Em alturas de anúncio do Nobel, um pequeno grande romance de um autor fabuloso que a Academia Sueca deu a conhecer ao mundo ocidental: o egípcio Naguib Mahfouz.
Em 1988, a atribuição do «Prémio Nobel de Literatura» permitiu a descoberta em Portugal, e um pouco por todo o mundo ocidental, do escritor egípcio Naguib Mahfouz. Nessa altura, ele foi apresentado como tendo nascido em 1911 (dia 11 de Dezembro), no Cairo, mais precisamente no bairro Gamiliyya, como sendo formado em filosofia e também como autor de cerca de trinta romances e de mais de uma centena de contos. Tinha publicado o primeiro livro em 1939, aos vinte e oito anos.
Parecia estar a falar-se de um desconhecido, mas não, nada disso. Havia muitos anos que Naguib Mahfouz atingira a fama, sendo lido por muitos milhões de pessoas um pouco por todo o mundo árabe. Talvez pudesse até dizer-se que se estava na presença do maior romancista do mundo árabe. O mérito do Nobel foi, por isso mesmo, o de ter trazido para o alcance do comum leitor ocidental a obra de um escritor fabuloso.
Este foi o primeiro livro que li de Naguib Mahfouz. Chama-se «Em Busca» e conta a história de Saber, um homem que procura o pai que nunca conheceu e que julgava morto. Isso acontece quando a sua mãe regressa a casa para morrer, após cinco anos na prisão.
«Limpando o rosto, apesar do tempo frio, ela disse: ‘Não é da doença, mas sim da cadeia. Adoeci na cadeia. A tua mãe não foi feita para cadeias. Eles diziam que era do meu fígado, da tensão, depois era o coração, raios os partam. Posso alguma vez voltar a ser o que era?»
Basima Omram, a mãe de Saber, estava bem diferente dos tempos de jovem. «O riso dela, que tinha ressoado em todos os salões de Alexandria, agora mal conseguia causar a mais leve vibração no seu corpo volumoso e anafado.» Com pouco mais de cinquenta anos, no leito de morte, desvenda ao filho uma parte da sua história, ou da história dos dois.
«’E ir para onde?’, perguntou ele, ressentido./ ‘Para junto do teu pai’, respondeu ela numa voz quase inaudível./ Ele ergueu as sobrancelhas de espanto e exclamou: ‘O meu pai...’/ Ela acenou a cabeça./ ‘Mas ele está morto. A mãe disse-me que ele morreu antes de eu ter nascido.’/ ‘Eu disse-te isso. Mas não era verdade.’»
Basima Omram quase nem tem forças para falar. Mas mesmo assim precisa de continuar.
«’O nome dele está na tua certidão de nascimento, Sayed Sayed el Reheimy.’ O olhar dele enevoou-se à medida que ela prosseguia: ‘Ele apaixonou-se por mim há trinta anos. Foi no Cairo.’/ ‘Cairo... Então ele nem sequer está em Alexandria.’/ ‘Sei que o teu verdadeiro problema será encontrá-lo.’/ ‘Por que não tentou ele encontrar-me?’/ ‘Ele não sabe da tua existência.’/ (...)/ ‘Ele amava-me. Eu era uma rapariga bela e perdida. Ele guardou-me em segredo, num cofre de ouro.’/ ‘Ele casou consigo?’/ ‘Sim, ainda tenho a certidão de casamento./ ‘Ele divorciou-se de si?’/ Ela suspirou: ‘Eu fugi.’/ ‘Fugiu?’/ ‘Fugi ao fim de uns dias. Estava grávida. Fugi com um zé-ninguém.’»
É então que começa a busca de Saber, num romance onde os grandes dramas da existência humana estão presentes a cada página. Afinal, uma marca do grande escritor egípcio, tal como a preocupação com as injustiças que sempre viu no seu país, e a preocupação em preservar e recriar a memória colectiva do seu povo.
A esta postura não terá sido alheia a tentativa de assassinato que sofreu em 1994. Os fundamentalistas não gostaram das suas declarações a favor da paz com Israel, nem das palavras que proferiu contra a condenação à morte de Salman Rushdie, ordenada por Khomeini. Consideraram também um romance seu como blasfemo à religião.
Naguib Mahfouz morreu no dia 30 de Agosto do ano passado, aos 95 anos, na cidade onde nasceu e sobre qual tanto escreveu (ver, por exemplo, o romance «A Viela de Midaq», também da Caminho).
