segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Uma história

Maradona esteve brilhante


Chamemos-lhe, por exemplo, Gabriel García Márquez. Ou antes, chamemos-lhe Diego Armando Maradona, que provavelmente ainda é mais conhecido do que o escritor colombiano. É uma das personagens desta história, que aconteceu há alguns anos, em Portugal, durante o primeiro aniversário de uma livraria. Maradona – talvez devesse chamar-lhe García Márquez, já nem sei – estava convidado.
Foi no primeiro aniversário de uma livraria, durante um leilão de livros em que eu próprio dei ajuda. Fiz sugestões para a preparação do programa e também forneci alguns contactos, além, obviamente, de carregar umas boas caixas de livros. Um dia, na preparação da festa, tinha surgido a ideia de fazer o leilão. A ideia foi-se desenvolvendo e então tomou-se à decisão de o leilão ser de livros de viagens, com os próprios autores dos livros escolhidos a marcarem presença. Tudo iria acontecer no largo da câmara, junto à entrada da livraria, e esperava-se que acorressem umas centenas de pessoas.
Muitos dos escritores convidados aceitaram, e entre eles havia gente conhecida, como José Eduardo Agualusa, Miguel Sousa Tavares, Clara Pinto Correia, Robyn Davidson, José Megre, Manuel João Ramos, Miguelanxo Prado ou José Manuel Fajardo. Cada um teria um livro para ser leiloado, depois de dizer algumas palavras, como complemento do texto ou da ilustração que pelo próprio punho teria colocado numa das páginas em branco.
Claro que para fazer o leilão tinha de ser convidada uma pessoa importante, conhecida no meio, digamos assim, literário. Foi então que surgiu a ideia de convidar o tal Gabriel García Márquez de cá, ou antes, o tal Diego Armando Maradona, ou Mário Vargas Llosa, ou Eusébio da Silva Ferreira, enfim, o que se queira. Talvez Maradona seja o melhor. E foi mesmo convidado. As pessoas da livraria achavam que ele não ia aceitar, mas a verdade é que aceitou.
Cá o nosso Maradona aceitou. Bom, lá chegou o dia do aniversário, com várias iniciativas, até que ao fim da tarde ia começar o leilão. Os escritores que tinha confirmado a presença estavam todos, e tinham devolvido os livros com o texto, o desenho e o autógrafo. Os que só se tinham comprometido a devolver o livro também tinham cumprido. O largo da câmara estava cheio, confirmava-se mesmo a presença de centenas de pessoas. Eu tinha carregado muitas caixas de livros. Tudo corria bem, tirando o caso de Diego Armando Maradona. Não estava presente. Nem ia estar, apesar de ter o nome no programa, confirmado e reconfirmado. Tinha telefonado a dizer que um problema de última hora o impedia.
E então, para fazer o leilão, de repente as pessoas da livraria lembraram-se de mim. Foi desta forma que eu me vi no meio dos escritores, com um pequeno martelo para assinalar cada arrematação. Lembro-me de que havia um Benfica – Porto ao mesmo tempo e que dava na televisão. Se fosse o Sporting a jogar seria uma catástrofe, pensei, mas assim… Curiosamente, o jogo não tinha desmobilizado a assistência. Ainda pensei que poderiam ter vindo pelo Maradona, e depois pensei que ele próprio, o nosso Maradona, era capaz de estar ausente por causa do jogo. Daquele ou de outro qualquer.
Acho que fui escolhido por também ser escritor, embora os convidados fossem dos conhecidos e eu não. Lá me apresentaram, a dizer que era o substituto do leiloeiro Diego Armando Maradona, que também tinha publicado livros e essas coisas. Aí notei que pouca gente da assistência se importou, o que me levou a pensar que estavam mesmo interessados nos autores e nos livros a leilão. Confirmei-o depois, com os valores obtidos em cada martelada.
Lembro-me de que guardei os apontamentos que ia tomando, por isso posso ainda confirmar os valores. Estávamos nos últimos tempos do escudo. O livro de José Eduardo Agualusa, «Um Estranho em Goa», por exemplo, com o preço base de três mil e quinhentos escudos, foi vendido por vinte mil. O de José Manuel Fajardo, «Terra Prometida», que partiu de quatro mil e quinhentos, chegou aos vinte e um mil, o de José Megre, «Trinta Anos de Viagens», com uma base de sete mil e quinhentos escudos, atingiu vinte e cinco mil. Miguel Sousa Tavares (as crónicas de «Sul») ficou-se pelos dez mil, mas Manuel João Ramos («Histórias Etíopes») chegou aos doze e Miguelanxo Prado («Carta de Lisboa») aos quinze. Robyn Davidson («Lugares Desertos») chegou a dez mil e quinhentos escudos e Clara Pinto Correia atingiu os sete mil («The Big Easy»). Pelo meio, ainda foi leiloado um CD com músicas de Lula Pena, uma cantora portuguesa na altura radicada no Luxemburgo, que ia actuar a seguir. Ela não conseguiu conter o espanto quando viu o CD chegar a dezasseis mil e quinhentos escudos. E também foi leiloada uma foto do fotógrafo Vasco Cunha Monteiro, integrada numa exposição sobre uma viagem à Patagónia que estava patente na livraria (e o que é certo é que a foto chegou aos cinquenta e dois mil escudos). 
