Tinha de ser o Luís Graça. Fez uma entrevista comigo em que eu nem tive de mexer uma palha. Ou seja, ele fez as perguntas e de caminho deu logo as respostas. Disse-me que é para uma revista chamada «Guttenborgas», não sei se literária se de carácter generalista ou se outra coisa qualquer. Eu que só bebo água e um ou outro sumo, nesta entrevista farto-me de beber vinho e creio que whisky, ou martinis. E mais, não tendo muito jeito para falar, acabo aqui por ter um discurso fluente; e por vender muitos livros e dar muitos autógrafos; e por ter filhos com nomes estranhíssimos, embora, digamos assim, literários. Bom, mas adiante com a entrevista…
António Manuel Venda
«Comparado comigo o Lobo Antunes não passa de um Saramago»
.
A caminhar fortemente para os 40 anos, o escritor António Manuel Venda passa os dias entre Montemor e Lisboa, mas os maiores incêndios que provocou ocorreram em Monchique, em épicas batalhas florais com o presidente da edilidade, Carlos Tuta. Mais veemente como vereador do que como escritor, o pão para a mesa é ganho numa revista, de que é director. Modesto, António Manuel Venda não é de grandes polémicas. E só não estranhámos o seu tom provocador nesta entrevista para a revista Guttenborgas porque tanto o entrevistador como o entrevistado estavam completamente bêbedos. Assim aconteceu. Porque os 39 graus de Montemor e uma viagem atribulada entre Lisboa e o Alentejo nos predispuseram para o álcool e as confidências. Ter as páginas do «DN Jovem» no sangue é algo que constrói laços. Desses e doutros laços vos falamos nesta entrevista.
António Manuel Venda
«Comparado comigo o Lobo Antunes não passa de um Saramago»
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A caminhar fortemente para os 40 anos, o escritor António Manuel Venda passa os dias entre Montemor e Lisboa, mas os maiores incêndios que provocou ocorreram em Monchique, em épicas batalhas florais com o presidente da edilidade, Carlos Tuta. Mais veemente como vereador do que como escritor, o pão para a mesa é ganho numa revista, de que é director. Modesto, António Manuel Venda não é de grandes polémicas. E só não estranhámos o seu tom provocador nesta entrevista para a revista Guttenborgas porque tanto o entrevistador como o entrevistado estavam completamente bêbedos. Assim aconteceu. Porque os 39 graus de Montemor e uma viagem atribulada entre Lisboa e o Alentejo nos predispuseram para o álcool e as confidências. Ter as páginas do «DN Jovem» no sangue é algo que constrói laços. Desses e doutros laços vos falamos nesta entrevista.
Texto: Luís Graça
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. «The more I give, the more you want.» (Barry White)
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Esta é uma verdade inconveniente. Quando mais damos à escrita, mais ela exige. António Manuel Venda já deu bastante.
Revista Guttenborgas (RG) – Já deste bastante à escrita. Achas que a escrita te deu o suficiente?
[o escritor olhou para o infinito, fez uma festa no Monge, um dos seus três cães de raça Labrador, tomou um gole bem aviado de «Monte das Servas 2003», tinto]
António Manuel Venda (AMV) – Pá, isso é uma pergunta tramada para começar a entrevista... O que é que te posso dizer? Para já, não escrevo por vaidade, para ser o Nobel mais conhecido de Montemor... Escrevo porque tem de ser, porque me faz falta... A escrita já me deu bastante, mas ainda não me deu o suficiente. Por isso é que todos os escritores continuam a escrever. Acho que se perguntassem a todos os escritores, na hora da morte, se eles gostariam de ter mais um mês de vida para escrever, todos responderiam que sim.
RV – Tens alguma mágoa com os livros que escreveste até agora?
