O mocho continuou sem se mexer, sempre a observar-me, e a certa altura pareceu-me notar-lhe um lamento, um grito de lamento que ecoava apenas no fundo do seu olhar cheio de força. Então, como se tivesse perdido a paciência – eu, não ele, porque ele continuava impassível –, toquei-lhe com a bota do pé direito, ao de leve, tentando afastá-lo. Mas nada, apenas percebi um pequeno cambaleio. Fiz um pouco mais de pressão e ele teve de dar um passo curto para não cair. E quando tentei fazer novamente pressão, aí já não consegui, porque ele começou a afastar-se, em direcção a uma das bermas da estrada, a do meu lado esquerdo. Fiquei a vê-lo andar, muito devagar; fiquei a vê-lo assim até onde a luz permitia por ali a visibilidade, o pequeno mocho a afastar-se, sempre a olhar para mim, pois caminhava com a cabeça virada para trás o mais que, por certo, conseguia. E tinha as asas um pouco levantadas, não abertas, apenas levantadas, com as pontas a cruzarem a parte de trás do corpo. Pensei na imagem de um menino triste a afastar-se, contrariado, de mãos coladas às costas. Essa imagem esteve durante uns segundos na minha cabeça, até que se dissipou, quando me meti no carro e rodei a chave, que tinha deixado na ignição.
Excerto do romance «O que Entra nos Livros»; foto de Jan van Holten (http://www.cowb.be/oiseau-centre.htm).
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