Um bocadinho de «O Medo Longe de Ti» (edição Temas e Debates, 2003), o meu romance referido no post de dia 21 deste mês sobre o nome deste blog. A primeira vez que aparecem as duas florestas (págs. 10 e 11).
Lembras-te de como eu costumava embrenhar-me na floresta, ao fim da tarde, depois das aulas? Depois de sair da Universität, como todos os estrangeiros chamavam à faculdade, se calhar para não fazerem má figura perante os alemães? Eu deixava as coisas na cabana, preparava algo que pudesse levar para comer e partia sem destino certo. Quantas vezes quiseste falar das razões para eu ser assim... Até chegaste a pensar que eu ia correr, a princípio perguntaste-me isso, e eu disse simplesmente que não, que não ia para a floresta apenas para correr.
– Correr, só correr, posso fazê-lo aqui à volta da cabana.
– Pensar, talvez.
Foi o que ainda arriscaste, «Pensar, talvez», e eu fiquei em silêncio, com os olhos postos nos teus, procurando neles, nem sei... Uma luzinha, sim, uma luzinha que fosse, isso haveria de me bastar.
Eu ia para a floresta, mas acho que era apenas na ilusão de regressar à minha floresta do Sul, onde tinha sido verdadeiramente feliz, anos antes, em criança. Era isso. Sim, por mais que arriscasses que eu ia para lá com esperanças de, no meio das árvores, conseguir pensar numa história. Como a Sophie chegou a arriscar, ainda antes de ir observar-me. Por vezes eu corria, mas o mais normal era ficar dentro do carro a olhar para um lado e para outro, feito parvo. A floresta, eu achava que aquela floresta era toda certinha, com a estrada a atravessá-la, quase a parecer uma pista. Da estrada, ainda por cima, saíam caminhos todos bem planeados, limpos de mato, cheios de indicações, e invariavelmente com famílias a andarem de forma muito ordenada, como se estivessem numa repartição pública. E depois havia os animais, as corças, as martas, os esquilos, até os pássaros, cada um na sua zona, parecendo que tinham um contrato de prestação de serviços com o departamento florestal do município, sempre todos limpinhos, todos bem arranjados. E os raios de Sol, esses mal conseguiam passar as copas das árvores.
Naquela floresta cheia de regras, por mais que eu insistisse em lá voltar, não conseguia ver nada da minha floresta de Portugal, os campos, as serras, tudo ainda livre dos espartilhos do ordenamento. A minha floresta do Sul, onde os animais apareciam quando calhava, quando se lembravam, e não por obrigação, fossem dos bons, fossem dos maus, como os terríveis escorpiões pretos. Corças, aí, nem vê-las, esquilos tão-pouco, e martas ainda menos, tudo animais que eu costumava associar ao Jardim Zoológico de Lisboa. Bom, martas se calhar nem ao Jardim Zoológico. A minha floresta do Sul, a minha floresta de sempre, essa era outra, com escalavardos, com ouriços-cacheiros, com lontras, com escorpiões, dos amarelos e dos pretos, com javalis, até com um ou outro texugo de vez em quando. E nela as pessoas andavam pelos caminhos traçados ao sabor de impulsos de muitos e muitos anos, porque era aí que trabalhavam, ou passavam a caminho do trabalho, ou porque tinham de apanhar uns matos para prepararem a cama dos animais de criação.
Lembras-te de como eu costumava embrenhar-me na floresta, ao fim da tarde, depois das aulas? Depois de sair da Universität, como todos os estrangeiros chamavam à faculdade, se calhar para não fazerem má figura perante os alemães? Eu deixava as coisas na cabana, preparava algo que pudesse levar para comer e partia sem destino certo. Quantas vezes quiseste falar das razões para eu ser assim... Até chegaste a pensar que eu ia correr, a princípio perguntaste-me isso, e eu disse simplesmente que não, que não ia para a floresta apenas para correr.
– Correr, só correr, posso fazê-lo aqui à volta da cabana.
– Pensar, talvez.
Foi o que ainda arriscaste, «Pensar, talvez», e eu fiquei em silêncio, com os olhos postos nos teus, procurando neles, nem sei... Uma luzinha, sim, uma luzinha que fosse, isso haveria de me bastar.
Eu ia para a floresta, mas acho que era apenas na ilusão de regressar à minha floresta do Sul, onde tinha sido verdadeiramente feliz, anos antes, em criança. Era isso. Sim, por mais que arriscasses que eu ia para lá com esperanças de, no meio das árvores, conseguir pensar numa história. Como a Sophie chegou a arriscar, ainda antes de ir observar-me. Por vezes eu corria, mas o mais normal era ficar dentro do carro a olhar para um lado e para outro, feito parvo. A floresta, eu achava que aquela floresta era toda certinha, com a estrada a atravessá-la, quase a parecer uma pista. Da estrada, ainda por cima, saíam caminhos todos bem planeados, limpos de mato, cheios de indicações, e invariavelmente com famílias a andarem de forma muito ordenada, como se estivessem numa repartição pública. E depois havia os animais, as corças, as martas, os esquilos, até os pássaros, cada um na sua zona, parecendo que tinham um contrato de prestação de serviços com o departamento florestal do município, sempre todos limpinhos, todos bem arranjados. E os raios de Sol, esses mal conseguiam passar as copas das árvores.
Naquela floresta cheia de regras, por mais que eu insistisse em lá voltar, não conseguia ver nada da minha floresta de Portugal, os campos, as serras, tudo ainda livre dos espartilhos do ordenamento. A minha floresta do Sul, onde os animais apareciam quando calhava, quando se lembravam, e não por obrigação, fossem dos bons, fossem dos maus, como os terríveis escorpiões pretos. Corças, aí, nem vê-las, esquilos tão-pouco, e martas ainda menos, tudo animais que eu costumava associar ao Jardim Zoológico de Lisboa. Bom, martas se calhar nem ao Jardim Zoológico. A minha floresta do Sul, a minha floresta de sempre, essa era outra, com escalavardos, com ouriços-cacheiros, com lontras, com escorpiões, dos amarelos e dos pretos, com javalis, até com um ou outro texugo de vez em quando. E nela as pessoas andavam pelos caminhos traçados ao sabor de impulsos de muitos e muitos anos, porque era aí que trabalhavam, ou passavam a caminho do trabalho, ou porque tinham de apanhar uns matos para prepararem a cama dos animais de criação.