Uma conferência em Lisboa. Eu tinha de falar logo a seguir à abertura, tanto que saí de casa bem cedo, para não me atrasar no trânsito num dos acessos à cidade. Passava pouco das seis e meia da manhã, mas com a mudança de hora já havia alguma luz no montado. Talvez por isso, ao sair de casa, os cães e os gatos tenham percebido que a minha roupa – um fato escuro, uma camisa branca e uma gravata azul – era diferente da habitual. Ficaram a uma certa distância, indecisos, sem saberem se brindar-me com as brincadeiras do costume ou se com um ataque rápido em que eu não tivesse outra hipótese a não ser fugir o mais depressa que conseguisse. Decididamente, não tinham a certeza de quem eu era, vestido daquela forma.
Olhei para o relógio e senti a pressão do tempo. Por isso fiz um gesto de despedida, sem dizer nada, não fosse a minha voz ser capaz de entrar em casa e acordar os miúdos. Fui até ao portão, saí com cuidado para que não batesse e meti-me no carro. Depois da estrada de terra, que me demorou uns dez minutos a percorrer, conduzi depressa até Lisboa, e a verdade é que não me atrasei. Só que cheguei à conferência numa pilha de nervos. Tive até de parar um pouco na entrada do edifício onde ia decorrer – respirei fundo, durante dois ou três segundos, e só depois é que subi a escadaria que levava ao auditório. Havia uma pessoa a indicar o caminho, e até me perguntou se eu me sentia bem. Disse-lhe que sim, agradeci o cuidado e continuei.
Tinham-me avisado de que o auditório estaria cheio, e além disso eu sabia da presença dos presidentes das associações nacionais que integravam a confederação que promovia a conferência. Estavam representados seis países, todos de língua portuguesa. Vi logo as bandeiras mal entrei no auditório, ainda vazio. Faltava uns quinze minutos para começar o registo de participantes e por isso o movimento era pouco. Dava para preparar as minhas coisas à vontade. Ou seja, tinha valido a pena o esforço de sair de casa bem cedo. À noite – pensei –, ia voltar sem gravata e com o casaco debaixo do braço; de certeza que assim não haveria problema com os cães e os gatos. Por agora, o importante era afastar o nervosismo que ainda subsistia.
Admito que se pense que eu estava naquele estado por causa de ir falar na conferência. Mas não, não era nada disso. Eu estava assim por causa do sítio, que ficava pertíssimo da sede de um dos partidos da coligação que apoia o governo. Lembro-me de que só ao estacionar o carro reparei na sede, mesmo à minha frente. Só aí é que comecei a pensar na roupa que levava. Assim vestido, receei, havia o risco de ao sair do carro despertar a atenção de alguma das pessoas que passavam, ou de alguém que aparecesse à janela. Podiam confundir-me com um político da coligação, na volta até com algum secretário de Estado metido no governo pelo partido que ali tinha a sede.
Saí do carro com muito cuidado, a olhar para um lado e para outro. Podia ser atingido por alguma pedra, ou pior, por um ovo podre ou por um tomate bem maduro. Uma pedra, se conseguisse evitar que me acertasse na cabeça, era o menos, pois numa perna ou num braço poderia fazer no máximo uma nódoa negra. Mas o ovo ou o tomate haveriam de levar-me a desistir de aparecer na conferência. Ia dizer o quê? Peço desculpa, atiraram-me um ovo (ou um tomate, conforme o caso) depois de me terem confundido com um secretário de Estado, e pronto, deu nisto...
Fiz o caminho entre a zona da sede do partido e a entrada do edifício da conferência sem saber bem onde me enfiar. Não era a minha cara... Isso podia eu esconder olhando para baixo ou passando uma mão pelos olhos a fingir que tentava afastar o sono. Era a roupa. Eu só pensava na roupa. E daí os nervos. Cada metro até chegar ao edifício pareceu um quilómetro. Mas finalmente cheguei, e sem ser atingido. Na volta, algum milagre…