quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Se eu fosse escravo…

Numa das primeiras edições de 2004 da revista que dirijo («Pessoal»), publiquei o texto que deixo a seguir (O título é o que está ali em cima, «Se eu fosse escravo…»); fala de uma estranha escravatura nova e foi escrito para uma das secções habituais da revista («RH Ontem» nessa altura, tendo depois mudado para «Pessoal Ontem», designação que ainda se mantém).
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[Entrada] Se eu fosse escravo, o que acontecia é que levantava-me às sete da manhã, tomava «um belo de um pequeno-almoço», isto para adequar a linguagem aos novos tempos, e depois lá ia para o trabalho, no banco de trás do carro, com os jornais da manhã, o portátil e dois ou três telemóveis a distâncias convenientes. As confusões do trânsito, enfim, o motorista que se preocupasse com isso.
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O problema é que não sou escravo, e quanto ao trânsito tenho de ser eu a preocupar-me. Fica assim o telemóvel (um apenas) em descanso, já para não falar dos jornais. Portátil, por enquanto, ainda não se arranjou nada. Mas se eu fosse escravo tudo seria diferente, pelo menos se fosse um «novo escravo», para utilizar a expressão que aparece numa edição da «Pessoal» de 1999. Pedro Martins, consultor, na altura a «percorrer solitariamente o planeta», sempre «com encontro marcado com o desempenho excepcional», não era bem o seu criador, da expressão, entenda-se, mas quase. A entrevistadora (Madalena Avillez) colocava-a no título, no plural, a partir da resposta de Pedro Martins a um comentário seu sobre «a marginalização impiedosa e passiva dos candidatos a emprego», que segundo Viviane Forrester, no livro «O Horror Económico», «o futuro ia trazer». Quase cinco anos depois, e sendo que isso já dá margem suficiente para se dizer que agora estamos mesmo no futuro daquele presente de 1999, o passado de agora, 2004, vejamos a resposta de Pedro Martins, no parágrafo seguinte…
«Hoje em dia falar da gestão das pessoas, de como elas são importantes e devem ser valorizadas, é um tema muito quente, mas que a mim me parece uma grande hipocrisia. Enquanto há uns anos atrás se falava nos processos e na organização do trabalho, e antes nas próprias máquinas, hoje falamos nas vantagens distintivas das pessoas. As pessoas passaram a ter uma importância muito grande, não porque são pessoas, mas porque o resultado das empresas depende mais delas do que da organização e dos instrumentos de trabalho. Nunca foram tão escravizadas como hoje. Dantes havia escravos e senhores. Agora todos são escravos. Ninguém é mais escravo que o presidente de uma grande empresa. Aquela oligarquia antiga em que ele ficava um pouco acima da absorção pelo trabalho, já não existe. Um presidente de uma empresa de elevado desempenho dorme muito pouco e está sempre a trabalhar. Este é o reverso da medalha da valorização das pessoas. Passei os últimos anos a partilhar o meu tempo com essas pessoas. Acho que elas são felizes. Provavelmente não fazem é ninguém feliz ao lado delas.»
Enfim, talvez me tenha precipitado em dizer que o problema é não ser escravo; talvez até já o seja e não tenha nunca dado por isso. Há os escravos mesmos escravos, os de sempre, a que poderemos chamar velhos, e depois os «novos», os presidentes das «grandes empresas», os que antes estavam «um pouco acima da absorção pelo trabalho», e um pouco acima de outras chatices capazes de estragarem por completo a vida de um presidente à boa maneira… Ia escrever portuguesa, mas não vamos a tanto, à boa maneira antiga, sim, talvez seja melhor. Devia ter cuidado com estas opções e assegurar-me do tipo de escravatura que me esperava, ver se incluía motorista (que trás sempre carro incluído), secretária, telemóvel, assessores (e assistentes), cartão de crédito, viagens, package salarial de acordo com isto e mais isto e mais uma data de coisas com a ressalva de não descer do nível tal tal tal… E por aí adiante. Devia assegurar-me se à espreita está a «nova» escravatura ou se, bem pelo contrário, está a do costume, aquele que é pensada e bem repensada nos altos domínios das «oligarquias» do tal nível «um pouco acima da absorção pelo trabalho».
«Grandes empresas» e «novos escravos» fazem-me lembrar de um senhor que era ministro e que depois foi para escravo, dos «novos», já se vê, exactamente na mesma altura em que comprei uma casa e tive de pagar de sisa quase dois mil contos (na altura ainda usávamos contos, escudos e outras coisas daquele presente em que se perspectivava como futuro este presente de agora). O senhor comprou uma casa e achou que não devia pagar a tal sisa, que o seu chefe primeiro-ministro ainda por cima considerava «o imposto mais estúpido do mundo». Talvez só mesmo quem negociou com uma empresa a sério, com as contas bem certas, é que devesse pagar tudo normalmente, como eu. Nunca o senhor ministro. Claro que depois foi apanhado e teve de pagar o imposto, mas se não tivesse sido lá tinha continuado ministro por mais uns anitos, provavelmente até ao dia em que o chefe se demitiu. Enfim, foi para escravo, para a presidência de uma «grande empresa». E a ganhar não sei quantas vezes mais é bem provável que tenha sido feliz. E se calhar até fez muita gente feliz ao seu lado.

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