Coloco a seguir um texto que escrevi para a revista «Os Meus Livros» (edição de Julho passado, rubrica «Aposta»).
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Rute Mota
A escritora que cita Holly Cole
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Foi no final de 2002. Eu publicava mensalmente um conto numa revista que dirigia. Era assim desde o número um, para o qual tinha pedido a colaboração a um escritor muito talentoso, que conhecia desde os anos oitenta, de ler os seus contos no «DN Jovem»: José Riço Direitinho. Ele tinha-me mandado um conto absolutamente notável, chamado «Amor num aroma intenso a jasmim» (que acabaria por ser incluído em 2005 no seu livro «Um Sorriso Inesperado»). Nos números seguintes da revista tinha publicado contos de outros escritores conhecidos, como por exemplo Possidónio Cachapa, Fernando Sobral ou Maria João Cantinho. Um dia, um dia daquele final de 2002, quando preparávamos a primeira edição do ano seguinte, chegou-me um conto de uma jovem ainda sem obra publicada. O nome dessa jovem, Rute Mota. Eu poderia nessa altura ter feito a mesma aposta que faço agora aqui neste texto. Com as primeiras linhas que li. Um conto com um título tão simples quanto inesquecível: «Mais uma história de amor». Era acompanhado por uma citação, «Please don't blame it on my hearth/ Blame it on my youth» – dois versos de uma canção de Holly Cole, uma cantora que depois percebi ser uma espécie de obsessão da autora do conto; uma boa obsessão.
O conto começava assim: «Havia uma casa ao fundo da rua. Lembras-te? Há quanto tempo estaria ela lá? Não o sabíamos. Não importava. De uma coisa tínhamos a certeza, estava lá desde muito antes de nós. Era mesmo o que se podia considerar uma casa antiga... Ou será que a víamos assim apenas por ser anterior a nós? Uma casa pequena, simples. Porta e janelas sempre fechadas. As paredes tinham aquela cor indistinta que fica quando a cal começa a estalar pelo calor forte do Verão e pela chuva agreste do Inverno. Nunca conhecêramos alguém que lá tivesse morado. As paredes... As paredes eram mesmo feitas de pedra, ou serei eu a querer diferenciar a casa ainda mais das construções de hoje?»
Pareceu-me uma voz diferente, um mundo diferente, o que sempre procuro nos livros e é tão raro encontrar. Uma descoberta como outras feitas antes, e outras que fiz depois, de vozes tão diferentes quanto fascinantes. De escritores como Santiago Gamboa, Javier Cercas, Camilo José Cela, Elly Welt, Roberto Ampuero, o já referido José Riço Direitinho, Alicia Giménez Bartlett, José Eduardo Agualusa, Naguib Mahfouz, Juan Eslava Galán ou Carlos María Domínguez.
Avancei pelo conto, até ao parágrafo final: «A mesma rapariga de há pouco... Está de volta. Senta-se no outro banco de madeira. Há um gato que a acompanha e lhe roça o pêlo lânguido pelas pernas. É o fim da tarde, arrefece ainda mais... A noite não tarda a cair. Há um rapaz que se aproxima, tem mais ou menos a mesma idade que a rapariga, ou talvez seja um pouco mais velho. Senta-se ao lado dela. Estão os dois sentados. Está frio. Têm as mãos dadas. Parecem não me ver. Os pássaros, agora, estão de regresso às árvores, barulhentos. Continuo a não saber que árvores são estas, mas não me surpreenderia se fossem ciprestes.»
Foi o primeiro de muitos contos que li da Rute, a escritora que desde essa altura sei que está ao nível do que de melhor temos em Portugal. Mas que me parece ter uma enorme tendência para o recato. A escritora que não põe em livros as histórias que escreve não sei por quê. Mesmo assim, pode-se espreitar um pouco do seu trabalho num blog chamado «Bicho do Mato por Aí», um blog que em tempos teve outro nome, «Esta Distância que nos Une». Há muita poesia, mais do que ficção, mas sobre poesia não me atrevo a dar opiniões ou a fazer apostas.
Há pouco tempo, a Rute surpreendeu-me, mesmo com a sua tendência para o recato. Soube que tinha ganho um prémio literário com um conjunto de alguns dos seus contos. Não sei o que a terá levado a concorrer. Mas o importante é que concorreu; e que ganhou. Gostava de um dia, depressa, ver publicado esse conjunto de contos. Um pequeno livro. O primeiro de muitos livros da Rute na ficção.
