terça-feira, 2 de setembro de 2008

Fernando Venâncio

O texto que coloco a seguir é da autoria de Fernando Venâncio (na foto, de Paulo Escrevente). Está na edição deste mês da revista «Pessoal» (secção «Os Meus Trabalhos»).
.
Vamo-nos todos divertir imenso
Gosto de que me perguntem o que faço na vida. O clima de boa disposição está garantido. Se bem percebi, iluminam-se-me os olhos, e, mesmo que a pressa não permita entrechos, o outro ficou certo de que estava ali uma grande conversa.
Mas não exageremos. O essencial diz-se num sopro: sou professor, dou aulas. A certo grupo de alunos, levo a exprimirem-se em português, e pelo menos a entendê-lo. A outros, inicio-os na complexa Política Linguística europeia, com os seus modelos, as suas manhas, as suas hipocrisias, os seus ideais. A minha acção no mundo por aí se fica. Não pertenço a circuitos influentes, não varro os continentes comunicando as últimas, sou duma pacatez que até a mim próprio faz impressão. Fora do espaço de ensino, sou um mero observador. De longe em longe, e lamentando a intromissão, acedo a contar aquilo que avisto. Mas devo dizer que se avista muito.
Durante algum tempo, lancei avisos à navegação num blogue. Fui feliz com isso, e ouso pensar que não fui o único. Mas, quando depus o microfone, descobri uma tranquilidade nova: a de não ter que produzir «opiniões».
Antes dos blogues, servia-me do que havia: o pacientíssimo papel dos jornais. Uma descoberta aqui, uma denúncia ali, um desapontamento acolá, eu ia mapeando o mundo literário nacional e fazendo a minha terapia – sendo pago por isso, ainda que mal. Mal, e por culpa minha, nossa, a dos trabalhadores intelectuais, que convencemos directores de jornais e editores dessa imensa graça que não é o nosso nome por cima dos títulos ou em baixo dos textos. Para me garantir algum respeito próprio, prefiro pensar que eles, decentemente, nos desprezam.
Reuni tão inocentes divertimentos em dois livros, «Maquinações e Bons Sentimentos», em 2002, e «Último Minuete em Lisboa», este ano. Neles tentei a «outra» história da literatura do meu tempo. E gosto de pensar que, num dia distante, se o olhar histórico aliciar ainda algum desviante, serei lido com avidez, em bárbaro suporte ou em holograma. Um neto de netos irá ter aquilo que, quando, há 20 anos, esgaravatei o século XIX literário português por trás da versão dos vencedores, eu não tive: os relatos de quem espreitou nos bastidores desse mundo. Tive de espreitar eu próprio, deu mesmo uma tese de doutoramento, mas não mudou um iota à História Oficial. Seria, de resto, pasmoso que mudasse.
Este empenho na coisa literária nunca foi, tem de confessar-se, além de um derivativo. Um lugar ameno, de longe em longe alvoroçado, mas donde sempre se sai sem particular drama. O espaço que nunca abandonei é o da observação do idioma. Como objecto histórico, como criação colectiva.
O linguista estava feito aos 10 anos, quando em mim três feições de português se debatiam já: a alentejana natal, a lisboeta da primária, a minhota em que acabara de mergulhar. Um jovem de hoje não faz ideia da compartimentação linguística que, há 50 anos, entre nós vigorava. Nada, decerto, que se compare ao país que hoje habito, onde a intercompreensão dialectal se torna precária a 50 quilómetros. Mas era mais do que suficiente para desnortear um tenro infante, despertando-o, de caminho, para as agruras e os fascínios da ciência.
A diversidade linguística portuguesa (entretanto grandemente esbatida pela mobilidade e pela televisão) teve sempre uma leitura predominantemente nacionalista. Teve-a, e tem-na ainda, a própria História da Língua. Tudo quanto se observe em território nacional recebe uma explicação endémica, aconchegante. Mítica, às vezes mitológica, mas fantasiosa de cima a baixo. Ora, o nosso idioma, só por artifício se pode defini-lo como produto «nacional». As suas feições marcantes estavam já decididas, e actuantes, quando sobreveio a «nacionalidade», e teriam sempre existido, mesmo sem ela. Entendeu-me bem: o que chamamos «português» existiria mesmo que não existisse Portugal. Teria sido chamado, sim, o que efectivamente já era de nascença: «galego».
Sei que, exprimindo-me assim, estou a ser inconveniente. Espero demonstrar, um dia, que estou a ser simplesmente sério. Isso vai exigir um livro, «Português e Companhia», que, transbordando de amor pátrio, há anos preparo.
Não excluo que, dessa vez, a pachorrenta e sedativa História Oficial franza pelo menos um sobrolho. Uma coisa posso garantir: vamo-nos todos divertir imenso.
[Texto: Fernando Venâncio]
.
Fernando Venâncio (n. Mértola, 1944) é professor na Universidade de Amesterdão, onde se formou em Linguística e se doutorou em Teoria Literária. Colabora na «Ler» e no «Expresso». Publicou os romances «Os Esquemas de Fradique» e «El-Rei no Porto». Traduz ficção do neerlandês.
.

Sem comentários: