domingo, 28 de maio de 2006

A auto-estrada e as serras

Chegou o calor. Ainda em Maio. E este calor, que ao chegar me transmite sempre uma sensação de novidade, como se eu nunca o tivesse sentido, este calor dos últimos dias fez-me pensar no que será o próximo Verão, ou melhor, no que poderá ser o próximo Verão dos incêndios. Há meses que não se fala do problema. Choveu e outro problema, o da seca, parece relativamente controlado; mas com a chuva cresceu a pequena vegetação, o pasto, os matos, e agora começa a ficar tudo seco. O fogo está de novo convidado, mas não se ouve falar desse convite.
Há quase um ano, com boa parte do país rural a arder, Pacheco Pereira escrevia no seu blog «Abrupto» o seguinte (quatro de Agosto):
«Mais cedo do que esperava pude ver a gravidade da situação dos fogos. Hoje, directamente. Tentei chegar ao Porto e não consegui. Entre Santarém e Pombal, zona em que a A1 foi interrompida, observei dezenas de incêndios, alguns muito grandes. Sempre que chegava a um plataforma elevada, como quando se entra na Serra dos Candeeiros, a toda a volta levantavam-se colunas de incêndios, na direcção de Santarém, de Leiria. A uma dada altura na A1 havia chamas vivas de um lado e de outro da estrada, ao lado da estrada. Não eram muito altas, mas atrás havia grossas colunas de fumo. Bastava uma paragem, e houve várias, para se observar um novo incêndio, que rapidamente progredia. Nem sempre era mato ou árvores, o fumo muito negro mostrava que havia outras coisas a arder./ Na estrada, o ambiente era caótico, com filas formando-se rapidamente em vários quilómetros, e com autotanques com gasolina nas filas. Carros da polícia passavam sem se perceber para quê. Quando a A1 foi finalmente interrompida e a coluna de veículos desviada para a estrada Figueira da Foz – Pombal ninguém sabia dizer nada sobre as alternativas. A Brisa continuava a receber portagens criando um congestionamento perigoso. Quando se chegava à outra estrada percebia-se logo que o mar de chamas e fumo para Norte impedia qualquer passagem, e, se dúvidas havia de que alguma coisa de muito grave se passava, era ver chegar os carros com mulheres e crianças evacuados das aldeias, desesperadas e em pânico. Uma rapariga procurava o pai, uma mulher com um bebé ao colo chorava convulsivamente porque a sua casa e a ‘aldeia’ (não sei se é verdade, mas era o que dizia) tinham ardido./ Não havia ninguém nos acessos da entrada da A1 – a polícia sem se saber por quê em vez de estar à entrada dos acessos para impedir o bloqueamento, estava depois das portagens, onde os camiões que pretendiam entrar já não podiam dar a volta. Percebia-se que os agentes estavam preocupados com as suas terras, as suas famílias, a julgar pelas conversas ao telemóvel. Compreende-se, mas havia um ar de caos em tudo./ É preciso acrescentar que esta portagem está ela própria numa área de floresta e o incêndio estava demasiado perto. Os sistemas que deviam ajudar a informar os automobilistas não serviam para nada. O número da Brisa dava informações erradas: os camionistas tinham entrado no acesso à portagem convictos de que se podia seguir para o Norte. Errado. A Antena1, a rádio cuja sintonia era recomendada em cartazes na A1, pelo menos em dois noticiários nada dizia de útil e não interrompia os seus programas para dar informações de trânsito. Era surrealista ver o que se estava a passar e o clima de relativa normalidade nos noticiários, com as notícias dos incêndios cada vez mais estereotipadas e trivializadas./ Fiquei ainda mais convicto de que, pelos órgãos de informação, os portugueses não têm tido a ideia da gravidade dos incêndios este ano. E hoje tenho a certeza de que, pelo menos ali, coisas graves se estavam a passar. Espero que não. Espero que tenha sido apenas impressão minha.»
Esta descrição de Pacheco Pereira traz-me à memória os incêndios que nos dois anos anteriores (2003 e 2004) devastaram as serras da zona de Monchique, no Algarve, assim como outras zonas próximas. Lembro-me de uma noite de 2004, aquela em que deflagrou o segundo grande incêndio desse ano, depois de cerca de metade da zona ter sido reduzida a cinzas pelo primeiro. Atravessei boa parte do Alentejo pela auto-estrada, sem encontrar muito trânsito. Era já bem de noite e a partir de certa altura (ao aproximar-me de Ourique) distingui um clarão vermelho ao longe, em frente. Era o fogo, a mais de cinquenta quilómetros de distância. Saí da auto-estrada em Ourique e meti-me pela estrada nacional, até desviar em São Marcos para a nova estrada que corta os primeiros montes até ao Alferce, uma das três freguesias do concelho de Monchique.