AMV – Tenho. Sinceramente. E não é por apenas vender uns 30 mil por edição. Vender é uma coisa secundária, que vem por acréscimo. Vendo mais ou menos o mesmo que um livro do Mário de Carvalho, o que não é mau, tendo em conta o valor literário dele. O que me magoa é não conseguir chegar aos leitores de forma mais corrente. Gosto de estar a dar autógrafos na Feira do Livro, a de Lisboa. Dou uns 100 ou 150 autógrafos naquelas duas horas em que lá estou. Mas a maior parte das vezes eu percebo que os leitores não compreenderam as minhas mensagens.
RV – És um escritor de mensagens?
[o Monge apareceu com algo na boca e preparava-se para provocar o Lito, um gato amarelo, de feitio alentejano, vocacionado para dormir e comer; o escritor conseguiu afugentar o cão para longe; o Lito abriu um olho e tornou a deitar a cabeça em cima do último exemplar da revista «Os Meus Livros»]
AMV – O que é isso de ser um escritor de mensagens? Dito assim parece uma coisa um bocado intelectual, no mau sentido do termo. Eu quero... Sei lá o que quero... Sei, por acaso até sei... Quero que percebam o sentido das coisas que escrevo. Mas isso é o que toda a gente quer, desde a Margarida Rebelo Pinto ao Saramago e ao Lobo Antunes, passando pelo Geofrey Stokes...
[elevámos uma sobrancelha; podia ser falha nossa, mas nunca tínhamos ouvido falar de Geofrey Stokes]
RG – Geofrey Stokes?...
AMV – Sim, Geofrey Stokes. Não conheces? Pois é. Se eu falar do Barnaby Nickleby toda a gente já leu «Nas Asas de Um Engano». Ou a poesia da Mafalda Chambel. Mas ninguém sabe que o Stokes escreveu uma verdadeira obra-prima com «A Besta Escondida». Disse-me o Luís Oliveira, da Antígona, que foi a melhor coisa que editou nos últimos cinco anos.
[parámos a entrevista para o jantar; tomámos alguns martinis dos novos e depois fomos levar os cães a passear; António Manuel Venda não esqueceu a máquina fotográfica e durante a hora e meia que durou o passeio deixei-me invadir por uma orgia de beleza e harmonia; foi o meu momento Júlio Roberto; no regresso, jantámos maravilhosamente e eu caí pela primeira vez; efeito da meia-garrafa de «Esporão»; e depois fomos até uns sofás-baloiço e eu carreguei outra vez no botão do gravador Sony, o que diz «rec»]
RG – O Beaudelaire disse que devíamos andar sempre bêbedos. Achas que um escritor devia ser obrigado a estar bêbedo quando escreve, para ser mais autêntico?
AMV – Olha, acho que sim. Mas bêbedo a sério, como nós estamos agora. Não é bêbedo a brincar. É bêbedo à Hemingway, à Jack London... Porque há para aí escritores que se estiverem bêbedos a brincar continuam sem escrever nada de jeito...
RG – Costumas ler muito?
AMV – Só não leio mais porque não tenho tempo. Até na auto-estrada eu leio, entre Lisboa e Montemor...
RG – Isso não é perigoso? Ler e conduzir ao mesmo tempo...
AMV – Só é perigoso se o livro for mau. Especula-se demasiado com o que é perigoso na estrada. Devia era haver uma ASAE da literatura. Por exemplo, apanhava-se uma miúda de 14 anos acampada na Expo à espera do concerto dos Tokyo Hotel e via-se logo o que a miúda estava a ler... O que é isso que estás a ler? Margarida Rebelo Pinto? Bem, como vais ao concerto dos Tokyo Hotel podes continuar a ler. Se fosses para um concerto dos Corrs ficavas já sem o livro...
RG – Já que referes Margarida Rebelo Pinto… Se pudesses escolher um português para o Nobel, em quem recairia a tua escolha? Lobo Antunes ou Saramago?
