quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Os frutos e a cor da terra

Por falar em José Carlos Barros (post «Isto promete», logo abaixo), deixo a seguir o texto que sobre ele escrevi há cerca de um ano para a revista «Pessoal» (secção «Stress? Relax»), intitulado precisamente «Os frutos e a cor da terra».
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[Entrada] Um homem do mundo, mais do que da sua terra natal, ou do que da terra onde vive. José Carlos Barros, um arquitecto paisagista que ainda não há muito tempo era director do Parque Natural da Ria Formosa, fala do seu percurso profissional e dos hobbies que não dispensa, nem que seja lá de tempos a tempos. E fala da Casa de Cacela, onde acorda com as aves pousadas nas árvores do jardim e vê os frutos a crescer e a terra a mudar de cor ao longo do ano. Trabalho ou hobby, fica-se na dúvida, mas esclarecê-la nem é o mais importante.

José Carlos Barros, transmontano de Boticas, estudou arquitectura paisagista em terras do sul, em Évora, e vive ainda mais a sul, no Algarve, tocando o mar, em Cacela. «Nasci em Trás-os-Montes. Vivi no Alentejo. Vivo no Algarve, onde tenho a minha vida. Mas sou, sobretudo, do mundo, de uma parte do mundo da qual a ruralidade não desapareceu, onde ainda sabemos o nome das árvores e vemos os frutos a crescer. É daí que eu sou.»
Profissionalmente ligado ao ordenamento do território e à conservação da natureza, José Carlos Barros pertence aos quadros da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, tendo nos últimos anos sido director do Parque Natural da Ria Formosa e da Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António. Classifica estas experiências como «as mais fascinantes e simultaneamente as mais constrangedoras». O fascínio, esse justifica-o com «os desafios colocados à gestão de espaços de elevadíssimo valor natural, ao desenvolvimento de acções de conservação da natureza, à gestão na perspectiva da compatibilização entre conservação de valores e recursos naturais e aproveitamento económico desses mesmos recursos»; já aos constrangimentos associa a ideia de que «gerir parques naturais, em Portugal – e sobretudo no caso da Ria Formosa, como resultado das pressões permanentes de alteração do uso do solo –, é uma espécie de missão impossível», em grande parte devido à «falta de pragmatismo que se verifica ao nível da decisão política». Explicando melhor… «Ficamo-nos quase sempre pelas meias tintas, ou alterando o discurso conforme as circunstâncias. E no intervalo destas indecisões e indefinições vale tudo. O que não é bom para a conservação da natureza, mas também não é bom para os verdadeiros empresários, que nunca conhecem as regras com clareza. Assim, mais do que gerir conflitos, dirigir um parque natural é, na maior parte das vezes, gerir indefinições.»
A estes constrangimentos, porém, já José Carlos Barros estava habituado, devido à passagem de dois anos pelos meios governamentais, em Lisboa, trabalhando com o secretário de Estado-adjunto da ministra do Ambiente. «Trabalhar junto do poder dá-nos a ilusão de poder. Digo ilusão porque na realidade a maior parte dos processos que implicam mudança acabam por ser lentos, tropeçam em teias burocráticas, encontram resistências administrativas muitas vezes difíceis de compreender.» Mesmo assim, a experiência terá sido gratificante, pelo menos por duas razões, em primeiro lugar por ter trabalhado com pessoas fabulosas – «e as pessoas são sempre o que maisfica» –, depois porque «apesar de tudo foi possível dar passos decisivos em matéria ambiental, nomeadamente com o programa ‘Litoral’, que em finais dos anos 90 colocou a gestão da orla costeira nas prioridades de intervenção do ministério, algo que nos anos mais recentes, infelizmente, não tem merecido a atenção e os esforços de actuação política que justificava e continua a exigir».

»»» Isso dos hobbies
E o que diria este homem do ambiente se lhe pedissem para revelar os seus hobbies? Talvez não fosse difícil acertar se se apostasse na natureza… «Se tivesse que escolher uma única coisa, diria que era a pesca às trutas. Embora actualmente só vá à pesca uma ou duas vezes por ano. Mas quando vou, geralmente, são quatro dias a dormir numa pequena casa de montanha sem electricidade nem água canalizada, sem linhas telefónicas nem rede de telemóvel. Com amigos. É muito mais do que pescar: é estar no rio. Em rios de montanha, perdidos do mundo, onde o contacto com a natureza é ainda uma realidade. Rios cavados no fundo dos vales, paisagens belíssimas, o silêncio dos montes, o voo das aves, os ruídos dos animais que se escondem nas margens. E as árvores: os amieiros, os freixos, os negrilhos, os carvalhos, as tílias, os vidoeiros. E a água: a água límpida das nascentes, a água do degelo das altas cumeadas. Os rios Beça, Mente, Rabaçal…»
Quanto a coisas mais próximas de casa, o mar, a praia e a ria… «Vivo a menos de dois quilómetros do mar, e a menos de dois quilómetros da Ria Formosa. Gosto imenso da praia, sobretudo no Inverno. E da ria, de estarna ria; quando chegar o Outono, é certo que lá estarei, a andar de kayak com a minha filha.»
Confissões de quem pela década de 1980 podia ser encontrado quase todas as semanas, às terças-feiras, nas páginas do suplemento «DN Jovem», do «Diário de Notícias», com poemas que invariavelmente eram premiados. «Com a literatura tenho uma relação estranha, porque não sou escritor, porque não levo muito a sério o que escrevo, mas simultaneamente porque não posso deixar de levar a sério o que escrevo… Escrever, mesmo não sendo escritor, não é um hobby. Nem sei… talvez acabe por escrever por todas estas contradições.» José Carlos Barros escreve sobretudo poesia, tendo alguns livros publicados, «quase sem circulação comercial». «Como concorri a prémios literários e ganhei, resultou que me publicassem alguns livros. Mas parece-me que de um modo geral os exemplares impressos ficaram mais em depósitos húmidos, nas caves das autarquias, por exemplo, do que transitando por aí. De resto, não gosto de escrever. Não saberia muito bem explicar por que escrevo. Porque também não sinto que não possa passar sem escrever. Eu não poderia passar era sem estar com os amigos, sem ir com eles à pesca uma vez por ano, sem nos encontrarmos por acaso e julgarmos que a felicidade é também isso: encontrarmo-nos e podermos estar juntos durante algum tempo a falar mal do mundo em geral, e da literatura e da política em particular.»
Ainda José Carlos Barros e a poesia… «Escrevo essencialmente poesia, sim, porque não exige disciplina. Posso escrever uns dez poemas numa noite e depois estar seis meses sem esboçar uma estrofe. Ou mais. Embora esta coisa dos blogs tenha alterado a regra. Mas passava bem sem a escrita. Penso que é para esse lado que durmo melhor.» Quanto a publicação em livros que sejam capazes de escapar aos «depósitos húmidos», a coisa parece difícil… José Carlos Barros tem muita coisa preparada, mas até agora ainda não mandou a nenhum editor. «E não é de supor que eles venham por aí abaixo de rota batida bater-me à porta e perguntar, ansiosos, se podem espreitar as minhas gavetas. O silêncio com o silêncio se paga. É assim, e parece-me bem: eu distancio-me do mundo, é justo que o mundo faça os possíveis por se distanciar de mim.»
Ficam então em resguardo algumas das mais belas palavras do autor da letra do futuro hino do Algarve, uma letra onde cada cantinho da região encontra lugar, e onde o futuro da própria região também tem lugar reservado. Apesar de tudo o que lhe tem acontecido. «A devastação maior que o Algarve sofreu» – diz José Carlos Barros – «nem é bem ambiental; é, antes de mais, cultural. Como se tivéssemos perdido a memória. O mais veio por acréscimo deste esquecimento. É certo que a construção sem regras assolou o litoral e foi caminhando, por vezes impune, barrocal adentro. Não sou de grandes optimismos, mas acredito que não há sístole sem diástole, acção sem reacção. Claro que muitas coisas se perderam irreversivelmente. Mas há muitos algarvios que não se conformam, e os sinais positivos começam a surgir. A impunidade começa a ser vigiada. Aprendemos com os erros. Claro que tudo leva o seu tempo; mais depressa adoecemos do que encontramos a cura. Mas sinto que vivo numa terra fantástica, numa terra com futuro.» Talvez seja também por isso que José Carlos Barros decidiu aceitar o desafio de participar mais activamente na vida política, sendo actualmente candidato – como independente, pela lista do Partido Social Democrata – à vice-presidência da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António.

[Caixa] A Casa de Cacela
O projecto é antigo, mas só há cerca de dois meses [declarações feitas há cerca de um ano] foi concretizado. A Casa de Cacela (http://www.casadecacela.com/) é uma unidade de agro-turismo, em Vila Nova de Cacela, entre Tavira e Vila Real de Santo António, no Algarve. É aí que vive José Carlos Barros, «no meio do campo, numa fazenda, a ver crescer as árvores, a ver crescer os frutos» (a propósito de ver crescer as árvores e os frutos, sugere-se uma visita a dois blogs de José Carlos Barros, http://casa-de-cacela.blogspot.com/ e http://presadopadrepedro.blogspot.com/, embora este último esteja agora sem actualizações). Ele próprio apresenta a sua casa… «Eu e a minha mulher é que tratamos disto – eu agora estou de férias, depois logo se vê. Gostaria de conseguir ficar último esteja agora sem actualizações). Ele próprio apresenta a sua casa… «Eu e a minha mulheraqui a tempo inteiro… O projecto é antigo, mas só há cerca de dois meses é que começou a funcionar. Foram precisos três anos para se conseguir o licenciamento; porque foi integralmente concretizado com financiamento próprio e recurso a crédito bancário, sem um cêntimo de apoios no âmbito do sistema de incentivos ‘SIVETUR’, vocacionado também para o apoio ao chamado turismo sustentável, mas que no Algarve tem servido essencialmente para financiar projectos turísticos de grandes grupos económicos. Ou seja, o equilíbrio, mais uma vez, não tem sido conseguido, e continuamos a não saber aproveitar os fundos comunitários para as mudanças de que o Algarve tanto necessita. O meu trabalho, actualmente, divide-se também por aqui – embora a gestão da casa seja feita essencialmente pela minha mulher. No fundo, tratou-se de recuperar as antigas instalações agrícolas e habitacionais e, com este projecto, permitir a continuação das actividades agrícolas que se desenvolviam na propriedade. Porque os agricultores, actualmente, ou são subsídio-dependentes ou ficam à mercê de intermediários: é como se fossem considerados um estorvo. E aqui desejávamos continuar a fazer agricultura. São seis hectares de hortas e pomares, sobretudo de amendoeiras, damasqueiros, ameixeiras, alfarrobeiras e figueiras. No fundo, a concretização do projecto está também ligada ao desejo de viver aqui, um pouco fora do mundo. Acordar com as aves pousadas nas árvores do jardim, ver os frutos a crescer, ver a terra a mudar de cor ao longo do ano.»

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