Em 1988, a atribuição do «Prémio Nobel de Literatura» permitiu a descoberta em Portugal, e um pouco por todo o mundo ocidental, do escritor egípcio Naguib Mahfouz. Nessa altura, ele foi apresentado como tendo nascido em 1911 (dia 11 de Dezembro), no Cairo, mais precisamente no bairro Gamiliyya, como sendo formado em filosofia e também como autor de cerca de trinta romances e de mais de uma centena de contos. Tinha publicado o primeiro livro em 1939, aos vinte e oito anos.
Parecia estar a falar-se de um desconhecido, mas não, nada disso. Havia muitos anos que Naguib Mahfouz atingira a fama, sendo lido por muitos milhões de pessoas um pouco por todo o mundo árabe. Talvez pudesse até dizer-se que se estava na presença do maior romancista do mundo árabe. O mérito do Nobel foi, por isso mesmo, o de ter trazido para o alcance do comum leitor ocidental a obra de um escritor fabuloso.
Este foi o primeiro livro que li de Naguib Mahfouz. Chama-se «Em Busca» e conta a história de Saber, um homem que procura o pai que nunca conheceu e que julgava morto. Isso acontece quando a sua mãe regressa a casa para morrer, após cinco anos na prisão.
«Limpando o rosto, apesar do tempo frio, ela disse: ‘Não é da doença, mas sim da cadeia. Adoeci na cadeia. A tua mãe não foi feita para cadeias. Eles diziam que era do meu fígado, da tensão, depois era o coração, raios os partam. Posso alguma vez voltar a ser o que era?»
Basima Omram, a mãe de Saber, estava bem diferente dos tempos de jovem. «O riso dela, que tinha ressoado em todos os salões de Alexandria, agora mal conseguia causar a mais leve vibração no seu corpo volumoso e anafado.» Com pouco mais de cinquenta anos, no leito de morte, desvenda ao filho uma parte da sua história, ou da história dos dois.
«’E ir para onde?’, perguntou ele, ressentido./ ‘Para junto do teu pai’, respondeu ela numa voz quase inaudível./ Ele ergueu as sobrancelhas de espanto e exclamou: ‘O meu pai...’/ Ela acenou a cabeça./ ‘Mas ele está morto. A mãe disse-me que ele morreu antes de eu ter nascido.’/ ‘Eu disse-te isso. Mas não era verdade.’»
Basima Omram quase nem tem forças para falar. Mas mesmo assim precisa de continuar.
«’O nome dele está na tua certidão de nascimento, Sayed Sayed el Reheimy.’ O olhar dele enevoou-se à medida que ela prosseguia: ‘Ele apaixonou-se por mim há trinta anos. Foi no Cairo.’/ ‘Cairo... Então ele nem sequer está em Alexandria.’/ ‘Sei que o teu verdadeiro problema será encontrá-lo.’/ ‘Por que não tentou ele encontrar-me?’/ ‘Ele não sabe da tua existência.’/ (...)/ ‘Ele amava-me. Eu era uma rapariga bela e perdida. Ele guardou-me em segredo, num cofre de ouro.’/ ‘Ele casou consigo?’/ ‘Sim, ainda tenho a certidão de casamento./ ‘Ele divorciou-se de si?’/ Ela suspirou: ‘Eu fugi.’/ ‘Fugiu?’/ ‘Fugi ao fim de uns dias. Estava grávida. Fugi com um zé-ninguém.’»
É então que começa a busca de Saber, num romance onde os grandes dramas da existência humana estão presentes a cada página. Afinal, uma marca do grande escritor egípcio, tal como a preocupação com as injustiças que sempre viu no seu país, e a preocupação em preservar e recriar a memória colectiva do seu povo.
A esta postura não terá sido alheia a tentativa de assassinato que sofreu em 1994. Os fundamentalistas não gostaram das suas declarações a favor da paz com Israel, nem das palavras que proferiu contra a condenação à morte de Salman Rushdie, ordenada por Khomeini. Consideraram também um romance seu como blasfemo à religião.
Naguib Mahfouz morreu no dia 30 de Agosto do ano passado, aos 95 anos, na cidade onde nasceu e sobre qual tanto escreveu (ver, por exemplo, o romance «A Viela de Midaq», também da Caminho).
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