A partir de metade do percurso por essa nova estrada (que no total tem cerca de quinze quilómetros), comecei a ver uma linha contínua de fogo. Ia progredindo lentamente, com cerca de meio metro de altura. Se saísse do carro e começasse a apagá-la com ramos de eucalipto, em meia-hora talvez conseguisse limpar cerca de cem metros, mas a linha de fogo tinha alguns quilómetros. E eu não via ninguém por ali. O silêncio que conheço das noites naquela zona era então quebrado apenas pelos sons do mato a arder, que aumentavam de cada vez que as chamas trepavam a uma das árvores. Decidi que não podia parar, que tinha de chegar mais adiante, à antiga casa da minha avó, numa aldeia agora desabitada. Era aí que eu passava a temporada das férias grandes, em criança. O mundo tão grande desses tempos parecia-me agora bem mais pequeno. Não se via nas redondezas nenhuma luz artificial, nem ao longo da estrada, que apesar de ser toda moderna não tem postes de iluminação. Luz, apenas a da linha de fogo. Distingui a aldeia no fundo do vale, junto a um ribeiro, iluminada pelo clarão.
Parei o carro perto da saída para a estrada de terra que dá acesso ao vale, tentando que não ficasse em cima dos matos. Desci pela estrada de terra, sempre com o mesmo silêncio interrompido apenas pelos estalidos que saíam da linha de fogo. Andei cerca de um quilómetro, atravessei a ponte sobre o ribeiro e entrei na aldeia. Pouco passava da uma da manhã. A linha de fogo estava cinquenta metros acima e podia entrar na aldeia, embora esta estivesse limpa de mato. Ali, junto com a antiga casa da minha avó, a minha família possui mais algumas casas menores, uma azenha e um terreno. Eu sabia que o meu irmão estava por perto, mais adiante, por isso continuei.
Cerca de um quilómetro depois, cheguei a uma zona de montado da minha família. Sempre com a linha de fogo a acompanhar-me. Foi então que me deparei com uma espécie de monstro a encandear-me, um monstro com os máximos ligados a ocupar toda a largura da estrada de terra. Tinha um carro de bombeiros na frente, com dois ou três bombeiros inquietos por estarem com uma viatura naquela estrada estreita, rodeada de árvores e com o fogo numa linha contínua, paralela à estrada, embora do outro lado do ribeiro. O meu irmão desceu da parte de trás do camião e despediu-se. Os bombeiros foram-se embora, parecendo aliviados.
Disse-me depois o meu irmão que na vila tinha conseguido convencê-los a acompanharem-no até ali, com o argumento de que mais adiante o fogo não se limitava àquela linha contínua de meio metro de altura, estava bem maior, e com um carro de bombeiros seria possível contê-lo. Mas eles foram sempre insistindo que não podiam fazer nada, e acabaram por ir-se embora depois de eu chegar.
Ficámos os dois, eu e o meu irmão, com uma carrinha, dois machados, dois baldes e duas enxadas. As enxadas para atirar terra para as chamas, os machados para cortar ramos com os quais poderíamos bater nas chamas, os baldes porque tínhamos o ribeiro de onde tirar água. Ficámos toda a noite naquilo, como muitos populares noutras zonas da serra. Não havia nada parecido com o que viu Pacheco Pereira na auto-estrada para o Norte, mas de manhã, quando fomos para casa, deparámos nas estradas de alcatrão à volta da vila de Monchique com um movimento intenso, e pela vila a coisa ainda era pior. Carros, camiões, carrinhas de último modelo da direcção-regional já nem me lembro de quê... Bombeiros, polícia, GNR, tropa e, sobretudo, uma categoria um pouco difícil de caracterizar, os chamados responsáveis (dos quais se destacava um, por de vez em quando ter um copo de whisky na mão). Todos num corrupio. E as chamas também num corrupio. Como que por ironia do destino, o fogo foi dado como extinto ao fim de alguns dias, exactamente no mesmo local onde tinha começado. Deu voltas e mais voltas e regressou às origens, talvez por não ter mais nada para queimar.

2 comentários:

Anónimo disse...

O fogo! Parece que hoje já houve fogos.
Vivi-os mais intensamente na Venda do Pinheiro. Sem nunca ter corrido grande perigo. Mas a arrombar portas durante a noite, para libertar vacas. E ver uma mulher a sair de casa de roupão e com faúlhas nos cabelos. E um cão que não deixava ninguém aproximar-se a lamber-nos as mãos depois de lhe termos tirado a trela.
E a impotência dos bombeiros. Por falta de meios, de mobilidade, por causa dos fogos postos.
E aquela aterradora beleza, como se Deus fosse um pintor naturalista de veia sádica.
Nesses anos, ainda não havia circo mediático.
Nem responsáveis de copo de uísque na mão. Julgo saber (olha não!) a quem te referes.

Anónimo disse...

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