quarta-feira, 28 de março de 2012

Uma apresentação


Texto de suporte à apresentação de «O Livro da Selva Empresarial», de Liliana Silva Cerqueira (ed. Gestão Plus) – Lisboa, 22.03.12 (Bertrand Chiado)

Em primeiro lugar, devo dizer que tenho muito gosto em apresentar «O Livro da Selva Empresarial». E devo também dizer que o livro me cativou logo à partida, inclusive pelo título. Quando era criança nunca li «O Livro da Selva», embora numa das colecções de cromos que fazia por esses tempos aparecessem o Mogli, o Rei Lu, a pantera Baguera ou o urso Balu, por exemplo. Só que nunca li o livro. Acontece que tenho filhos ainda pequeninos, três filhos, e por isso nos últimos anos acompanhei vezes sem conta as aventuras do Mogli, dos seus amigos e até, digamos assim, e com aspas, dos seus «inimigos». Vi os desenhos animados do «Livro da Selva», uma vez, e outra, e outra. Assim como vi os do Faísca Mcqueen, os do Nodi, os do Yakari, os do Bob o Construtor, os dos Gormiti, os do Rei dos Dinossauros e até, entre tantos outros, uns mais esquisitos de uma coisa que agora parece estar na berra chamada «Code Lyoko». Daí o título me ter cativado logo à partida.
Depois comecei a ler o livro e rapidamente me apercebi de que a selva de que fala, tão diferente da do Mogli mas por vezes tão parecida, é realmente a selva que fui conhecendo nas últimas duas décadas, uma selva que no final dos anos oitenta do século passado, e depois já no princípio dos anos noventa, quando eu andava a estudar Gestão de Empresas no ISCTE, os professores nunca falavam. Prometiam-me, a mim e a tantos outros jovens que por lá andavam, já não digo o paraíso, mas pelo menos algo que poderia sem grandes problemas servir de imitação.
De forma que quando comecei a trabalhar tinha mais a ideia da imitação do paraíso do que a da selva. E um dia, na serra do Algarve, quase na fronteira imaginária que por lá existe com o Alentejo, na casa de uma mulher simples mas certamente avisada de que os paraísos não surgem assim ao dobrar da esquina, nessa casa tocou o telefone. Era de um banco em Lisboa. A mulher estranhou, e inquietou-se. Por uma série de razões. Era o banco onde o filho tinha entrado como estagiário, e o filho nunca lhe ligava de lá, ligava-lhe era de casa, à noite, quando chegava do banco, porque ainda não tinha a invenção de que a mulher começava a ouvir falar: o telemóvel. Outra razão para estranhar e para se inquietar é que estavam a ligar de um departamento que diziam ser de recursos humanos, e estava lá um polícia. Terceira razão, a senhora do departamento de recursos humanos dizia para ela não se preocupar porque o filho estava bem.
A mulher era a minha mãe. Nunca me disse se chorou, mas eu acabei por saber que chorou. Só que foi apenas um instante. Pensou no que haveria de fazer para me ajudar e logo se lembrou de que no Hospital de São José, em Lisboa, trabalhava uma enfermeira da nossa terra. Em poucos minutos entrou em contacto com familiares dessa enfermeira e conseguiu que estes falassem para ela, para o hospital. Mais uns minutos e a enfermeira estava junto de mim a saber o meu estado. Depois o meu pai arrancou para Lisboa mais o meu irmão.
Conto o que aconteceu. Eu levava dois ou três meses do meu primeiro, digamos assim, emprego. Ainda eram tempos fáceis e tinha conseguido entrar como estagiário num banco, com um ordenado que era uma pequena bolsa da Europa, ou antes, de Bruxelas. Não custava nada ao banco, e a mim ajudava nas despesas. A promessa inicial era de que eu haveria de circular por várias áreas, mas rapidamente percebi que iria ficar no back-office de uma coisa a que chamavam Off-Shore. Passei a trabalhar lá, a fazer o que era preciso e a aprender por mim próprio. Ao fim de um mês já me desenrascava e então ia fazendo o trabalho. Mais um mês, e mais outro, e eu fazia o meu trabalho. E às vezes pensava no futuro. Na evolução que poderia ter naquele banco onde um homem quase com idade para ser meu pai, que trabalhava numa secretária próxima, costumava dizer de vez em quando para si próprio: «Isto é o que dá haver gente que gosta de brincar aos bancos!»
