Em Setembro do ano passado publiquei aqui um texto que em tempos tinha escrito sobre o romance de José António Saraiva «O Último Verão na Ria Formosa» (de que gostei muito; a imagem é da Ria Formosa). Fi-lo a propósito de uma crítica arrasadora (enfim, mais maldosa do que arrasadora) que tinha lido a um novo romance do autor, «As Herdeiras de Adriano Gentil», de cuja leitura tinha desistido. Há dias, também aqui, recebi um comentário sobre a tal crítica às «herdeiras»; dizia o seguinte: «Essa crítica arrasadora no ‘Mil Folhas’ sobre ‘As Herdeiras de Adriano Gentil’ é vergonhosa e infame, porque este é um grande livro que se lê de uma penada. Simples, bem escrito e apelativo. E não se pode deixar de ler ‘Jardim Colonial’.» Enfim, não sei… Por um lado achei a crítica maldosa, por outro desisti da leitura. Entre uma desistência e um livro de que gostei muito («último verão»), o melhor será colocar aqui o que escrevi sobre o romance que José António Saraiva escreveu entre um e o outro, o «Jardim Colonial», referido no comentário.
Livro: «Jardim Colonial», de José António Saraiva (Publicações Dom Quixote, 342 pp.)
Com toda a simplicidade
Segundo romance de José António Saraiva, depois do notável «O Último Verão na Ria Formosa», publicado em 2001. O autor consegue com «Jardim Colonial» uma nova história fascinante, mantendo uma escrita muito simples, que prende o leitor. Poderia ter sido mais cuidadoso na maneira como resolveu tudo nas derradeiras páginas.
Há pouco mais de quatro anos, depois de uma primeira experiência na literatura de ficção, com «O Último Verão na Ria Formosa» – e uma experiência muito bem sucedida, assinale-se –, José António Saraiva disse numa entrevista, quando o questionaram sobre o seu futuro como escritor, que não contava meter-se a fazer outro romance. Acabou por fazer, e também numa entrevista, no caso à revista do jornal que dirige [Saraiva ainda estava no «Expresso» quando escrevi isto], falava inclusive de que um dia, quem sabe, talvez possa ganhar o Prémio Nobel; justificava-se com o facto de Saramago o ter ganho depois de uma carreira começada tardiamente (bem mais velho do que Saraiva era em 2001) e, principalmente, por achar que uma pessoa quando se mete a fazer uma coisa deve querer ser a melhor e lutar por isso. Claro que o Prémio Nobel da Literatura não significa que quem o recebe seja o melhor, por exemplo, do respectivo ano, ou da última década, ou mesmo do último século, mas isso já serão contas de outro rosário; independentemente do que depois se diga, quem fica com ele (e com o dinheiro, como em 1998 bem lembrou Saramago) tem razões de sobra para sentir que chegou a sua vez de ter a distinção mais importante.
«Jardim Colonial», o romance que José António Saraiva acabou por escrever depois do anúncio que fez na referida entrevista de 2001 (um anúncio que a mim, particularmente, me deixou com alguma pena, pois achei fascinante a leitura de «O Último Verão na Ria Formosa») decorre na época seguinte – se assim lhe poderemos chamar – à da primeira incursão do autor pela ficção. Já não é o Portugal do final do Estado Novo e dos anos imediatamente a seguir ao 25 de Abril que encontramos. É principalmente a década de 1990 (mas com vários recuos, nomeadamente para a de 1980), com o advento da televisão privada e com tantas outras coisas que foram colorindo o país. A história volta a exercer um enorme fascínio, e a escrita prende indiscutivelmente o leitor, uma escrita na qual se pode encontrar algum paralelismo com a da habitual crónica jornalística semanal sobre política que o autor assina no «Expresso – «Não há dúvida de que o ‘Expresso’ é um bom jornal», pensa uma personagem na página 189, e disso não há como discordar, mas adiante… As opções que Saraiva coloca na maneira de contar a história continuam a assentar numa enorme simplicidade, para não dizer frugalidade, mesmo que haja constantes mudanças de narrador, um jogo que o autor partilha com as personagens principais e no decorrer do qual não se sai nada mal, ao contrário do que por vezes acontece com gente mais conhecida da Academia Sueca. E depois, sobretudo, a análise psicológica, independentemente de quem apareça a fazê-la a cada página (autor, personagens), essa análise, surpreende por ser tremendamente simples; sempre a simplicidade, até o óbvio, mas o óbvio de que por vezes nos esquecemos, ou de que não nos apercebemos, como nas análises que Saraiva faz da fauna – e de alguma flora – que marca presença no lodaçal cada vez mais imundo da política portuguesa.
