terça-feira, 15 de agosto de 2006

As aberturas

Um blog chamado «Porque», de André Moura e Cunha. Livros, sobretudo livros, e muitas aberturas de romances, convidando à descoberta (ou redescoberta) de vários autores, mais e menos conhecidos (sobretudo mais). Encontrei lá algumas aberturas de livros que em diversas alturas da minha vida me fascinaram, e «dei por falta» de outras que talvez acabe por ir colocando aqui. Para já, fico-me por alguns inícios muito pessoais, copiados dos meus livros (e que o mais certo é aspirarem apenas a estar por aqui no «Floresta do Sul»).
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(início do primeiro conto de «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade», 1996)
O século ainda ia novo mas a vida, que às idades não parecia ligar muito, já andava outra vez agitada por Lisboa. Ele era milagres de Santo António dia sim dia não, ele era as pessoas a falarem do anjo que alguém tinha avistado no alto da torre da igreja de Nossa Senhora da Graça, ele era ainda outras criaturas, talvez mandadas por Deus e observadas por quem jurava a pés juntos que não eram foliões mascarados. E o bispo inquisidor, enquanto tão grandes maravilhas eram relatadas, lá se ia entretendo a mandar queimar hereges e judeus, uns por coisas vistas, outros porque, bem vistas as coisas, não haveria no reino deles necessidade.
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(início da novela «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão», 1997)
Severino Castanho, quase todos os dias, vai visitar Catarina. Mas pára antes de lhe tocar e fica a olhá-la demoradamente, como ela também olha para ele. Os dois sem se mexerem. É um amor à distância possível, porque as velhas mais não permitem. As velhas, aquelas velhas que vestem um negro por destoar, como quem rouba penas aos melros, acentuam assim o luto. Há muito que se foram os homens da casa, ou porque Deus os chamou, ou então porque a bruxa da Corte da Pomba lhes traçou os destinos. Neste ponto divergem as opiniões, pois o caso ficou por explicar. E isso porque nunca ninguém percebeu como é que o pai e o irmão de Catarina, que sempre tiveram fama de bons caçadores, foram logo acertar na cabeça um do outro. Não faltou por aí quem dissesse que Deus quis defender os animais e guiou os tiros para tão trágicos destinos. Mas também houve opiniões de que quem se assanhou foi a bruxa da Corte da Pomba. Com uns caçadores de disparar tão barulhento, ela ter-se-á logo lembrado de fazer o que os outros disseram que foi Deus que fez, e dessa maneira descansou a tropa que tem ao serviço. A tropa de morcegos que de dia precisa de dormir para recuperar das canseiras nocturnas que apanha a trabalhar para a patroa.
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(início do romance «Até Acabar com o Diabo», 1998)
Dizem que há pessoas que não fazem falta nenhuma ao mundo, que costuma haver pelo menos uma pessoa dessas em cada terra. E quando não há, dizem também, logo o destino se encarrega de a fazer chegar, por uma razão qualquer, ou até sem razão nenhuma. O Diabo era uma dessas pessoas, é o que quase toda a gente pensa, e se não fosse o mau-cheiro que lhe começou a sair da boca algumas horas depois de o burro ter entrado no café do Compadre Sabiniano, se não fosse por isso, nem teria valido a pena perderem tempo a enterrá-lo.
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(início do conto que dá o título ao livro «O Velho que Esperava por D. Sebastião», 1999)
Um velho que contava histórias de encantamentos e avisava as pessoas do regresso de D. Sebastião numa manhã de nevoeiro tinha-me ensinado a fórmula para sonhar com a mulher que haveria de casar comigo. Dois ou três anos antes. Bastava contar nove estrelas durante nove noites seguidas e dormir, à espera do primeiro sonho. O velho, sempre que o tempo estava de feição, ia logo bem cedo para um miradouro de onde se conseguia avistar o mar nos dias de Sol, lá longe, a mais de vinte quilómetros. D. Sebastião haveria de surgir de repente do manto cinzento de nevoeiro, talvez montado num cavalo, ou numa serpente gigante, ou então numa máquina desconhecida. E eu ia muitas vezes junto, não tanto para ver se assistia à chegada do rei, que para mim tinha sido um sujeito um bocado para o parvo, mas na ânsia de ouvir as coisas dos encantamentos. Foi numa dessas esperas de loucura que o velho me contou acerca do poder das estrelas.
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(início do romance «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações», 2000)
Às vezes, carinho, consigo ver-te no mar. As ondas costumam ser pequeninas, quase imperceptíveis, e por isso só te mexes quando os barcos se aproximam. Alguns, de certeza, são apenas a minha imaginação a fazer ondular o teu cabelo caído pelo rosto, mas há muitos que passam por ti como se nem sequer existisses. Esses são bem reais e a velha Luzia dos Engreneiros, do alto da rocha onde pesca ao fim da tarde, não se cansa de os amaldiçoar.
- Deve ser porque lhe espantam os peixes.
- Ou então, amigo, é mesmo por ruindade.
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(início do romance «O Medo Longe de Ti», 2003)
Há dezoito anos, talvez dezanove, fugi. Quase sem dar por isso, dia após dia, fui-me habituando a ter-te apenas na imaginação, às vezes até a ser capaz de sentir o cheiro a flores silvestres da tua presença ou de responder ao teu sorriso dos pequenos traços no rosto. Depois de abandonar a Universität, acabei por me ver de novo envolvido nas minhas histórias, sempre com bruxas em redor, com gnomos, com pistoleiros, com mágicos, até com animais que falavam. E nem todos apareceram como meus amigos. Nunca escrevi sobre ti, por mais forte que fosse a sensação de que estavas perto, mesmo que apenas num lugar da minha imaginação. E se agora o faço, passados todos estes anos, não é porque tenha vencido uma barreira imensa, é pela revelação que acabo de ter. Quero que saibas que nem por um dia esqueci o tempo que passámos juntos, que nem por um dia deixei de arrepender-me de não ter lutado para que esse tempo continuasse, e que nunca hei-de perdoar-me por não ter esperado até que descesse o último passageiro do comboio-ladrão. Naquela manhã, há dezoito ou dezanove anos...
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(início de um dos contos do livro «O Amor por entre os Dedos», 2006)
A Lua estava cheia, tão grande e tão brilhante que iluminava a multidão que enchia a praça central de Cerzedos. Pelo menos era isso que Kate jurava a pés juntos, ao telemóvel para Lisboa. Sentia-se nervosa, não porque do outro lado estivesse um ministro - e estava -, mas porque não conseguia deixar de pensar no que poderia acontecer se o macaco se perdesse pelo caminho. O cão tinha-a acordado de manhã, cedo, muito cedo. Tinha surgido de repente, depois de um encontrão com a cabeça na porta do quarto. O jovem escritor de Santo Estêvão achava-lhe graça, gostava dele, ria de cada diabrura que o via fazer. Naquele momento, no exacto momento em que o cão saltou para a cama, Kate julgou ouvir o jovem escritor, o som de um sorriso, apenas isso, mas foi algo que logo se desvaneceu.
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Os primeiros quatro livros foram editados pela Pergaminho, os dois seguintes pela Temas e Debates e este último («O Amor por entre os Dedos») pela Ambar, a minha editora actual.

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