
Quem sou eu? Quem quero ser?
Naquele dia o avião chegou a horas. Eram sete da manhã e já se fazia à pista, abanado pelo vento forte que soprava de leste. Foi uma daquelas aterragens que mais parecem «atracagens», tal a violência do embate com o solo.
Recolhi as bagagens e saí do terminal. Lá estava o carro da companhia à minha espera, para me transportar ao hotel. Rezei a todos os santos para que o quarto onde poderia dormir até ao meio-dia já estivesse vago, pois às sete horas da manhã temos sempre que encarar essa possibilidade.
Confirmaram-se as piores conjecturas. Não havia quarto disponível, só a partir das onze e meia. De forma que não tive outro remédio senão dormir num dos sofás da recepção, com o braço de madeira a servir-me de almofada.
A certa altura, estremeci com o abanão da recepcionista. Eram onze e quarenta e cinco.
Meio estremunhado, peguei nas malas e subi as escadas em direcção ao quarto que me tinham destinado, rogando pragas ao hotel, à recepcionista, a quem (não) fizera as marcações devidamente, enfim, descarregando o meu mau humor em todas as pessoas de que me lembrava e que, de forma directa ou indirecta, poderiam ter algo a ver com aquele incómodo.
Apesar de tudo, tive o bom senso de guardar os rancores e o mau feitio só para mim e correspondi com um largo sorriso quando a recepcionista me abriu a porta do quarto. Antes de me atirar para cima da cama, só tive tempo de lhe pedir que me acordasse à uma e meia da tarde.
Para ajudar, mal coloquei a cabeça no travesseiro comecei a ouvir umas marteladas fortes, ritmadas, na parede ao lado. Parecia que estavam a deitá-la abaixo. Imaginei logo que não iria conseguir dormir e roguei pragas a mim próprio por ter abandonado o sossego da recepção e do sofá.
Ainda não estava definitivamente convencido de que não adormeceria, quando ferrei no sono profundo – o chamado sono dos justos –, só acordando à hora fixada.
Tomei banho, almocei e dirigi-me à companhia para iniciar uma reunião.
Cumprimentei os amigos e os conhecidos, fiquei a conhecer novas pessoas... Uma delas, um rapaz um pouco tímido mas de sorriso franco e muita simpatia, destacava-se de todas as outras, extrovertidas, abertas, expansivas.
Com o decorrer dos dias percebi que o Américo – assim se chamava o tal rapaz tímido – era uma jóia de pessoa, mas que o seu carácter fechado não permitia quaisquer aproximações para lá da cordialidade.
A minha percepção era confirmada pelos colegas que com ele trabalhavam e que o conheciam desde a infância. O Américo era o chamado low profile: tímido, discreto, quase apagado, quase pedindo desculpa de estar ali.
Qual não foi o meu espanto quando tomei conhecimento de que o Américo era candidato às eleições autárquicas, e logo na qualidade de candidato a presidente de câmara… Além de tudo o mais, iria defrontar um dos dinossauros do poder local, numa câmara muito importante.
Toda a gente estava surpreendida com a coragem do Américo; mas, lá no fundo, todos pensavam que ele teria o à-vontade necessário para enfrentar umas eleições com as características mediáticas daquelas.
Como o município em causa ficava longe da capital, o Américo meteu licença sem vencimento. E lá foi fazer a sua campanha eleitoral.
Passavam os dias e não se ouvia falar do Américo.
Até que certa vez, estava eu a ver o canal local de televisão – que dava uma cobertura alargada a cada candidato –, dei com o Américo, empolgado, em cima de um palanque, a fazer um discurso mobilizador para o seu eleitorado. Estava como peixe na água e, para quem o conhecia, irreconhecível. Não era, decerto, o mesmo Américo.
No dia seguinte vimos o outro candidato a «atacar» o Américo, e este a ripostar à letra, desmontando-lhe a argumentação, como se fosse um político já experiente naquelas andanças de falar perante as câmaras de televisão. A assistência aplaudia, em delírio.
O acto eleitoral propriamente dito decorreu num domingo. Logo ao cair da noite foram conhecidos os primeiros resultados. Dúvidas numas zonas, uns votos por contar noutras... A única certeza era a vitória do Américo.
Pulei de alegria, como se fosse um dos seus apoiantes. Sentia uma espécie de aperto no peito, tal era a emoção.
Confesso que num primeiro momento ainda pensei que devia ter percebido ao contrário. Mas não, era verdade. O Américo tinha sido eleito presidente da Câmara Municipal do Paúl, em Cabo Verde; tinha conquistado a mais importante vitória do partido no poder.
Mas que Américo ganhou as eleições?
O Américo apagado, algo triste e sorumbático que todos conheciam?
Não.
Quem ganhou as eleições foi o Américo que só ele próprio conhecia. O Américo que acreditava, o Américo que sentia ter um potencial por descobrir.
Afinal, num universo pouco cintilante de resultados, o Américo foi uma estrela.
Ainda hoje, passados alguns anos, tenho de dizer: «Parabéns, Américo!»
Que outros procurem, como tu procuraste, a força escondida e a crença num futuro diferente.
Que apareçam muitos Américos também por cá, e que todos possamos sentir a alegria de ver os nossos amigos alcançarem as estrelas.
.
1 comentário:
António:
Sim o texto é muito bom e está muito longe das "reportagens" estereotipadas que normalmente nos chegam, sobre este tipo de vivências. É claro que para isso contribui a relação de proximidade que transparece no texto e o conhecimento da pessoa para além da “personagem”.
Um abraço.
Enviar um comentário