sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Textos sobre livros - 43

«O Romance do Kremlin», de Vladimir Fédorovski (Editora Livros do Brasil, 326 pp.)

Na colina do javali

A história de um dos símbolos da Rússia, um velho castelo fortificado construído no alto de uma colina onde uma estranha ave de rapina deixou cair um javali. O Kremlin, palco de assassínios, orgias, conspirações e muito mais que se possa ou não imaginar.

Distinguido em 2004, em Itália, como «Melhor Documento do Ano», «O Romance do Kremlin», do historiador, ensaísta e romancista Vladimir Fédorovski – que também foi diplomata durante a época da «Perestroïka», tendo mais tarde, aquando do golpe do Verão de 1991, tido um papel relevante –, conta uma longa história, a de «um castelo fortificado fundado casualmente durante uma caçada milagrosa». Tem origem numa lenda, que começa assim: «Numa noite escura e tempestuosa, o boiardo Kutchka chegou a um pequeno bosque, perto de um afluente do Moscova.» Kutchka passa a noite com os seus homens numa cabana de caçadores. De manhã, bem cedo, manda tocar as trombetas para dar início à perseguição de um enorme e feroz javali. Quando avistam o animal, surge uma ave de rapina com duas cabeças. Cai sobre o desgraçado do javali, segura-o bem entre as patas e com a ajuda dos dois bicos, e depois larga-o sobre a colina que domina o rio Moscova. O boiardo ficou de tal modo impressionado que decidiu erguer nesse local, precisamente o centro geográfico da Rússia europeia, uma pequena aldeia de caçadores. A aldeia tornar-se-ia a cidade de Moscovo, ainda que até que isso acontecesse muita água tivesse que correr pelo rio, e sangue (não necessariamente no seu leito). No alto da colina haveria de surgir o tal castelo fortificado, o Kremlin. Em russo, «Kreml» significa fortaleza.
Fédorovski, graças ao seu envolvimento na vida política russa, conseguiu para o livro obter testemunhos inéditos e ter acesso a arquivos confidenciais. Traça assim uma história de quase mil anos, que se lê como um romance, como o próprio título do livro parece logo fazer questão de assinalar. Um dos mais conhecidos símbolos da Rússia, cujas paredes viram tantos pecados e pecadilhos, enganos e desenganos, tantas vidas e tantas mortes, com muitos dos seus mistérios colocados à disposição dos leitores. Os seus e os de Gorbatchev, Lenine, Putin, Pedro o Grande, Brejnev, Ieltsin, Ivan o Terrível e tantos outros (e algumas outras). Grandezas e misérias, em plena colina do javali. De onde não se avista o mundo todo, mas de onde se consegue influenciá-lo.

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