Um dia fui atropelado quando ia a entrar no trabalho, de manhã. Foi um autocarro da Carris, que imagino me bateu com algum cuidado, pois de contrário eu não estaria aqui hoje a apresentar «O Livro da Selva Empresarial». Segui a dormir para o Hospital de São José, numa ambulância, mas acordei antes de lá chegar. Devo ter entrado no hospital antes das dez da manhã, e ao princípio da tarde, com o meu pai e o meu irmão a caminho de Lisboa, tive a primeira visita. Um polícia. Ele é que tinha tomado conta do meu atropelamento pelo autocarro, ou antes, como se costuma dizer, da ocorrência. Precisava de ouvir o meu depoimento, mas eu não me lembrava de nada. Talvez por isso, por eu não ter nada para lhe dizer, ele é que falou, contando-me a partir dos relatos de testemunhas o que tinha acontecido. E depois disse-me que já tinha sido feito um contacto para a casa dos meus pais, acrescentando a seguir que tinha demorado algum tempo porque da esquadra não podia fazer chamadas interurbanas. Ainda não estávamos em crise, mas pelos vistos já havia contenção.
Mas o polícia tinha jeito de ser desenrascado. Assim como na minha carteira tinha encontrado o contacto dos meus pais, que viviam a duzentos e cinquenta quilómetros de distância, também tinha descoberto onde eu trabalhava. E então lá foi ao banco, a uns metros da zona do atropelamento. Era a sede do banco, que no rés-do-chão tinha uma agência. Ao entrar, o polícia ouviu um dos empregados a dizer ao balcão que parecia que um rapaz do banco tinha sido atropelado lá fora. Foi ter com ele e disse que estava ali por causa do atropelamento. O empregado aconselhou-o a ir ao Departamento de Recursos Humanos. E o polícia assim fez, e ao fim de alguma insistência conseguiu que fosse feita a chamada interurbana para avisar os meus pais de eu tinha sido atropelado quando ia entrar no banco.
Estive quatro dias no hospital. Ao fim de dois dias deram-me alta, mas quando ia a sair com o meu pai e o meu irmão senti-me mal e voltei a ser internado. À segunda tentativa, passados mais dois dias, saí. E no dia seguinte telefonei para o Departamento de Recursos Humanos. Disse que estava em casa e que tinha indicações médicas para ficar em repouso durante cerca de uma semana. Lembro-me de ter ouvido a pergunta: «Mas está bem, não está?» Disse que sim. Alguns dias depois regressei ao banco, não para trabalhar mas para dizer que não queria continuar lá. O diretor do departamento a que eu pertencia ficou espantado com a minha decisão. Tinha sido apanhado, na expressão dele, «desprevenido». Mais ou menos, imagino agora, como eu tinha sido apanhado uns dias antes pelo autocarro. No Departamento de Recursos Humanos a mesma coisa, também acabaram por ser apanhados desprevenidos. Mas não me fizeram grandes ofertas, nem grandes promessas para, como agora se diz, me reterem. Eu não era, pelos vistos, um quadro estratégico ou, se preferirem, um talento.
A mim, com vinte e poucos anos e o curso de Gestão de Empresas ainda fresco, foi preciso um autocarro me dar um abanão para eu perceber que o mundo empresarial poderia ser uma selva. Teria evitado esse abanão se nessa altura tivesse tido a possibilidade de ler um livro como este que agora a Liliana publica. Com os seus conselhos. Mas naquele tempo o mundo da edição, como tantos outros mundos, era muito diferente daquilo que é agora. Na universidade mandavam-nos comprar o que havia por cá, normalmente livros da McGraw-Hill, edições brasileiras onde me lembro de termos como «usuário» (utilizador), «demanda» (procura) ou até «varejo» (retalho) – edições que se calhar não eram mais do que uma preparação disfarçada para o acordo ortográfico.
