Primeiro de dois textos do meu amigo Luís Bento (o segundo publicarei por estes dias). Eu gosto muito, mas mesmo muito, dos textos dele. Espero que os leitores deste blog também possam gostar.
Quem sou eu? Quem quero ser?
Naquele dia o avião chegou a horas. Eram sete da manhã e já se fazia à pista, abanado pelo vento forte que soprava de leste. Foi uma daquelas aterragens que mais parecem «atracagens», tal a violência do embate com o solo.
Recolhi as bagagens e saí do terminal. Lá estava o carro da companhia à minha espera, para me transportar ao hotel. Rezei a todos os santos para que o quarto onde poderia dormir até ao meio-dia já estivesse vago, pois às sete horas da manhã temos sempre que encarar essa possibilidade.
Confirmaram-se as piores conjecturas. Não havia quarto disponível, só a partir das onze e meia. De forma que não tive outro remédio senão dormir num dos sofás da recepção, com o braço de madeira a servir-me de almofada.
A certa altura, estremeci com o abanão da recepcionista. Eram onze e quarenta e cinco.
Meio estremunhado, peguei nas malas e subi as escadas em direcção ao quarto que me tinham destinado, rogando pragas ao hotel, à recepcionista, a quem (não) fizera as marcações devidamente, enfim, descarregando o meu mau humor em todas as pessoas de que me lembrava e que, de forma directa ou indirecta, poderiam ter algo a ver com aquele incómodo.
Apesar de tudo, tive o bom senso de guardar os rancores e o mau feitio só para mim e correspondi com um largo sorriso quando a recepcionista me abriu a porta do quarto. Antes de me atirar para cima da cama, só tive tempo de lhe pedir que me acordasse à uma e meia da tarde.
Para ajudar, mal coloquei a cabeça no travesseiro comecei a ouvir umas marteladas fortes, ritmadas, na parede ao lado. Parecia que estavam a deitá-la abaixo. Imaginei logo que não iria conseguir dormir e roguei pragas a mim próprio por ter abandonado o sossego da recepção e do sofá.
Ainda não estava definitivamente convencido de que não adormeceria, quando ferrei no sono profundo – o chamado sono dos justos –, só acordando à hora fixada.
Tomei banho, almocei e dirigi-me à companhia para iniciar uma reunião.
Cumprimentei os amigos e os conhecidos, fiquei a conhecer novas pessoas... Uma delas, um rapaz um pouco tímido mas de sorriso franco e muita simpatia, destacava-se de todas as outras, extrovertidas, abertas, expansivas.
Com o decorrer dos dias percebi que o Américo – assim se chamava o tal rapaz tímido – era uma jóia de pessoa, mas que o seu carácter fechado não permitia quaisquer aproximações para lá da cordialidade.
A minha percepção era confirmada pelos colegas que com ele trabalhavam e que o conheciam desde a infância. O Américo era o chamado low profile: tímido, discreto, quase apagado, quase pedindo desculpa de estar ali.
Qual não foi o meu espanto quando tomei conhecimento de que o Américo era candidato às eleições autárquicas, e logo na qualidade de candidato a presidente de câmara… Além de tudo o mais, iria defrontar um dos dinossauros do poder local, numa câmara muito importante.
Toda a gente estava surpreendida com a coragem do Américo; mas, lá no fundo, todos pensavam que ele teria o à-vontade necessário para enfrentar umas eleições com as características mediáticas daquelas.
Como o município em causa ficava longe da capital, o Américo meteu licença sem vencimento. E lá foi fazer a sua campanha eleitoral.
Passavam os dias e não se ouvia falar do Américo.
Até que certa vez, estava eu a ver o canal local de televisão – que dava uma cobertura alargada a cada candidato –, dei com o Américo, empolgado, em cima de um palanque, a fazer um discurso mobilizador para o seu eleitorado. Estava como peixe na água e, para quem o conhecia, irreconhecível. Não era, decerto, o mesmo Américo.
No dia seguinte vimos o outro candidato a «atacar» o Américo, e este a ripostar à letra, desmontando-lhe a argumentação, como se fosse um político já experiente naquelas andanças de falar perante as câmaras de televisão. A assistência aplaudia, em delírio.
O acto eleitoral propriamente dito decorreu num domingo. Logo ao cair da noite foram conhecidos os primeiros resultados. Dúvidas numas zonas, uns votos por contar noutras... A única certeza era a vitória do Américo.
Pulei de alegria, como se fosse um dos seus apoiantes. Sentia uma espécie de aperto no peito, tal era a emoção.
Confesso que num primeiro momento ainda pensei que devia ter percebido ao contrário. Mas não, era verdade. O Américo tinha sido eleito presidente da Câmara Municipal do Paúl, em Cabo Verde; tinha conquistado a mais importante vitória do partido no poder.
Mas que Américo ganhou as eleições?
O Américo apagado, algo triste e sorumbático que todos conheciam?
Não.
Quem ganhou as eleições foi o Américo que só ele próprio conhecia. O Américo que acreditava, o Américo que sentia ter um potencial por descobrir.
Afinal, num universo pouco cintilante de resultados, o Américo foi uma estrela.
Ainda hoje, passados alguns anos, tenho de dizer: «Parabéns, Américo!»
Que outros procurem, como tu procuraste, a força escondida e a crença num futuro diferente.
Que apareçam muitos Américos também por cá, e que todos possamos sentir a alegria de ver os nossos amigos alcançarem as estrelas.
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Quem sou eu? Quem quero ser?
