A minha passagem de ano costuma ser por aqui, com as luzes da rua acesas a fazerem com que se calhar o monte, visto de cima, dos aviões que passam bem distantes, pareça uma aldeia perdida no meio do montado Desta vez não, nada de luzes acesas. A gripe chegou aqui ao monte e a passagem da meia-noite foi logo bem cedo deixada para segundo plano; ou terceiro, ou quarto, ou quinquagésimo sétimo, nem sei. Talvez para ajudar à festa, a operadora de telemóveis desligou (não sei se é o verbo correcto para a situação) a rede. A barrinha que aparecia sempre num espaço de cerca de dez centímetros de um determinado móvel de uma determinada divisão de uma das casas, essa nem vê-la. Como já tinha mandado as mensagens do novo ano não me preocupei, e além disso tinha o telefone fixo para alguma eventualidade. Mas pouco antes da meia-noite lembrei-me de mais duas ou três mensagens que ainda devia enviar. Como não ia haver passagem, com a família a tentar dormir, ou mesmo a dormir, meti-me no carro e lá fui pelo montado, atento ao caminho, às vacas e aos bezerros recém-nascidos e também ao telemóvel. Ao fim de mais de um quilómetro, uma barrinha de rede, uma indiscutivelmente capaz de se intrometer pelos ramos dos sobreiros e das azinheiras. Eu ia para travar para ficar com ela, mas no último segundo lembrei-me de que com a chuva e o caminho enlameado o carro haveria de fugir-me contra uma árvore. Então fui abrandando e ao fim de uns dez metros adeus barrinha. Não desesperei – pior era a gripe –, fiz marcha atrás e em menos de nada a barrinha reapareceu. Pus-me a escrever as mensagens, com pressa de enviá-las antes que a ramagem acabasse com a barrinha de rede. Mas acabei por não escrever depressa. Uns vinte metros à frente, talvez nem isso, pareceu-me avistar uma lebre, com os olhos a brilharem e as orelhas espetadas. Era onde chegavam as luzes do carro (máximos e faróis de nevoeiro, para iluminar as bermas, por causa dos animais). Eu olhava para a lebre e pelo meio para o telemóvel, para escrever («2010», «tudo de bom», «que se realizem» e por aí adiante), até que percebi que não era uma lebre, porque o que me parecia as orelhas, afinal, eram dois pequenos matos lado a lado. Mas vi duas orelhas, mesmo assim vi, só que bem mais pequenas. Uma raposa… Era uma raposa, de pêlo acinzentado. Fui-a observando, e fui tratando das mensagens. Quando as enviei, a raposa já estava muito perto do carro, de focinho no chão, para um lado e para outro. Pensei em sair, para ver se ela se assustava comigo, mas depois lembrei-me do frio que fazia do lado de fora e desisti. Continuei a observá-la, até que ao fim de um bocado ela assustou-se mesmo, quando algumas vacas se aproximaram também do carro, curiosas. A raposa, mal as viu, desapareceu, sem que eu tivesse percebido o que procurava, se é que procurava alguma coisa. Apitei às vacas para se desviarem e avancei com o carro umas centenas de metros até encontrar um sítio onde podia dar a volta, e então regressei a casa. Quando abri o portão do monte, iluminei o ecrã do telemóvel para ver as horas e descobri surpreendido que já era mais de meia-noite e dez. Percebi que tinha passado o ano a observar a raposa, dentro do carro, no meio do montado escuro, a mais de um quilómetro de casa, onde a minha família dormia. Voltei a interrogar-me sobre se a raposa procuraria alguma coisa, e se realmente procurasse sobre o que poderia ser. Já estava a entrar em casa nessa altura. Um dos meus filhos tossiu, muito atrapalhado. Corri para o quarto, para ajudá-lo antes que acabasse por acordar a mãe. Deixei de pensar na raposa. Só voltei a pensar nela mais tarde, enquanto dormitava à lareira. Já tinha ido acudir a outros ataques de tosse, mas agora dormitava… Acordei de repente, com mais um ataque de tosse num dos quartos. Antes de correr para lá, vi a raposa na lareira. Estava deitada, e pareceu-me morta. Uns segundos… Eu a tentar regressar ao mundo. A raposa ali, a pouco mais de um metro de mim… A tosse intensificou-se e isso acabou por despertar-me completamente. O fogo tinha acabado na lareira, todos os troncos entretanto ardidos, e no lugar deles apenas um monte de cinza. Nem tinha a forma da raposa esse monte, mas por uns segundos eu tinha visto a raposa da passagem de ano. Levantei-me e corri para o quarto de onde me chegava o barulho da tosse. Um barulho que parecia agora menos atrapalhado, o que achei que podia ser um bom sinal.
.
.
6 comentários:
Uma passagem de ano singular, e tudo graças à gripe A e à falta de rede.
Há passagens de ano assim, bonitas, complementadas pelo sono, pelo sonho.
Disto se fazem os contos, assim, bonitos.
António, para a próxima a ver se não me esqueço de sair de casa sem as passas.
Abraço
Que passagem de ano diferente! Adorei a descrição. Espero que as gripes já tenham passado e que o resto do ano seja melhor.
Bjs
Teresa
António:
Não posso jurar, mas este texto talvez tenha sido simultaneamente o mais insólito e o mais belo relato de uma passagem de ano que alguma vez li. E tudo se ficou a dever ao pormenor, quase insignificante, de "uma barrinha de rede" associada a um objecto que ainda recentemente entrou no nosso quotidiano.
Espero também que a raposa tenha entrado em casa para afugentar a gripe, aproveitando o seu sono não fosse o meu amigo afugentar o animal, frustrando-lhe, assim, o seu bom propósito.
Saúde e paz!
Uma pergunta: para quando está prevista a saída do seu livro?
Um abraço.
Manuel, o livro só depois de Março; ainda não sei ao certo quando. E a seguir pode ser que reapareça o meu primeiro livro, o do presidente (http://os-livros.blogspot.com/2007/06/quando-o-presidente-da-repblica-visitou.html).
Abraço,
António
Parabéns António por mais este magnífico texto de uma profunda subtileza literária. Não perdes a influência do modernismo fantástico, e por isso a raposo serviu maravilhosamente para nos prender entre o medo da gripe e a mansidão de um suposto predador, aqui aproveitado pela semiologia que a raposa transmite à nossa cultura latina.
São nestes arco-íris que se vêem os verdadeiros escritores.
Um abraço de parabéns.
Vilhena Mesquita
Enviar um comentário