AMV – Nem um nem outro. Para mim era de caras o padre António Vieira. Ou o Joaquim Paço d’Arcos. Ou o Geofrey Stokes, se ele fizesse como o Pepe e se naturalizasse português, e se largasse Dublin. Tirando o clima, Montemor é muito parecido com Dublin.
RG – Não reconheces méritos literários a Lobo Antunes e a Saramago?
[o escritor olhou para mim, suspirou, fez uns gestos no ar, tentou apanhar uma melga que tinha pousado em cima da orelha direita do Lito, ganhou fôlego e respondeu]
AMV – Pá, comparado comigo o Lobo Antunes não passa de um Saramago.
RG – Explica-te lá.
AMV – Não dá para explicar. É uma coisa que se sente. É outra gramática emocional. Não quero dizer que sou melhor ou pior. Mas sinto que o Lobo Antunes comparado comigo não passa de um Saramago. Ou que o Miguel Sousa Tavares comparado com o José Rodrigues dos Santos não passa de uma Margarida Rebelo Pinto... Já não sei bem o que digo... Olha lá, não devíamos ter comido as empadinhas na estação de serviço... Que horas são isto? Eh, pá, três da madrugada e ainda estão uns 30 graus... Ainda bem que amanhã é sábado e não tenho de ir para Lisboa...
RG – Amanhã é domingo...
AMV – Pois. Não interessa… O que eu queria dizer é que não tenho de me fazer à estrada...
[ouviu-se um «clic» do gravador; estava na hora de acabar a entrevista]
RG – Tens projectos para o futuro, em termos literários?
AMV – Estava a ver que não fazias essa pergunta. É muito original...
RG – É o que há. Dói-me a cabeça. Amanhã devo estar com uma ressaca bonita…
AMV – Nunca discuto a beleza de uma ressaca…
RG – Diz lá o que andas a escrever.
AMV – Há muita coisa em carteira, por assim dizer. Primeiro, um livro de contos para a «Esfera dos Crivos».
RG – Já tens título?
AMV – Em princípio vai ser «De Montemor e dos Algarves», mas ainda não é certo. Pode ser que fique «Monchique, Mon Genre», mas o Zé Barnabé diz que há gente que não percebe o trocadilho com «bon chic, bon genre». Nestas coisas, convém ouvir o editor...
RG – Estás muito adiantado?
AMV – Mais um ou dois contos e depois começo a rever. Mas tenho entremeado com um novo romance.
RG – Chama-se?...
AMV – «O Meco Longe de Ti». Passa-se nos anos sessenta, entre a Costa da Caparica e a Praia do Meco. É um romance de costumes. Terá uma costela do «Sinais de Fogo», do Sena. O processo de escrita é mais o do Cardoso Pires, mas quem ler as primeiras páginas vai notar algumas influências do Vergílio Ferreira no «Manhã Submersa» ou do Carlos de Oliveira de «Uma Abelha na Chuva». Enfim, eu não tenho bem a noção do que estou a escrever, durante o processo. De resto, quem notou estas influências foi o meu filho mais novo.
RG – O Flauberto agora está com quantos?
AMV – Está com doze, mas quem costuma ler os meus livros em primeiro lugar é o Mopassânico, que tem dez.
RG – E ele já leu isso tudo, aos dez anos?
AMV – Já. Para desenjoar da banda desenhada japonesa e da Playstation.
RG – Deixas os teus miúdos horas e horas à frente da Playstation?
AMV – Ó pá, em primeiro lugar isto é Montemor. Em segundo lugar, num mundo de margaridas, que mal tem a Playstation?
RG – Falaste outra vez de Margarida Rebelo Pinto por algum motivo particular?
AMV – Não, tu é que estás a falar. Olha, já bebia qualquer coisa. Vamos para a sala de snooker?
RG – Eh, pá, eu vejo as bolas todas duas vezes…
AMV – Quem é que vai jogar? Tenho lá um scotch de doze anos que é um mimo... Traz aí o gato... Espera, deixa-me meter-lhe a trela, que já dá para arrastares...