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Rute Mota
A escritora que cita Holly Cole
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Foi no final de 2002. Eu publicava mensalmente um conto numa revista que dirigia. Era assim desde o número um, para o qual tinha pedido a colaboração a um escritor muito talentoso, que conhecia desde os anos oitenta, de ler os seus contos no «DN Jovem»: José Riço Direitinho. Ele tinha-me mandado um conto absolutamente notável, chamado «Amor num aroma intenso a jasmim» (que acabaria por ser incluído em 2005 no seu livro «Um Sorriso Inesperado»). Nos números seguintes da revista tinha publicado contos de outros escritores conhecidos, como por exemplo Possidónio Cachapa, Fernando Sobral ou Maria João Cantinho. Um dia, um dia daquele final de 2002, quando preparávamos a primeira edição do ano seguinte, chegou-me um conto de uma jovem ainda sem obra publicada. O nome dessa jovem, Rute Mota. Eu poderia nessa altura ter feito a mesma aposta que faço agora aqui neste texto. Com as primeiras linhas que li. Um conto com um título tão simples quanto inesquecível: «Mais uma história de amor». Era acompanhado por uma citação, «Please don't blame it on my hearth/ Blame it on my youth» – dois versos de uma canção de Holly Cole, uma cantora que depois percebi ser uma espécie de obsessão da autora do conto; uma boa obsessão.
O conto começava assim: «Havia uma casa ao fundo da rua. Lembras-te? Há quanto tempo estaria ela lá? Não o sabíamos. Não importava. De uma coisa tínhamos a certeza, estava lá desde muito antes de nós. Era mesmo o que se podia considerar uma casa antiga... Ou será que a víamos assim apenas por ser anterior a nós? Uma casa pequena, simples. Porta e janelas sempre fechadas. As paredes tinham aquela cor indistinta que fica quando a cal começa a estalar pelo calor forte do Verão e pela chuva agreste do Inverno. Nunca conhecêramos alguém que lá tivesse morado. As paredes... As paredes eram mesmo feitas de pedra, ou serei eu a querer diferenciar a casa ainda mais das construções de hoje?»
Pareceu-me uma voz diferente, um mundo diferente, o que sempre procuro nos livros e é tão raro encontrar. Uma descoberta como outras feitas antes, e outras que fiz depois, de vozes tão diferentes quanto fascinantes. De escritores como Santiago Gamboa, Javier Cercas, Camilo José Cela, Elly Welt, Roberto Ampuero, o já referido José Riço Direitinho, Alicia Giménez Bartlett, José Eduardo Agualusa, Naguib Mahfouz, Juan Eslava Galán ou Carlos María Domínguez.
Avancei pelo conto, até ao parágrafo final: «A mesma rapariga de há pouco... Está de volta. Senta-se no outro banco de madeira. Há um gato que a acompanha e lhe roça o pêlo lânguido pelas pernas. É o fim da tarde, arrefece ainda mais... A noite não tarda a cair. Há um rapaz que se aproxima, tem mais ou menos a mesma idade que a rapariga, ou talvez seja um pouco mais velho. Senta-se ao lado dela. Estão os dois sentados. Está frio. Têm as mãos dadas. Parecem não me ver. Os pássaros, agora, estão de regresso às árvores, barulhentos. Continuo a não saber que árvores são estas, mas não me surpreenderia se fossem ciprestes.»
Foi o primeiro de muitos contos que li da Rute, a escritora que desde essa altura sei que está ao nível do que de melhor temos em Portugal. Mas que me parece ter uma enorme tendência para o recato. A escritora que não põe em livros as histórias que escreve não sei por quê. Mesmo assim, pode-se espreitar um pouco do seu trabalho num blog chamado «Bicho do Mato por Aí», um blog que em tempos teve outro nome, «Esta Distância que nos Une». Há muita poesia, mais do que ficção, mas sobre poesia não me atrevo a dar opiniões ou a fazer apostas.
Há pouco tempo, a Rute surpreendeu-me, mesmo com a sua tendência para o recato. Soube que tinha ganho um prémio literário com um conjunto de alguns dos seus contos. Não sei o que a terá levado a concorrer. Mas o importante é que concorreu; e que ganhou. Gostava de um dia, depressa, ver publicado esse conjunto de contos. Um pequeno livro. O primeiro de muitos livros da Rute na ficção.
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