Tudo isto, principalmente para quem anda pelo mundo dos livros, parece muito dinheiro. Ainda por cima tratando-se de autores vivos e parte deles presentes no leilão e a fazerem intervenções. Foi uma surpresa para mim. E também para os autores participantes. José Eduardo Agualusa, antes de regressar ao hotel onde devia descansar um pouco para depois apanhar o avião de regresso a Berlim, onde então estava a viver, veio ter comigo e disse-me: «Pá, tu és mesmo bom!» Por momentos pensei que ele tinha algum dos meus livros e que se calhar andava com ideias de cravar-me um autógrafo, mas logo percebi o que ele queria dizer, ao ouvi-lo falar de novo: «Pá, tu vendeste um livro meu por vinte contos, um livro que nem chega aos três nas livrarias! Tu és mesmo bom!»
Ou seja, o leilão foi um sucesso. As pessoas quiseram falar com os escritores, e eu, com quem ninguém parecia querer falar, afastei-me da mesa e fui ver se era preciso ajudar nalguma coisa, talvez carregar umas caixas de livros se as pessoas já tivessem esgotado os das mesas onde iam fazendo as vendas – de livros, de comidas e de bebidas.
Passados uns dias, saiu no jornal da terra um trabalho sobre a festa. O leilão era o grande destaque. Fui logo ler o texto. Falava-se do projecto da livraria, mas sobretudo dos escritores, dos livros a leilão e dos valores atingidos (trocando alguns em relação ao que eu tinha colocado nos meus apontamentos). A meio da leitura, tive a esperança de que falassem de mim, que tinha sido apresentado para fazer o leilão em vez do grande Maradona. Mas nada. Fui avançando no texto, e nada, mesmo nada. Só a livraria, os livros, os escritores, e até a enorme assistência que tinha enchido o largo da câmara. Tentei colocar-me no meu lugar, pensando até que se falassem de mim como leiloeiro também poderiam dizer das minhas andanças a carregar caixas de livros. E também a dar uma ajuda na zona das mesas de venda de livros, de comidas e de bebidas. Ou seja, eu não tinha que estar a pensar aquelas coisas. Por isso avancei no texto. Mais pormenores dos escritores presentes, com alguma insistência em José Eduardo Agualusa e José Manuel Fajardo. Bem merecida, pelo menos era o que eu pensava. Gostava muito dos livros deles, e inclusive no leilão tinha falado um pouco de cada livro – «Um Estranho em Goa», que tinha lido num Verão, no Algarve, na praia, e a viagem escrita pelo espanhol, que tinha acabado uns tempos antes, depois de ter lido outro livro dele, pequenino, chamado «Carta do Fim do Mundo». De outros escritores no leilão eu também conhecia os livros, e por isso tinha falado deles, e nos casos em que não conhecia por aí além tinha-me refugiado em considerações mais genéricas, inclusive sobre o respectivo autor.
Eu pensava nisto a ler o texto do jornal, aproximava-me do fim e já me tinha esquecido do desejo de ver lá o meu nome a dizer que tinha sido o leiloeiro, ou se quisesse uma linguagem mais elaborada a dizer que tinha tido a meu cargo o leilão dos livros. Mas nada.
Até que a duas linhas do fim, de repente, um parágrafo acabava. E depois, a abrir o último, pequenino, dei com uma frase que me captou ainda mais a atenção. Comecei a ler devagar, tentando apanhar bem cada palavra: «Conduziu – o – leilão – de – forma – brilhante…» Por momentos pensei que mais do que aqueles escritores famosos, uns pelo facto de serem escritores, outros pelo facto de serem famosos de outras coisas e também terem escrito livros, por momentos pensei que no meio deles eu ia ser o grande destaque. Pensei que ia receber, talvez, o maior elogio da festa do primeiro aniversário da livraria. Em vez de avançar até ao fim da frase, decidi recuar, para lê-la toda de seguida, sem pausas. Voltei ao início do pequeno parágrafo e li: «Conduziu o leilão, de forma brilhante…» Já ia lançado a dizer o meu nome, mas não. No jornal o que escreviam era que quem tinha conduzido o leilão de forma brilhante tinha sido, já se vê, Diego Armando Maradona. O nosso Maradona. Como aliás vinha no programa.

2 comentários:

António Souto disse...

Uma história, afinal, com muitas nas entrelinhas!
Eu, depois desta, e sem pretensões, já decidi: leiloeiro, jamais!

amvenda@sapo.pt disse...

E eu o mesmo. Na altura não me importei de fazer aquela figura, mas agora não me estou a ver a repetir. Ainda por cima com um martelo daqueles das lagostas.