Os romanos
Segunda-feira, a meio da tarde, em Vila Real de Santo António. Um calor não se podia dizer sufocante porque não havia notícias de que alguém, nas últimas horas, tivesse sufocado na cidade; ou até nos arredores, contando nos arredores, inclusive, com a cidade espanhola de Ayamonte. Mas alguém que fizesse a descrição assim sem pensar muito nas palavras poderia acabar por usar o termo «sufocante», ou mesmo aventurar-se para expressões como «ar irrespirável» ou «o sol a arder». Para não estar com mais coisas, a temperatura era de quarenta e dois graus. Assim indicava o painel do carro, que costumava andar sempre atento, embora a respeito do calor nunca fizesse avisos, apenas em relação ao frio. Bastava que a temperatura se aproximasse de zero para se pôr com mensagens de piso escorregadio e mais algumas apoquentações que poderiam surgir. Já para altas temperaturas, nada, a menos que no computador que o regulava estivesse previsto lançar avisos apenas depois de atingidos os cinquenta graus, coisa que eu nunca tinha experimentado. Um dia haveria de ir no carro até Sevilha – já que não estava para ir com ele a conduzir até ao Qatar, por exemplo, só para tirar a prova. Haveria de ver as previsões meteorológicas, as que faziam para Sevilha, e então, quando indicassem temperaturas tão altas, lá fazia eu as contas para no dia exacto chegar à cidade andaluza e ver se no painel do carro aparecia algum aviso. Na volta não apareceria nada e a viagem seria em vão, mas também ir de carro até Sevilha não era assim uma coisa tão complicada como isso. Já ao Qatar… E depois, no Qatar – um sítio sobre o qual eu tinha uma vez ouvido que nele era proibido dizer que a temperatura passava os cinquenta graus, se passasse –, o que poderia acontecer no Qatar se o carro se pusesse com avisos? Quem sabe não ficaria lá o carro, e também o dono, um apreendido por blasfémia, outro detido por cumplicidade… O melhor era nem pensar no sarilho, esquecer o Qatar, talvez até esquecer a ida a Sevilha, o teste ao painel de informações do carro, que se calhar não passava de uma desculpa para ir a Espanha. Até porque se eu queria ir a Espanha era só uma questão de meia-hora, se tanto, ir até à ponte sobre o Guadiana, atravessá-la e pronto, lá estava Espanha. Eu podia inclusive ficar por Ayamonte, que agora tinha diante de mim lá do outro lado do rio.
Era o que eu via, com o carro parado num dos estacionamentos da marginal de Vila Real de Santo António. Lembrava-me das viagens em criança, desde a Serra de Monchique, passavam-me pela cabeça as recordações de chegar ali sem que nada me parecesse como agora. O estuário já não se mostrava tão grande, Espanha já não parecia estar tão longe, já não havia, por causa da ponte nova, o corrupio dos barcos de um lado para o outro… Eu lembrava-me de tudo, as viagens com os meus pais para as compras em Ayamonte, uma aventura para mim, e agora a cidade tão perto. Lembrava-me também de outra terra, maior; era uma promessa que eu tinha em criança, a de mais tarde ir até uma cidade que dali não se via, a cidade que para mim era nesses tempos já distantes uma espécie de maravilha do mundo. A mítica cidade de Huelva, bem para lá de Ayamonte; aí haveríamos um dia de ir às compras.
Chegavam-me estes pensamentos enquanto olhava para o rio. Dentro do carro, salvo do calor pelo ar condicionado, a fazer tempo para que chegasse a hora de uma sessão literária no centro cultural da cidade. Eu ia falar dos meus livros, naquela segunda-feira a meio da tarde. Um dia de Agosto… Um calor que para um narrador distraído podia sufocar pessoas. Quarenta graus… Estaria alguém no centro cultural para me ouvir, ou para me perguntar alguma coisa? Não me parecia… Não era uma questão de pessimismo. Eu nem sabia bem o que era, pensava nisso, no que faria se não aparecesse ninguém, ou se estivesse, por exemplo, apenas uma pessoa, sentada numa das filas do meio. Ou se aparecesse um bêbado a fazer umas perguntas todas muito elaboradas mas sem sentido, como me tinha acontecido uma vez numa livraria em Lisboa. As minhas preocupações antes da sessão. Coisa pouca, se me pusesse a fazer comparações com uma preocupação bem maior que começava a tomar conta de mim. No rio, um barco. Eu via-o ainda de dentro do carro, preparando-me para sair por entretanto ter chegado a hora da sessão. De repente o barco tinha captado a minha atenção. Durante algum tempo depois de estacionar eu não tinha reparado nele, mas agora reparava, agora sim. O barco estava mais próximo, navegando desde a foz do Guadiana. Viria do alto mar? Era tudo muito estranho para mim. Um barco cheio de romanos aproximava-se do molhe. E eu no carro a ver, e de repente as poucas pessoas que andavam por ali ao calor a perceberem também o que chegava, e a agitarem-se. Teria o indecente programa «Allgarve» alguma coisa a ver com aquilo? Eu já com uma explicação, a de uma animação turística… Mas com romanos? E as pessoas a agitarem-se. Seria, afinal, outra coisa? E por que é que as pessoas teriam medo? Faria isso parte da própria encenação?