RG – Isso não magoa o gajo?
AMV – Não. Ele é lixado quando dorme. Ferra o galho e é do caraças.
RG – Não podias simplesmente pegar-lhe ao colo?
AMV – Quer dizer, para o ano há toiros de morte em Montemor e tu estás preocupado com isto de levar o gato de rojo enquanto dorme...
[duas horas depois adormeci; quando a amizade existe entre dois seres humanos, falar de literatura é um simples exercício de lógica; na segunda-feira seguinte cheguei à redacção da revista e o editor perguntou-me: «Então essa entrevista com o Venda? Correu bem?»; disse-lhe que sim, puxei de um cigarro, fui para o pé da nova estagiária meter conversa e passadas umas horas atirei-me à desgravação]
Esta é uma verdade inconveniente. Quando mais damos à escrita, mais ela exige. António Manuel Venda já deu bastante.
Revista Guttenborgas (RG) – Já deste bastante à escrita. Achas que a escrita te deu o suficiente?
[o escritor olhou para o infinito, fez uma festa no Monge, um dos seus três cães de raça Labrador, tomou um gole bem aviado de «Monte das Servas 2003», tinto]
António Manuel Venda (AMV) – Pá, isso é uma pergunta tramada para começar a entrevista... O que é que te posso dizer? Para já, não escrevo por vaidade, para ser o Nobel mais conhecido de Montemor... Escrevo porque tem de ser, porque me faz falta... A escrita já me deu bastante, mas ainda não me deu o suficiente. Por isso é que todos os escritores continuam a escrever. Acho que se perguntassem a todos os escritores, na hora da morte, se eles gostariam de ter mais um mês de vida para escrever, todos responderiam que sim.
RV – Tens alguma mágoa com os livros que escreveste até agora?
AMV – Tenho. Sinceramente. E não é por apenas vender uns 30 mil por edição. Vender é uma coisa secundária, que vem por acréscimo. Vendo mais ou menos o mesmo que um livro do Mário de Carvalho, o que não é mau, tendo em conta o valor literário dele. O que me magoa é não conseguir chegar aos leitores de forma mais corrente. Gosto de estar a dar autógrafos na Feira do Livro, a de Lisboa. Dou uns 100 ou 150 autógrafos naquelas duas horas em que lá estou. Mas a maior parte das vezes eu percebo que os leitores não compreenderam as minhas mensagens.
RV – És um escritor de mensagens?
[o Monge apareceu com algo na boca e preparava-se para provocar o Lito, um gato amarelo, de feitio alentejano, vocacionado para dormir e comer; o escritor conseguiu afugentar o cão para longe; o Lito abriu um olho e tornou a deitar a cabeça em cima do último exemplar da revista «Os Meus Livros»]
AMV – O que é isso de ser um escritor de mensagens? Dito assim parece uma coisa um bocado intelectual, no mau sentido do termo. Eu quero... Sei lá o que quero... Sei, por acaso até sei... Quero que percebam o sentido das coisas que escrevo. Mas isso é o que toda a gente quer, desde a Margarida Rebelo Pinto ao Saramago e ao Lobo Antunes, passando pelo Geofrey Stokes...
[elevámos uma sobrancelha; podia ser falha nossa, mas nunca tínhamos ouvido falar de Geofrey Stokes]
RG – Geofrey Stokes?...
AMV – Sim, Geofrey Stokes. Não conheces? Pois é. Se eu falar do Barnaby Nickleby toda a gente já leu «Nas Asas de Um Engano». Ou a poesia da Mafalda Chambel. Mas ninguém sabe que o Stokes escreveu uma verdadeira obra-prima com «A Besta Escondida». Disse-me o Luís Oliveira, da Antígona, que foi a melhor coisa que editou nos últimos cinco anos.
