A confusão que para aí vai por causa de a revista «Ler» ter posto a Margarida Rebelo Pinto na capa… Eu pus a Margarida na capa da «Pessoal» em 2004 e acho que a entrevista que lhe fiz valeu a pena. Coloco-a a seguir.
Margarida Rebelo Pinto
«Há sempre um Tulius Detritus»
Tulius Detritus, esclareça-se, para quem não leu «A Grande Zaragata», de Asterix, é «uma personagem nojenta que cheira a arenque fumado e anda constantemente a fomentar a discórdia». O esclarecimento tem por base uma opinião de Margarida Rebelo Pinto, quando fala do ambiente que se vive em muitas empresas. Conheceu poucas, especialmente das grandes, onde o ambiente fosse saudável, e mesmo nessas havia sempre o tal Tulius Detritus.
Mas isso foi há alguns anos, ou melhor, há alguns anos atrás, como agora existe muito quem diga no Portugal pós-modernista. Margarida Rebelo Pinto andava então pelo mundo das empresas, mas agora, nesse Portugal pós-modernista, já escritora e com vendas a tocar o meio milhão de exemplares, é ela o pomo da discórdia. Não porque se comporte como a personagem da «Zaragata» de Asterix, mas porque por mais leitores que tenha há quem não lhe reconheça o mérito. «Vulgarólogos» e «impotentes literários», assim os caracteriza uma mulher que fala da sua carreira como se estivesse a apresentar um plano de acção para uma empresa a sério.
Estamos numa publicação ligada a temas de gestão, portanto, ao mundo das empresas. Esse mundo raramente aparece reflectido na literatura portuguesa. O que acha que contribui para que ele não seja um cenário literário, digamos assim, tradicional?
Os escritores portugueses, em geral, vivem sob um certo isolamento e há uma cultura, ou ditadura, literária que dita os temas e os ambientes sobre os quais se deve escrever para se ser reconhecido. Nisso, como em tantas outras coisas, o país e a sua cultura estão atrasados e são ainda muito provincianos.
Os seus livros são um pouco uma excepção. Neles desfilam personagens que trabalham, que têm profissões, não apenas o costumeiro médico, ou o professor, ou o empregado de escritório, que às vezes dá para tudo... O que é que a levou a tomar essa opção?
Eu escrevo sobre o que conheço; como trabalhei mais de dez anos na imprensa e em agências multinacionais de publicidade, é normal que vá buscar a esses ambientes personagens que, afinal, têm a ver com a nossa existência quotidiana.
E que mundo é este das empresas, para si? Uma personagem sua dizia a certa altura: «quando olho para trás e me lembro que dei sete anos da minha vida às maiores multinacionais do mercado até me dá náuseas.» Será um mundo saudável?
De forma alguma. As empresas podem ser verdadeiros infernos, se os líderes não as souberem gerir do ponto de vista humano. E não há nada mais difícil de gerir do que pessoas… Conheci poucas empresas grandes com ambiente saudável e mesmo nessas havia sempre um Tulius Detritus – aquela personagem nojenta que cheira a arenque fumado e anda constantemente a fomentar a discórdia em «A Grande Zaragata», do Asterix. Por outro lado, há pequenas e médias empresas muito saudáveis, onde o factor humano é uma prioridade. A Oficina do Livro, por exemplo, é assim: toda a gente gosta do que faz, sabe qual o seu papel, há espírito de equipa e de entreajuda. Mas são pouco mais de dez pessoas.
A sua editora é jovem e distinguiu-se rapidamente no mercado da edição…
A Oficina do Livro sempre fez um trabalho notável na promoção dos autores. Sempre houve muito cuidado com a imagem, nomeadamente na concepção das capas. Também foi e é inovadora em outros aspectos; apostou num catálogo diversificado e em autores portugueses que não eram necessariamente escritores, mas cronistas, e isso foi muito importante para criar aproximação dos leitores. E é uma editora muito próxima dos seus autores, que cuida dos interesses deles, apoia-os e ouve-os.
O que é que acha do mundo editorial em Portugal? As editoras são empresas, mas por vezes passa uma ideia diferente... Edita-se porque sim, não se promove porque não há dinheiro para promoção, e depois não se vende e entra-se num ciclo vicioso, e depois espera-se e desespera-se pela crítica... O que lhe parece este ambiente? Não terá facilitado a vida à Oficina do Livro, com a postura com que abordou o mercado?!
Claro que sim. A Oficina do Livro é uma empresa dinâmica que nasceu e cresceu virada para o mercado e não para o que os sócios da editora gostavam de ver publicado. Em Portugal, as editoras publicam os amigos ou as pessoas que acham que vão trazer prestígio à marca e depois abandonam literalmente os livros nas livrarias. O sucesso comercial nestas condições é impossível. Se o mercado não mexe porque as editoras não investem em divulgação, o reconhecimento passa apenas pela crítica e é por causa desta realidade que alguns críticos ganharam tanto poder. Mas isso já lá vai, porque agora isto já é uma democracia literária e é o mercado que manda.