Filomena, Óscar e Aurélio são as três personagens centrais de «Jardim Colonial». Filomena é uma estrela de uma televisão privada (na qual se reconhece a SIC), com programa próprio. Casa com Aurélio, um homem bem mais velho do que ela, administrador da estação televisiva, saído de Angola na altura da descolonização, sem família – haveria de mandar chamar uma antiga empregada negra para lhe fazer a comida. Filomena deixa a televisão durante a gravidez do primeiro filho e passado algum tempo volta a trabalhar, então como administradora de uma gráfica comprada pelo marido. Aí, nessa gráfica, a mesma onde tinha trabalhado no final da adolescência, reencontra Óscar, o seu antigo chefe, o homem que a tinha feito deixar esse emprego (Filomena acabaria por passar directamente da secção de embalagem para assistente em programas da RTP). Filomena tinha-se sentido perseguida por Óscar, mais velho do que ela, solteiro, sem família, sempre a observá-la, completamente fascinado. «… o seu rosto é estreito, de pele branca, com uns olhos cinzentos que parecem não estar ali mas que ao mesmo tempo me desafiam, e uma boca grande, talvez demasiado grande. Eu imaginei-a tal como é antes de a conhecer!» (página 87).
O antigo chefe Óscar passa a braço direito da nova administradora Filomena. Mantém-se o fascínio por ela e isso irá alterar por completo as suas vidas, tal como a de Aurélio. Os destinos das três personagens – e assinale-se que Filomena e Óscar são personagens absolutamente fascinantes – acabam por decidir-se num encontro entre os dois homens, numa quinta da zona de Almeirim, três ou quatro páginas antes do final de «Jardim Colonial» (o romance vai buscar o título ao jardim da zona de Belém assim conhecido), e esse encontro deixa no leitor alguma sensação de artificialismo, o que é uma pena, num romance que até aí estava a correr às mil maravilhas.
Livro: «Jardim Colonial», de José António Saraiva (Publicações Dom Quixote, 342 pp.)
Com toda a simplicidade
Segundo romance de José António Saraiva, depois do notável «O Último Verão na Ria Formosa», publicado em 2001. O autor consegue com «Jardim Colonial» uma nova história fascinante, mantendo uma escrita muito simples, que prende o leitor. Poderia ter sido mais cuidadoso na maneira como resolveu tudo nas derradeiras páginas.
Há pouco mais de quatro anos, depois de uma primeira experiência na literatura de ficção, com «O Último Verão na Ria Formosa» – e uma experiência muito bem sucedida, assinale-se –, José António Saraiva disse numa entrevista, quando o questionaram sobre o seu futuro como escritor, que não contava meter-se a fazer outro romance. Acabou por fazer, e também numa entrevista, no caso à revista do jornal que dirige [Saraiva ainda estava no «Expresso» quando escrevi isto], falava inclusive de que um dia, quem sabe, talvez possa ganhar o Prémio Nobel; justificava-se com o facto de Saramago o ter ganho depois de uma carreira começada tardiamente (bem mais velho do que Saraiva era em 2001) e, principalmente, por achar que uma pessoa quando se mete a fazer uma coisa deve querer ser a melhor e lutar por isso. Claro que o Prémio Nobel da Literatura não significa que quem o recebe seja o melhor, por exemplo, do respectivo ano, ou da última década, ou mesmo do último século, mas isso já serão contas de outro rosário; independentemente do que depois se diga, quem fica com ele (e com o dinheiro, como em 1998 bem lembrou Saramago) tem razões de sobra para sentir que chegou a sua vez de ter a distinção mais importante.