Bom, saí do carro e aproximei-me do limite do molhe. (CONTINUA)
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Segunda-feira, a meio da tarde, em Vila Real de Santo António. Um calor não se podia dizer sufocante porque não havia notícias de que alguém, nas últimas horas, tivesse sufocado na cidade; ou até nos arredores, contando nos arredores, inclusive, com a cidade espanhola de Ayamonte. Mas alguém que fizesse a descrição assim sem pensar muito nas palavras poderia acabar por usar o termo «sufocante», ou mesmo aventurar-se para expressões como «ar irrespirável» ou «o sol a arder». Para não estar com mais coisas, a temperatura era de quarenta e dois graus. Assim indicava o painel do carro, que costumava andar sempre atento, embora a respeito do calor nunca fizesse avisos, apenas em relação ao frio. Bastava que a temperatura se aproximasse de zero para se pôr com mensagens de piso escorregadio e mais algumas apoquentações que poderiam surgir. Já para altas temperaturas, nada, a menos que no computador que o regulava estivesse previsto lançar avisos apenas depois de atingidos os cinquenta graus, coisa que eu nunca tinha experimentado. Um dia haveria de ir no carro até Sevilha – já que não estava para ir com ele a conduzir até ao Qatar, por exemplo, só para tirar a prova. Haveria de ver as previsões meteorológicas, as que faziam para Sevilha, e então, quando indicassem temperaturas tão altas, lá fazia eu as contas para no dia exacto chegar à cidade andaluza e ver se no painel do carro aparecia algum aviso. Na volta não apareceria nada e a viagem seria em vão, mas também ir de carro até Sevilha não era assim uma coisa tão complicada como isso. Já ao Qatar… E depois, no Qatar – um sítio sobre o qual eu tinha uma vez ouvido que nele era proibido dizer que a temperatura passava os cinquenta graus, se passasse –, o que poderia acontecer no Qatar se o carro se pusesse com avisos? Quem sabe não ficaria lá o carro, e também o dono, um apreendido por blasfémia, outro detido por cumplicidade… O melhor era nem pensar no sarilho, esquecer o Qatar, talvez até esquecer a ida a Sevilha, o teste ao painel de informações do carro, que se calhar não passava de uma desculpa para ir a Espanha. Até porque se eu queria ir a Espanha era só uma questão de meia-hora, se tanto, ir até à ponte sobre o Guadiana, atravessá-la e pronto, lá estava Espanha. Eu podia inclusive ficar por Ayamonte, que agora tinha diante de mim lá do outro lado do rio.
Era o que eu via, com o carro parado num dos estacionamentos da marginal de Vila Real de Santo António. Lembrava-me das viagens em criança, desde a Serra de Monchique, passavam-me pela cabeça as recordações de chegar ali sem que nada me parecesse como agora. O estuário já não se mostrava tão grande, Espanha já não parecia estar tão longe, já não havia, por causa da ponte nova, o corrupio dos barcos de um lado para o outro… Eu lembrava-me de tudo, as viagens com os meus pais para as compras em Ayamonte, uma aventura para mim, e agora a cidade tão perto. Lembrava-me também de outra terra, maior; era uma promessa que eu tinha em criança, a de mais tarde ir até uma cidade que dali não se via, a cidade que para mim era nesses tempos já distantes uma espécie de maravilha do mundo. A mítica cidade de Huelva, bem para lá de Ayamonte; aí haveríamos um dia de ir às compras.
Chegavam-me estes pensamentos enquanto olhava para o rio. Dentro do carro, salvo do calor pelo ar condicionado, a fazer tempo para que chegasse a hora de uma sessão literária no centro cultural da cidade. Eu ia falar dos meus livros, naquela segunda-feira a meio da tarde. Um dia de Agosto… Um calor que para um narrador distraído podia sufocar pessoas. Quarenta graus… Estaria alguém no centro cultural para me ouvir, ou para me perguntar alguma coisa? Não me parecia… Não era uma questão de pessimismo. Eu nem sabia bem o que era, pensava nisso, no que faria se não aparecesse ninguém, ou se estivesse, por exemplo, apenas uma pessoa, sentada numa das filas do meio. Ou se aparecesse um bêbado a fazer umas perguntas todas muito elaboradas mas sem sentido, como me tinha acontecido uma vez numa livraria em Lisboa. As minhas preocupações antes da sessão. Coisa pouca, se me pusesse a fazer comparações com uma preocupação bem maior que começava a tomar conta de mim. No rio, um barco. Eu via-o ainda de dentro do carro, preparando-me para sair por entretanto ter chegado a hora da sessão. De repente o barco tinha captado a minha atenção. Durante algum tempo depois de estacionar eu não tinha reparado nele, mas agora reparava, agora sim. O barco estava mais próximo, navegando desde a foz do Guadiana. Viria do alto mar? Era tudo muito estranho para mim. Um barco cheio de romanos aproximava-se do molhe. E eu no carro a ver, e de repente as poucas pessoas que andavam por ali ao calor a perceberem também o que chegava, e a agitarem-se. Teria o indecente programa «Allgarve» alguma coisa a ver com aquilo? Eu já com uma explicação, a de uma animação turística… Mas com romanos? E as pessoas a agitarem-se. Seria, afinal, outra coisa? E por que é que as pessoas teriam medo? Faria isso parte da própria encenação?
Bom, saí do carro e aproximei-me do limite do molhe. (CONTINUA)
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