Voltando ao mundo de há pouco… Fale-me das suas experiências nas empresas, mesmo ficando aqui assente que as editoras também são empresas.
Tive boas e más experiências. Tive chefes com quem me entendia e outros não. E quando achava que as pessoas eram incompetentes, como não sou grande diplomata, de uma forma ou de outra elas percebiam o que eu pensava sobre elas, e por isso tive alguns problemas. Mas eu acho que levar com algumas portas na cara faz parte de um bom currículo, por isso quando as coisas corriam menos bem, eu procurava alternativas. E como nunca trabalhei só para uma entidade, sempre mantive uma boa rede de trabalho em regime free-lancer, nunca fiquei pendurada.
O que é que aprendeu então, para a sua vida?
Aprendi muito sobre o comportamento humano, aprendi a observar como é que as pessoas reagem sob pressão. Aprendi que há três cheiros aos quais muito poucas pessoas resistem: o da fama, o do poder e o do dinheiro. Aprendi a antecipar conflitos e a perceber quem é que trabalhava com lealdade e sem lealdade. Aprendi a desconfiar das pessoas aparentemente inofensivas. Enfim, aprendi imenso sobre relações interpessoais, que é um tema que sempre me apaixonou. Além disso, apurei a minha intuição para a imagem; sou uma apaixonada por comunicação e imagem e uso isso para a gestão da minha própria imagem.
E gerir a imagem de outras pessoas?
Já me pediram para gerir a imagem de outras pessoas, mas recusei, porque não tenho tempo. Mas não desdenhava a hipótese de ser consultora de imagem para uma marca, porque acho que a minha intuição é bastante certeira.
E o que lhe ensinou o mundo das empresas que sirva agora para o seu trabalho de escritora?
O contributo imediato foi o aperfeiçoamento de estereótipos reais e muito actuais. O estereótipo pode ser uma base muito útil para a construção de personagens. E depois aprendi a coleccionar tiques, manias, tornei-me uma observadora compulsiva, observando tudo e todos até ao mais ínfimo pormenor, quase como um jogo.
Você conseguiu fazer da ligação à literatura uma actividade rentável. Isso era um mito em Portugal. Agora ouve-se falar de outros escritores que têm bons resultados em termos de vendas, Miguel Sousa Tavares, Inês Pedrosa... Acha que o seu caso contribuiu para desmistificar o papel do livro?
Sem dúvida. E fico muito contente por isso. Hoje há mais respeito pela actividade literária, quer por parte das editoras que tratam melhor os autores, quer pelos próprios leitores. Um livro é hoje encarado como um objecto de entretenimento e não como um bicho-de-sete-cabeças. Eu posso dizer que contribuí para a massificação da leitura em Portugal. Hoje as pessoas vão ao supermercado e compram o arroz, o leite, e depois vão à secção de livros e compram um livro. E estou a falar das classes C e C1, porque a A e a B preferem a FNAC e as livrarias clássicas. Isto quer dizer que os livros já entraram na rotina, as pessoas estão a adquirir hábitos de leitura, o que é óptimo.
Nas faculdades de gestão, os novos alunos são muitas vezes confrontados pela primeira vez com o facto de a noção de gestão não ser algo estanque, de não se aplicar apenas a uma empresa, chamemos-lhe assim, tradicional. Gestão aplica-se a uma empresa, a um município, a um projecto científico, a um exército, a uma carreira, enfim, a tudo. Como é que gere a sua actividade de escritora?
Com disciplina e definição de objectivos a curto e médio prazo. Para cada ano, estabeleço dois ou três objectivos – e não mais. Por exemplo: terminar um romance e apostar na internacionalização. Escrevo sempre de manhã, pelo menos quatro manhãs por semana. Faço aquilo a que se chama planeamento estratégico. E vou estudando o impacto da minha imagem, nunca perco isso de vista. Já disse que sou uma apaixonada por imagem e sou uma observadora atenta de figuras mundiais cujo percurso acho notável, como a Madonna, por exemplo.
Você não foi aceite por determinados sectores do meio literário, se é que podemos falar de um meio literário em Portugal... Mas outros sectores sim, chegando até a encontrar-se um estilo a partir do que escreve, denominado «Realismo Urbano Total». Como é a sua relação com esse tal «meio literário»?
É boa, ao contrário do que certas vozes fazem correr. Tenho o respeito e a amizade de escritores de todos os géneros e gerações. Eu também acho que não há um meio literário em Portugal; há três ou quatro críticos que pensam que são opinion leaders e que só se ouvem uns aos outros... É quase pungente. Portugal vive virado para dentro e essa é uma das razões por que não se desenvolve. Umbiguismo, mais uma marca do provincianismo de que já falei… Falo frequentemente com críticos e outros escritores e há pessoas de quem realmente gosto, porque admiro o seu trabalho e a sua postura perante a vida, como o João Lopes, o Possidónio Cachapa, o José Eduardo Agualusa e outros. Ainda outro dia o Eduardo Prado Coelho disse que o meu último romance, «I'm In Love With a Pop Star», tinha falhado em todas as frentes e que a campanha de marketing tinha sido um flop. Eu gostava de saber em que país do mundo é que um livro que entra para o top em cinco dias e vende 40.000 exemplares em dois meses é um fracasso. Coitado, como se ele soubesse alguma coisa de marketing. Pode saber de livros, mas como é tendência em Portugal, dá-lhe para opinar sobre tudo. É um vulgarólogo.