«Jardim Colonial», o romance que José António Saraiva acabou por escrever depois do anúncio que fez na referida entrevista de 2001 (um anúncio que a mim, particularmente, me deixou com alguma pena, pois achei fascinante a leitura de «O Último Verão na Ria Formosa») decorre na época seguinte – se assim lhe poderemos chamar – à da primeira incursão do autor pela ficção. Já não é o Portugal do final do Estado Novo e dos anos imediatamente a seguir ao 25 de Abril que encontramos. É principalmente a década de 1990 (mas com vários recuos, nomeadamente para a de 1980), com o advento da televisão privada e com tantas outras coisas que foram colorindo o país. A história volta a exercer um enorme fascínio, e a escrita prende indiscutivelmente o leitor, uma escrita na qual se pode encontrar algum paralelismo com a da habitual crónica jornalística semanal sobre política que o autor assina no «Expresso – «Não há dúvida de que o ‘Expresso’ é um bom jornal», pensa uma personagem na página 189, e disso não há como discordar, mas adiante… As opções que Saraiva coloca na maneira de contar a história continuam a assentar numa enorme simplicidade, para não dizer frugalidade, mesmo que haja constantes mudanças de narrador, um jogo que o autor partilha com as personagens principais e no decorrer do qual não se sai nada mal, ao contrário do que por vezes acontece com gente mais conhecida da Academia Sueca. E depois, sobretudo, a análise psicológica, independentemente de quem apareça a fazê-la a cada página (autor, personagens), essa análise, surpreende por ser tremendamente simples; sempre a simplicidade, até o óbvio, mas o óbvio de que por vezes nos esquecemos, ou de que não nos apercebemos, como nas análises que Saraiva faz da fauna – e de alguma flora – que marca presença no lodaçal cada vez mais imundo da política portuguesa.
Filomena, Óscar e Aurélio são as três personagens centrais de «Jardim Colonial». Filomena é uma estrela de uma televisão privada (na qual se reconhece a SIC), com programa próprio. Casa com Aurélio, um homem bem mais velho do que ela, administrador da estação televisiva, saído de Angola na altura da descolonização, sem família – haveria de mandar chamar uma antiga empregada negra para lhe fazer a comida. Filomena deixa a televisão durante a gravidez do primeiro filho e passado algum tempo volta a trabalhar, então como administradora de uma gráfica comprada pelo marido. Aí, nessa gráfica, a mesma onde tinha trabalhado no final da adolescência, reencontra Óscar, o seu antigo chefe, o homem que a tinha feito deixar esse emprego (Filomena acabaria por passar directamente da secção de embalagem para assistente em programas da RTP). Filomena tinha-se sentido perseguida por Óscar, mais velho do que ela, solteiro, sem família, sempre a observá-la, completamente fascinado. «… o seu rosto é estreito, de pele branca, com uns olhos cinzentos que parecem não estar ali mas que ao mesmo tempo me desafiam, e uma boca grande, talvez demasiado grande. Eu imaginei-a tal como é antes de a conhecer!» (página 87).
O antigo chefe Óscar passa a braço direito da nova administradora Filomena. Mantém-se o fascínio por ela e isso irá alterar por completo as suas vidas, tal como a de Aurélio. Os destinos das três personagens – e assinale-se que Filomena e Óscar são personagens absolutamente fascinantes – acabam por decidir-se num encontro entre os dois homens, numa quinta da zona de Almeirim, três ou quatro páginas antes do final de «Jardim Colonial» (o romance vai buscar o título ao jardim da zona de Belém assim conhecido), e esse encontro deixa no leitor alguma sensação de artificialismo, o que é uma pena, num romance que até aí estava a correr às mil maravilhas.
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