«Bichos», de Miguel Torga (agora editado nas Publicações Dom Quixote; 136 pp. na minha edição de autor)
Os bichos de Torga
Um texto de 2002, sobre um velhinho livro de capa branca e páginas muitas delas por cortar. Outros tempos…
Mesmo com a obra de Miguel Torga a ser reeditada pelas Publicações Dom Quixote, depois de tantos anos em edições do autor, não será despropositado trazer aqui um dos velhinhos livros brancos a que nos fomos habituando desde os tempos de escola. Falo de «Bichos», um que ainda não conheceu reedição [texto de 2002, agora já há edições naquela editora], o que por certo não tardará a acontecer.
«Bichos» surgiu em 1940, sendo reeditado pouco depois e conhecendo traduções sucessivas para várias línguas. São contos de animais com o sentir dos humanos, ou talvez humanos dentro da pele de animais. Ou uma irmandade de animais e humanos, quem sabe... Nero, o cão, Tenório, o galo, Morgado, o burro, e tantos outros, Ladino, Ramiro, Farrusco, Mago, Miura, tantos outros. E também Madalena, caminhando pelas serranias. «Madalena arrastava-se a custo pelo íngreme carreiro cavado no granito, a tropeçar nos seixos britados por chancas e ferraduras milenárias. De vez em quando parava e, através de um postigo aberto na muralha das penedias, olhava o vale fundo, já muito longe, onde o corpo lhe pedira para ficar, à sombra de um castanheiro. O corpo. Porque a vontade fizera-a atravessar ligeira a frescura tentadora da veiga e meter-se animosa pela encosta acima. Tudo estava em chegar a Ordonho a tempo da sua hora. Por isso, era preciso reagir contra a própria natureza e andar para diante, custasse o que custasse.»
Por que se arrastará Madalena «pelo íngreme carreiro cavado no granito, a tropeçar nos seixos britados por chancas e ferraduras milenárias»? Já no fim do conto, pode ler-se… «Nem um som, nem a presença de uma aragem a quebrar a solidão que a cercava. Apenas num céu em fim de incêndio um mormaço cerrado./ Abriu de todo os olhos turvos. Entre as pernas, numa poça de sangue, estava caído e morto o filho. Carne sem vida, vermelha e suja. O segredo dela e de Deus!...»
O autor de «Bichos» nasceu em São Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, em 1907, vindo a falecer em 1995. De nome completo Adolfo Correia da Rocha, adoptou o pseudónimo de Miguel Torga. É ele que explica… «Eu sou quem sou. Torga é uma planta transmontana, urze campestre, cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas entre as rochas. Assim como eu sou duro e tenho raízes em rochas duras, rígidas, Miguel Torga é um nome ibérico, característico da nossa península.»
Torga estudou em Coimbra e aos vinte e quatro anos estava formado em medicina. Especialidade, Otorrinolaringologia. Começou por exercer clínica geral na sua aldeia, mas a experiência não foi famosa. Mudou-se para Leiria, mas por causa das tipografias acabou por regressar a Coimbra. Foi sempre um homem socialmente difícil. Pouco comunicativo, falando com mais convicção do que razão. Quase não oferecia livros a ninguém, recusava dedicatórias e autógrafos; e nunca confiava os seus livros a nenhuma editora, preferindo sempre edições do autor, com pequena tiragem e num papel o mais barato possível. Na clínica, usava sempre uma bata branca. Só comprou televisão após o 25 de Abril, para ouvir as notícias. Não tinha telefone em casa, para que não lhe interrompessem o trabalho. O material que mandava para a tipografia levava vários remendos, colados uns sobre os outros; chegava a ter sete ou oito colagens. Por causa de uma vírgula, era capaz de passar uma noite sem dormir.
Miguel Torga deixou uma vasta obra, entre poesia e prosa. Só os diários ocupam dezasseis volumes. Muitas obras suas foram traduzidos nas principais línguas de todo o mundo, incluindo o mandarim. Foi muitas vezes apontado como sério candidato ao Prémio Nobel da Literatura. Ganhou o prémio Luís de Camões em 1989. Chegou a ser preso pela PIDE. Algumas vezes teve vontade de sair do país, mas nunca o fez, justificando-se assim… «Mas abandonar a Pátria com um saco às costas? Para poder partir teria de meter no bornal o Marão, o Douro, o Mondego, a luz de Coimbra, a biblioteca e as vogais da língua. Sou um prisioneiro irremediável numa penitenciária de valores tão entranhados na minha fisiologia que, longe deles, seria um cadáver a respirar.»
4 comentários:
Meu caro: os Novos Contos da Montanha. É esse O livro. Os NCM é um dos grandes livros da literatura portuguesa de sempre.
José Carlos
O texto que coloquei era o único que tinha sobre livros de Miguel Torga. Das edições de autor, tenho aqui comigo três títulos («Bichos», «Contos da Montanha» e «Novos Contos da Montanha»); qualquer um é fantástico e mostra o génio do autor, tão desprezado pelos idiotas da política que referi num post anterior. Mas talvez eu acabe por ter um carinho especial pelo «Bichos», não sei...
Abraço amigo,
António
Eu também sinto que os "Bichos" é único, no género.
Provavelmente tem que ver com a época em que o li...
Eu prefiro sem sombra de dúvida, 'Os Bichos'... obra de de afectos e crueldade só possível em Torga.
No dia do Centenário do Nascimento do Autor, Coimbra esteve vazia da representação do governo!?
Jamais Coimbra e Clara Rocha [filha de Torga] irão esquecer!
O país está pobre de cultura... só avança a tecnologia!
Abraço
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