[parámos a entrevista para o jantar; tomámos alguns martinis dos novos e depois fomos levar os cães a passear; António Manuel Venda não esqueceu a máquina fotográfica e durante a hora e meia que durou o passeio deixei-me invadir por uma orgia de beleza e harmonia; foi o meu momento Júlio Roberto; no regresso, jantámos maravilhosamente e eu caí pela primeira vez; efeito da meia-garrafa de «Esporão»; e depois fomos até uns sofás-baloiço e eu carreguei outra vez no botão do gravador Sony, o que diz «rec»]
RG – O Beaudelaire disse que devíamos andar sempre bêbedos. Achas que um escritor devia ser obrigado a estar bêbedo quando escreve, para ser mais autêntico?
AMV – Olha, acho que sim. Mas bêbedo a sério, como nós estamos agora. Não é bêbedo a brincar. É bêbedo à Hemingway, à Jack London... Porque há para aí escritores que se estiverem bêbedos a brincar continuam sem escrever nada de jeito...
RG – Costumas ler muito?
AMV – Só não leio mais porque não tenho tempo. Até na auto-estrada eu leio, entre Lisboa e Montemor...
RG – Isso não é perigoso? Ler e conduzir ao mesmo tempo...
AMV – Só é perigoso se o livro for mau. Especula-se demasiado com o que é perigoso na estrada. Devia era haver uma ASAE da literatura. Por exemplo, apanhava-se uma miúda de 14 anos acampada na Expo à espera do concerto dos Tokyo Hotel e via-se logo o que a miúda estava a ler... O que é isso que estás a ler? Margarida Rebelo Pinto? Bem, como vais ao concerto dos Tokyo Hotel podes continuar a ler. Se fosses para um concerto dos Corrs ficavas já sem o livro...
RG – Já que referes Margarida Rebelo Pinto… Se pudesses escolher um português para o Nobel, em quem recairia a tua escolha? Lobo Antunes ou Saramago?
AMV – Nem um nem outro. Para mim era de caras o padre António Vieira. Ou o Joaquim Paço d’Arcos. Ou o Geofrey Stokes, se ele fizesse como o Pepe e se naturalizasse português, e se largasse Dublin. Tirando o clima, Montemor é muito parecido com Dublin.
RG – Não reconheces méritos literários a Lobo Antunes e a Saramago?
[o escritor olhou para mim, suspirou, fez uns gestos no ar, tentou apanhar uma melga que tinha pousado em cima da orelha direita do Lito, ganhou fôlego e respondeu]
AMV – Pá, comparado comigo o Lobo Antunes não passa de um Saramago.
RG – Explica-te lá.
AMV – Não dá para explicar. É uma coisa que se sente. É outra gramática emocional. Não quero dizer que sou melhor ou pior. Mas sinto que o Lobo Antunes comparado comigo não passa de um Saramago. Ou que o Miguel Sousa Tavares comparado com o José Rodrigues dos Santos não passa de uma Margarida Rebelo Pinto... Já não sei bem o que digo... Olha lá, não devíamos ter comido as empadinhas na estação de serviço... Que horas são isto? Eh, pá, três da madrugada e ainda estão uns 30 graus... Ainda bem que amanhã é sábado e não tenho de ir para Lisboa...
RG – Amanhã é domingo...
AMV – Pois. Não interessa… O que eu queria dizer é que não tenho de me fazer à estrada...
[ouviu-se um «clic» do gravador; estava na hora de acabar a entrevista]
RG – Tens projectos para o futuro, em termos literários?
AMV – Estava a ver que não fazias essa pergunta. É muito original...
RG – É o que há. Dói-me a cabeça. Amanhã devo estar com uma ressaca bonita…
AMV – Nunca discuto a beleza de uma ressaca…
RG – Diz lá o que andas a escrever.
AMV – Há muita coisa em carteira, por assim dizer. Primeiro, um livro de contos para a «Esfera dos Crivos».
