quinta-feira, 5 de abril de 2007

Uma crónica

Deixo a seguir a minha crónica «Os Dias do Blog» deste mês de Abril (revista «Magazine Artes»). Tem quase tudo a ver com coisas que foram surgindo por aqui .

O doutor de Goa
Num dia de Janeiro, eu estava todo descansado a escrever. Era no computador que escrevia, e a certa altura tive de fazer uma consulta na Internet. Foi então que vi, num portal qualquer, a ligação para uma notícia sobre Goa, onde andava o presidente da República mais uma volumosa comitiva de empresários. O presidente à pala, os empresários – segundo ouvi dizer – nem por isso. Lá fui ver até onde a ligação me poderia levar, a ligação que falava de um doutoramento e de uma manifestação de estudantes. Fiquei estupefacto, não por causa da manifestação mas por causa do doutoramento, dado pela Universidade de Goa. Mesmo honoris causa, mesmo descontando isso, não pude deixar de ficar estupefacto. O doutoramento era em Literatura.
Pensei que era no gozo, mas logo descobri que se tratava de algo mesmo a sério. Mais umas notícias, através de outras ligações, e lá continuava o doutoramento, ainda que o facto de ser em Literatura não fosse muito comentado. Como não seria depois. Tudo o que por cá é comentador, ou quase tudo, ignorou a distinção. Excepções, muito poucas... Manuel António Pina, claríssimo na seu espanto, lembrando que a diplomacia fez uma troca muito oportuna (o presidente fala de Economia na Índia, a Índia retribui-lhe com um honoris causa em Literatura) e também o episódio da ignorância sobre o número de cantos de «Os Lusíadas». Clara Ferreira Alves, espantada mas indiferente (que lhe faça bom proveito, ao doutor, o doutoramento, já se vê, era o que dizia no fim de uma crónica sobre outra coisa qualquer).
Este alheamento quase geral, tenho de confessar, deixou-me ainda mais estupefacto do que a idiotice dos doutoradores de Goa. Pela minha parte, envergonhado com a situação, mesmo muito envergonhado, fiz o que pude para exprimir esse sentimento, e a estupefacção. Da Universidade de Goa escrevi a tudo o que tinha o e-mail no site – professores, funcionários, sei lá eu o que mais… Respostas? Coisa pouca. Expliquei a barbaridade que a universidade tinha acabado de cometer; claro, acho que até já o sabia, em vão. Ao mesmo tempo, coloquei no meu blog «Floresta do Sul» uma pergunta… «A que é que se pode comparar a atribuição de um doutoramento honoris causa em Literatura a Cavaco Silva?» Respostas, algumas, bem mais do que de Goa, e nelas pude ler várias comparações bem interessantes. Não as reproduzo aqui, por questões de espaço. Assim consigo incluir o texto integral de um amigo meu, o jornalista e escritor Luís Graça; não é uma comparação, é mais, digamos assim, uma explicação. Ora vejam…
>>> Sabe-se como são estas coisas das visitas de Estado. É preciso obsequiar as visitas. E lembraram-se de um doutoramento honoris causa em Literatura. Também Mário Soares já dispunha de um doutoramento honoris causa em Literatura. Portanto, é uma coisa que fica sempre bem a um presidente. Nunca votei em Cavaco Silva. Nunca votei em Mário Soares. Estou perfeitamente consciente dos defeitos de um e de outro, enquanto políticos e homens. O doutoramento honoris causa em Literatura é mais merecido no caso de Mário Soares, que é um homem que ama os livros. Isso é indiscutível. Mas ainda assim dispunha de uma biblioteca reduzida para a dimensão da sua fundação, quando lá fui assistir a um belíssimo ciclo de cinema russo, há um ano e meio, a celebrar a vitória contra os alemães na Segunda Guerra Mundial. Essencialmente, eram volumes de Ciência Política. Sem desprezar esta área, um doutoramento honoris causa em Literatura deverá assentar melhor a quem disponha de outro tipo de livros na sua fundação. E creio bem que o doutoramento honoris causa de Soares é anterior à existência da fundação. Muito menos me chocaria um doutoramento honoris causa a Manuel Alegre. Poderia muito bem ser uma dádiva política, mas Manuel Alegre é bom poeta e fabuloso declamador. É um homem que está «por dentro» dos livros. Convém não banalizar os doutoramentos honoris causa. Um Lobo Antunes, um Saramago, têm dimensão literária mundial para justificar doutoramentos honoris causa. E não estou a discutir méritos literários de um e de outro. Por acaso até sou mais pró-Nobel para Lobo Antunes. Quanto a Cavaco Silva, o doutoramento é tanto mais injustificado quanto se sabe que no seu «reinado» de dez anos um dos capítulos que ficou mais para trás foi a Educação. Investiu-se em infra-estruturas (aproveitando o dinheiro para os pobres, da Europa), conviveu-se com a corrupção, estimulou-se o mito do «somos tão bons ou melhores do que os outros», fomentou-se o individualismo e o consumismo, esqueceu-se a solidariedade. Deu no que deu. Perdeu-se a batalha da Educação. Cavaco é um tecnocrata. É capaz de achar mais interessante um orçamento de Estado do que o «D. Quixote», de Cervantes. Mas certamente apreciará um doutoramento honoris causa em Literatura. Por motivos de vaidade. Um questionário de cinquenta perguntas sobre Literatura a Cavaco Silva seria arrasador quanto à sua ignorância na matéria. Algumas questões a que ele não saberia responder, na base da minha fé… Sabe qual o livro mais famoso de Elias Canetti?; Qual a mensagem principal de «O Principezinho», de Saint-Exupéry?; De que cor eram os olhos de Joaninha, em «Viagens na Minha Terra»? (esta poderia acertar por sorte, não há assim tantas cores para os olhos dos humanos); «O Primeiro Homem de Roma» põe em confronto duas personagens da história de Roma. Quais?; «Félix Krull, um Cavalheiro da Indústria» é uma série televisiva adaptada de um romance de um Prémio Nobel da Literatura. Qual o seu nome?; Como se chama a figura estilística literária correspondente ao flashback cinematográfico?; António Manuel Venda é um escritor português. Cite três títulos da sua obra e diga em que séculos viveu.
Viveu?! Fogo!... Num século tudo bem, viveu, mas no outro ainda vive, pelo menos enquanto escreve esta crónica.

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