segunda-feira, 22 de maio de 2006

Demorada e suavemente

Resolvida a questão da providência cautelar que Margarida Rebelo Pinto e a respectiva editora interpuseram – acho que é assim que se diz – sobre «Couves & Alforrecas» (edição Objecto Cardíaco), o livro em que o crítico e professor universitário João Pedro George revela «os segredos» da prosa da escritora a que outro crítico (e professor creio que do secundário) associou o conceito de «realismo urbano total», resolvida que ficou a questão, dizia, uma surpresa. Falo por mim, é claro. Tenho-me deliciado com a leitura do referido «Couves &…», depois de ter lido boa parte do texto no blog «Esplanar», do próprio George. E ao mesmo tempo tenho-me deliciado com um segundo livro do autor, onde são reunidas muitas das suas «críticas, obsessões e outras ficções» («Não É Fácil Dizer Bem», edição Tinta da China). E neste último livro, a surpresa, de repente, assim sem mais nem menos. Eu a ler uns textos da parte final, todo lançado, até porque a maior parte deles são bem esgalhados, e esbarro com isto: «Aproximei a cara do ouvido dela e voltei a falar-lhe demorada e suavemente (…)». A coisa soava-me familiar. Mas de onde? Foi então que se fez luz. Recuei duas páginas, da pequena história «O hábito de mentir» para a anterior («A decadência das piscinas»), e lá estava. De novo o narrador (quem sabe o próprio George), sempre muito bem acompanhado. Conta a sua primeira experiência sexual. Está numa praia e enche uma rapariga de beijos. «Beijei-a nos lábios, beijei-a no queixo, na testa, nas pálpebras, beijei-a nas orelhas, nos lóbulos franjados de penugem loira, na nuca, nos ombros. Saboreei o mar na pele dela. Demorada e suavemente.» Duas pequenas histórias, arrumadas uma à outra, e tudo acontece «demorada e suavemente». Efeitos de tanto calcorrear as páginas de Margarida? Distracção? Coincidência? Na volta, uma tentativa de ser coerente…