RG – Já tens título?
AMV – Em princípio vai ser «De Montemor e dos Algarves», mas ainda não é certo. Pode ser que fique «Monchique, Mon Genre», mas o Zé Barnabé diz que há gente que não percebe o trocadilho com «bon chic, bon genre». Nestas coisas, convém ouvir o editor...
RG – Estás muito adiantado?
AMV – Mais um ou dois contos e depois começo a rever. Mas tenho entremeado com um novo romance.
RG – Chama-se?...
AMV – «O Meco Longe de Ti». Passa-se nos anos sessenta, entre a Costa da Caparica e a Praia do Meco. É um romance de costumes. Terá uma costela do «Sinais de Fogo», do Sena. O processo de escrita é mais o do Cardoso Pires, mas quem ler as primeiras páginas vai notar algumas influências do Vergílio Ferreira no «Manhã Submersa» ou do Carlos de Oliveira de «Uma Abelha na Chuva». Enfim, eu não tenho bem a noção do que estou a escrever, durante o processo. De resto, quem notou estas influências foi o meu filho mais novo.
RG – O Flauberto agora está com quantos?
AMV – Está com doze, mas quem costuma ler os meus livros em primeiro lugar é o Mopassânico, que tem dez.
RG – E ele já leu isso tudo, aos dez anos?
AMV – Já. Para desenjoar da banda desenhada japonesa e da Playstation.
RG – Deixas os teus miúdos horas e horas à frente da Playstation?
AMV – Ó pá, em primeiro lugar isto é Montemor. Em segundo lugar, num mundo de margaridas, que mal tem a Playstation?
RG – Falaste outra vez de Margarida Rebelo Pinto por algum motivo particular?
AMV – Não, tu é que estás a falar. Olha, já bebia qualquer coisa. Vamos para a sala de snooker?
RG – Eh, pá, eu vejo as bolas todas duas vezes…
AMV – Quem é que vai jogar? Tenho lá um scotch de doze anos que é um mimo... Traz aí o gato... Espera, deixa-me meter-lhe a trela, que já dá para arrastares...
RG – Isso não magoa o gajo?
AMV – Não. Ele é lixado quando dorme. Ferra o galho e é do caraças.
RG – Não podias simplesmente pegar-lhe ao colo?
AMV – Quer dizer, para o ano há toiros de morte em Montemor e tu estás preocupado com isto de levar o gato de rojo enquanto dorme...
[duas horas depois adormeci; quando a amizade existe entre dois seres humanos, falar de literatura é um simples exercício de lógica; na segunda-feira seguinte cheguei à redacção da revista e o editor perguntou-me: «Então essa entrevista com o Venda? Correu bem?»; disse-lhe que sim, puxei de um cigarro, fui para o pé da nova estagiária meter conversa e passadas umas horas atirei-me à desgravação]
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5 comentários:
grande qualidade do entrevistador, não se chamasse Graça...
António:
Uma entrevista com formato "non sense", mas que até faz muito sentido. Deu para me sorrir enquanto lia. No meio de tanta má notícia, que nos vai enchendo de angústia, estes momentos foram passados num oásis. À noite, depois de jantar, beberei um golo de "Old Parr", simples como sempre: - À vossa!
Um abraço.
Luís e Manuel
Há uma coisa que eu tenho de dizer: ser entrevistado por um génio, que ainda por cima escreve logo as respostas, não é para qualquer um.
Abraço,
António
Bem razão tinhas, António, que o nosso amigo é mais rápido que a própria sombra... e sempre muito bom!
Boa, Luís, ainda um dia destes hei-de dar contigo a entrevistar o teu homónimo de apelido Camões!
Aquele abraço, para ambos.
António, e uma coisa que me esqueci de referir no pequeno texto de introdução: o autor continua disponível para entrevistas destas.
Abraço,
António
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