcón… Acabou o segundo livro com ele...
Saiu recentemente em Inglaterra. Em Portugal não sei quando será publicado. Espero que a Dom Quixote o compre.
De que tipo de história se trata?
O romance passa-se em Sevilha, num subúrbio rico da cidade, Santa Clara, a caminho do aeroporto. As construções foram feitas por norte-americanos, quando lá havia uma base da NATO. Eles foram-se embora e agora é uma zona chique. É estranho, porque não nada é típico de Espanha. O que há é casas individuais, a típica América. Parece um subúrbio de Los Angeles…
Mas com espanhóis...
Sim, é estranho, não parece Sevilha.
Qual é o título do livro?
Isso é complicado… Trabalhei com um título na cabeça, «As Mãos Desaparecidas». E o editor em Inglaterra não achou que fosse comercial. Tive de pensar noutro, e ficou «The Silent and the Damned» [«O Silencioso e o Condenado», traduzindo à letra, coisa que não servirá decerto para a edição portuguesa].
Em que estado reaparece Javier Falcón nesse livro?
Não é um começo fácil. Depois da história de «O Cego de Sevilha», ele passa um ano a fazer terapia psicológica. A seguir começa a trabalhar. Está a trabalhar há quatro meses, tem uma melhor relação com o inspector Ramirez, e então aparece o novo caso.
E a ex-mulher?
Javier Falcón não tem problemas com Inês. Só que o juiz Calderón, nas primeiras páginas, vai falar com ele. E diz-lhe: queria falar contigo primeiro, eu e Inês vamos casar.
Coitado...
Javier Falcón não tem problemas com Inês, mas esta notícia afecta-o.
Tem nos seus livros muitas histórias de amor. Não arranjou uma para ele?
É preciso paciência. Não pode acontecer tudo num só livro.
Os dois livros que faltam vão ter a acção em Espanha?
Sim, e com Javier Falcón. A diferença está na estrutura e nas ideias.
Quando pensa acabar a série?
Devo acabar o terceiro livro no fim do próximo ano, e o quarto lá para 2008, ou talvez mesmo em 2007.
Que tipo de casos poderia Javier Falcón investigar no Alentejo?
O que há para investigar onde não acontece nada?
Mas o que poderia acontecer?
A única coisa talvez pudesse ser algo ligado à máfia russa. Há muitas pessoas a traficarem da Europa de Leste para Espanha e Portugal. Essa máfia está bem presente em Lisboa, no Algarve e na Costa del Sol. Prostituição, Internet, fraude… O dinheiro é usada na construção civil, no Algarve e na Costa del Sol. Branqueamento de capitais…
Portugal, ou melhor, o Alentejo, é a sua base?
A base é mais em Inglaterra, em Oxfordshire. Mas passo muito tempo aqui, e também em Espanha.
Em Sevilha, a cidade de Javier Falcón?!
Sim. Mas costumo passar mais tempo em Portugal.
Sente diferenças entre escrever em Portugal e em Inglaterra?
Prefiro escrever em Portugal. Aqui é mais calmo, não tenho distracções. Faço pesquisa e depois começo a escrever. Logo bem cedo, às 5.30 da manhã, e continuo até ao almoço.
Vive num monte isolado [algures entre o Redondo e Estremoz]. Como consegue descrever Sevilha, as festas da Semana Santa, por exemplo, nesta quietude?
Já vi Sevilha, tenho as imagens na cabeça, o feeling.
Não tem a tentação de escrever sobre árvores e pássaros?
O que se vê aqui desaparece na imaginação.
A sua actividade é escrever?
Sim.
Desde...
Como principal actividade, desde 1998. Só escrever. Antes tinha de parar de vez em quando e ir a Inglaterra ganhar dinheiro. Trabalhava em Publicidade. Podia fazer mais num mês do que a escrever um livro durante um ano.
Agora já não tem esse problema...
Digamos que não tenho que me preocupar com dinheiro.
E é diferente escrever assim?
Uma pessoa fica nervosa quando consegue o seu primeiro contrato. Bom, antes eu escrevia por pouco dinheiro, dez mil libras por um livro… Agora penso no trabalho, não no dinheiro, isto depois de ter conseguido bons contratos.
Onde os conseguiu?
Tenho um em Inglaterra, outro nos Estados Unidos e outro na Alemanha.
E Portugal?
Em termos de negócio, Portugal tem uma pequena dimensão. Há poucos leitores, de forma que não se consegue um grande contrato.
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