quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O pequeno construtor de searas

E a cada final de ano, quando se aproximava o Natal, quando começava a construir searas, ele pensava no que fazer para que os outros dois reis aparecessem.
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Houve um tempo em que ele construía searas. Na casa da tia, em Novembro, logo em fins de Novembro. Usava latinhas de conserva, sem o papel à volta com a marca, sem que depois se percebesse que vinham de acondicionar filetes de cavala, ou lulas, ou sardinhas, ou carapaus, ou até bocados de atum. Punha água e trigo nas latinhas anónimas e esperava que as searas crescessem, dia após dia, para que no Natal pudesse tê-las no presépio, os verdes campos de trigo, bem viçosos, já com as latinhas escondidas pelo musgo apanhado nas pedras do cerro por cima da fazenda.
Nunca falhou com uma seara, uma só que fosse. A cada ano dos natais em que construiu searas para representar no presépio os campos de cultivo, nunca falhou. Punha-as sempre à beira do caminho, do risco de areia que arranjava em cima do musgo desde os ladrilhos da sala até à cabana onde colocava o menino, a mãe e o carpinteiro que estava casado com ela. A cabana da estrela de prata de chocolate, do burro cinzento e da vaca cor-de-laranja com um dos chifres partidos.
Ele usava as figuras que já vinham do tempo da avó. O menino, do mesmo tamanho da mãe, do carpinteiro, do burro e da vaca cor-de-laranja, cinco ou seis ovelhas, um músico de Viena, dois patos e um rei solitário, negro, bem negro, sempre montado num camelo a meio caminho entre os ladrilhos e a cabana, todos do tamanho do menino.
Na igreja da vila, no presépio que o prior mandava fazer todos os anos, havia tantas outras figuras, até um pastor para as ovelhas, como o que depois ele conseguiu comprar na loja onde se entregava o totobola. Um pastor para as ovelhas, de capote amarelo e com um ar tão novo entre as figuras do presépio que ele fazia na casa da tia; foi o pastor que acabou por ser a única novidade em tantos anos no presépio das searas. Mas o presépio da igreja... Aí havia pontes, todas do tamanho do menino e das ovelhas, e castelos, também do tamanho do menino e das ovelhas, e do carpinteiro e da mãe do menino. E poços, desse tamanho também, e fontes, e camponeses, e os três reis magos, e cães, e cavalos, e carros-de-besta (com as bestas), todos do tamanho do menino. Na igreja da vila.
Todas essas figuras, ou umas parecidas, os poços, os camponeses, os cães, os carros-de-besta, os castelos, uma ponte, pelo menos uma, todas ele desejava ter para colocar no presépio da casa da tia. Mas apenas conseguiu o pastor. O rei negro ficava sozinho a meio do risco de areia que levava à cabana do menino, ano após ano. E era apenas disso que ele tinha vergonha, de ter um viajante de terras longínquas sem os dois companheiros de visita, como no presépio da igreja da vila. E a cada final de ano, quando se aproximava o Natal, quando começava a construir searas, ele pensava no que fazer para que os outros dois reis aparecessem. Mas nunca apareceram, nunca, em nenhuma das vezes em que foi buscar a velha caixa de sapatos com as figuras embrulhadas em papel vegetal.
Um dia, na cidade, viu uns presépios diferentes, apenas com o menino, a mãe e o carpinteiro que era o marido da mãe do menino. Nem a cabana aparecia nesses presépios, e do burro e da vaca nem sinal. Só uma caminha de palha para o menino. Nem a estrela que indicava a direcção do menino. Talvez por isso não aparecesse ninguém de visita, nem ovelhas, nesses presépios, talvez por falta da estrela. Foi o que ele pensou, mas aí já não era uma criança; e tinha havia muito tempo deixado de construir searas.
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1 comentário:

António Souto disse...

Muito bonito! Como o natal, por muito pequenino que seja, nos ensina a ser grandes...
Abraço natalício.