Naquele dia o avião chegou a horas. Eram sete da manhã e já se fazia à pista, abanado pelo vento forte que soprava de leste. Foi uma daquelas aterragens que mais parecem «atracagens», tal a violência do embate com o solo.
Recolhi as bagagens e saí do terminal. Lá estava o carro da companhia à minha espera, para me transportar ao hotel. Rezei a todos os santos para que o quarto onde poderia dormir até ao meio-dia já estivesse vago, pois às sete horas da manhã temos sempre que encarar essa possibilidade.
Confirmaram-se as piores conjecturas. Não havia quarto disponível, só a partir das onze e meia. De forma que não tive outro remédio senão dormir num dos sofás da recepção, com o braço de madeira a servir-me de almofada.
A certa altura, estremeci com o abanão da recepcionista. Eram onze e quarenta e cinco.
Meio estremunhado, peguei nas malas e subi as escadas em direcção ao quarto que me tinham destinado, rogando pragas ao hotel, à recepcionista, a quem (não) fizera as marcações devidamente, enfim, descarregando o meu mau humor em todas as pessoas de que me lembrava e que, de forma directa ou indirecta, poderiam ter algo a ver com aquele incómodo.
Apesar de tudo, tive o bom senso de guardar os rancores e o mau feitio só para mim e correspondi com um largo sorriso quando a recepcionista me abriu a porta do quarto. Antes de me atirar para cima da cama, só tive tempo de lhe pedir que me acordasse à uma e meia da tarde.
Para ajudar, mal coloquei a cabeça no travesseiro comecei a ouvir umas marteladas fortes, ritmadas, na parede ao lado. Parecia que estavam a deitá-la abaixo. Imaginei logo que não iria conseguir dormir e roguei pragas a mim próprio por ter abandonado o sossego da recepção e do sofá.
Ainda não estava definitivamente convencido de que não adormeceria, quando ferrei no sono profundo – o chamado sono dos justos –, só acordando à hora fixada.
Tomei banho, almocei e dirigi-me à companhia para iniciar uma reunião.
Cumprimentei os amigos e os conhecidos, fiquei a conhecer novas pessoas... Uma delas, um rapaz um pouco tímido mas de sorriso franco e muita simpatia, destacava-se de todas as outras, extrovertidas, abertas, expansivas.
Com o decorrer dos dias percebi que o Américo – assim se chamava o tal rapaz tímido – era uma jóia de pessoa, mas que o seu carácter fechado não permitia quaisquer aproximações para lá da cordialidade.
A minha percepção era confirmada pelos colegas que com ele trabalhavam e que o conheciam desde a infância. O Américo era o chamado low profile: tímido, discreto, quase apagado, quase pedindo desculpa de estar ali.
Qual não foi o meu espanto quando tomei conhecimento de que o Américo era candidato às eleições autárquicas, e logo na qualidade de candidato a presidente de câmara… Além de tudo o mais, iria defrontar um dos dinossauros do poder local, numa câmara muito importante.
Toda a gente estava surpreendida com a coragem do Américo; mas, lá no fundo, todos pensavam que ele teria o à-vontade necessário para enfrentar umas eleições com as características mediáticas daquelas.
Como o município em causa ficava longe da capital, o Américo meteu licença sem vencimento. E lá foi fazer a sua campanha eleitoral.
Passavam os dias e não se ouvia falar do Américo.
Até que certa vez, estava eu a ver o canal local de televisão – que dava uma cobertura alargada a cada candidato –, dei com o Américo, empolgado, em cima de um palanque, a fazer um discurso mobilizador para o seu eleitorado. Estava como peixe na água e, para quem o conhecia, irreconhecível. Não era, decerto, o mesmo Américo.
No dia seguinte vimos o outro candidato a «atacar» o Américo, e este a ripostar à letra, desmontando-lhe a argumentação, como se fosse um político já experiente naquelas andanças de falar perante as câmaras de televisão. A assistência aplaudia, em delírio.
O acto eleitoral propriamente dito decorreu num domingo. Logo ao cair da noite foram conhecidos os primeiros resultados. Dúvidas numas zonas, uns votos por contar noutras... A única certeza era a vitória do Américo.
Pulei de alegria, como se fosse um dos seus apoiantes. Sentia uma espécie de aperto no peito, tal era a emoção.
Confesso que num primeiro momento ainda pensei que devia ter percebido ao contrário. Mas não, era verdade. O Américo tinha sido eleito presidente da Câmara Municipal do Paúl, em Cabo Verde; tinha conquistado a mais importante vitória do partido no poder.
Mas que Américo ganhou as eleições?
O Américo apagado, algo triste e sorumbático que todos conheciam?
Não.
Quem ganhou as eleições foi o Américo que só ele próprio conhecia. O Américo que acreditava, o Américo que sentia ter um potencial por descobrir.
Afinal, num universo pouco cintilante de resultados, o Américo foi uma estrela.
Ainda hoje, passados alguns anos, tenho de dizer: «Parabéns, Américo!»
Que outros procurem, como tu procuraste, a força escondida e a crença num futuro diferente.
Que apareçam muitos Américos também por cá, e que todos possamos sentir a alegria de ver os nossos amigos alcançarem as estrelas.
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1 comentário:
António:
Sim o texto é muito bom e está muito longe das "reportagens" estereotipadas que normalmente nos chegam, sobre este tipo de vivências. É claro que para isso contribui a relação de proximidade que transparece no texto e o conhecimento da pessoa para além da “personagem”.
Um abraço.
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