Na minha ideia, os jovens que terminam agora os seus estudos estão muito mais avisados do que eu estava naqueles tempos da entrada no banco. Mas apesar disso receio que estejam a cair no mesmo erro em que eu caí ao aceitar um trabalho naquele banco. Ao aceitarem inclusive trabalhar em empresas que nada lhes pagam, quando eu ao menos ainda tinha a pequena bolsa de Bruxelas. Sei que na esmagadora maioria dos casos o fazem porque têm a esperança de se tratar apenas do começo de uma carreira. E sei também que há casos em que acaba por ser de facto o começo de uma carreira. Infelizmente, não é a maioria dos casos.
Este livro está organizado de uma forma curiosa: apresenta dez mandamentos a que a Liliana chama «de sobrevivência». Aos jovens de que falo faria bem, de certeza, lerem esses mandamentos – por exemplo, o segundo, «tempo é dinheiro, não trabalharás à borla para uma empresa com fins lucrativos»; ou o oitavo, «não te deixarás contaminar pelo vírus da anti-maternidade» (e este toca-me particularmente, porque a minha mulher foi em tempos despedida pelo facto de ter ficado grávida). Mais do que os mandamentos, mais do que isso: os argumentos que lhe estão associados, e as histórias que os ilustram. Esses jovens (e não só) poderão ter aqui, como se diz no sub-título, uma ajuda para a sua sobrevivência na selva das empresas. Eu sei que agora há muitos títulos de gestão onde se fala de sucesso. Óptimo. Devemos ser positivos. Mas falar de sobrevivência pode ser também uma enorme ajuda. E pode ser um passo para o sucesso. Este livro tem um enorme mérito. Faz-nos pensar. E se para mim já vem demasiado tarde, pela história que contei do começo da minha – passe o exagero – carreira, para outros poderá ser o ponto de partida para eles próprios construírem o seu futuro. E por isso a Liliana está de parabéns.
Apesar de esta apresentação já ir longa, permitam-me ainda deixar duas notas.
Primeira, uma nota de esperança. Vivemos num tempo em que no mundo do trabalho a exploração das pessoas é uma triste e vergonhosa realidade em tantos e tantos casos. Fala-se de estarmos a regredir, e quem poderá dizer que isso não é verdade? O caminho que a legislação tende a fazer é precisamente esse. Mas ao mesmo tempo existem empresas que valorizam as pessoas. Empresas que têm nas suas lideranças gente decente. Os vários estudos sobre ambientes de trabalho que vão sendo feitos anualmente no nosso país mostram precisamente alguns desses exemplos. Nem todas as empresas que por lá aparecem constituirão verdadeiros exemplos, é claro, mas de certeza que muitas delas são genuinamente exemplares na valorização das pessoas que fazem com que dia após dia prossigam a sua actividade.
Segunda nota… Já falei no gosto que tenho em apresentar este livro. Mas há mais uma coisa. Tenho também muito gosto em apresentar o livro por ser da editora que é, a Gestão Plus. Há alguns anos foi decidido numa editora onde eu publicava os meus livros de ficção lançar uma colecção da área de gestão. O editor um dia falou-me desse projecto e propôs-me, pela minha formação e pela ligação aos livros, ser eu o director editorial. Eu disse-lhe que poderia aceitar, mas que o melhor, para o sucesso da colecção, seria ele arranjar uma pessoa com prestígio no meio empresarial. Inclusive, acabei por ser eu a apresentar-lhe essa pessoa. E a colecção fez o seu caminho, primeiro com a ajuda dessa pessoa e depois apenas com o editor. A colecção tinha um nome que logo me pareceu muito bom: Gestão Plus. Tão bom que viria a dar origem à marca de uma editora. Também por isso a Liliana está de parabéns, porque tem o seu livro numa excelente casa.
Creio que falei mais tempo do que deveria. Peço desculpa por isso.

1 comentário:

António Souto disse...

Uma apresentação que é muito mais do que uma apresentação. Uma texto bonito, assim como quem não quer a coisa, que é muito mais do que um texto bonito. Uma história com uma dimensão literária que a faz muito mais do que uma história. Um conto! Parabéns!