Também ouvi a referência a «subespécies». Como é que comenta esse tipo de observação?
Não tenho nada a dizer. Vivemos numa democracia. Uns usam melhor a liberdade de expressão do que outros; é o preço a pagar pela liberdade de expressão. Mas há impotentes literários, que são pessoas que gostavam de ser romancistas mas não conseguem. E há os vulgarólogos, que pensam que sabem sobre tudo e que se enganam muitas vezes. Até chega a ser divertido.
Uma coisa parece ser certa, você acaba por não ser indiferente a nenhum dos lados. Qual será a explicação para isso?
Eu mexi com o mercado e alterei a realidade vigente. Acabei com uma série de equívocos atrás dos quais os pretensos pseudo-intelectuais se escondiam. Que o escritor tinha que ser pobre, ou coxo, ou feio, ou incompreendido. Foram mudanças que abalaram o status quo cultural e que, logo, criaram polémica. Mas, como eu costumo dizer, nada na vida avança sem conflito.
O que é a sua actividade de escritora? Fale-me dela, dos momentos ao longo do dia, das relações que estabelece, dos contactos...
Eu vivo obcecada com o livro que ando a escrever ou com o próximo. Tenho sempre várias ideias, por isso trabalho em paralelo noutras obras, mesmo quando estou a escrever um romance. Passo o tempo todo a tirar notas, além do tempo que estou sentada ao computador a escrever, que é metade do dia. Preciso de sossego, por isso de manhã desligo os telefones. Trabalho a ouvir música – clássica ou jazz – e a olhar para o mar. Trabalho sempre no mesmo sítio, na cabeceira de uma mesa enorme de vidro. Como não gosto de ambiente de escritório, trabalho na sala e quando termino o computador arruma-se e fica invisível. Os papéis e os livros estão no escritório, do outro lado da casa. De vez em quando vou buscar um ou outro, que fica ao lado do computador a fazer-me companhia enquanto escrevo. Não escrevo à noite nem ao fim-de-semana. E quando vou de férias levo um caderninho e um maço de folhas, não me vá dar um ataque de escrita... Já me aconteceu, tenho que estar prevenida.
Que contraponto faz entre o seu caso e aquela imagem do escritor metido num buraco a escrever para a seguir entregar na editora e depois logo se vê?
Todos os escritores têm que viver nesse buraco para produzir e eu também tenho o meu. Mas eu tenho facilidade em sair dele e encarar a realidade. E não passo mais de um ano a trabalhar num livro para depois não o vender. Isso seria um desperdício. Há escritores que se viciam nessa quase não existência, nesse isolamento auto-imposto. Outro dia, o Lobo Antunes comparava a escrita a uma droga dura… Eu escrevo por prazer, por paixão, porque simplesmente não me imagino a fazer mais nada. Mas não sofro da quase inevitável dicotomia «escrever» ou «viver», porque adoro viver. A Annais Ninn, o Henry Miller, o Hemingway, eles sempre foram bon-vivants. E eu adoro viver, por isso hei-de sempre sair do buraco.
Acha que daqui a uns anos os seus livros podem ser revisitados, ser um pouco um retrato de Portugal nos anos 90 e no início do novo século?
É provável…
Quanto é que vale, ou o que vale, o nome Margarida Rebelo Pinto?
Não é quantificável. Vale o que vale uma marca. E faz-se valer.
E como é que se gere o sucesso?
Com o que aprendi em comunicação e publicidade. Não serve de nada o step by step se não se tiver uma visão global e a longo prazo do que pode suceder. Gosto de pensar a longo prazo e planear o futuro. Eu tenho uma imagem polémica, mas tenho a oportunidade de renovar o meu produto a cada livro que faço. Eu sei que sem um produto de qualidade não há imagem que aguente. E sei o que é o ciclo de vida de um produto. E sei que o mercado mudou. Estou atenta ao que me rodeia. Mas quando me sento para escrever desligo e vou para onde quero na escrita, é sempre uma viagem.
Li o recente vencedor do «Booker Prize», para escrever sobre ele. É o maior prémio de língua inglesa. Ao lê-lo, lembrei-me dos seus livros. Acha que teria mais hipóteses de ser premiada numa realidade como essa?
É provável. Num mercado gigante, como o anglo-saxónico, não há espaço para preconceitos nem provincianismo, mas há espaço para todos os géneros de literatura, desde que sejam eficazes. Nós somos um país periférico, sempre sofremos com isso e sempre haveremos de sofrer.
A acção do livro («Vernon Little – O Bode Expiatório») decorre nos Estados Unidos, e o livro é escrito por um australiano que vive na Irlanda. O que é que tem a dizer de Portugal em relação países como os Estados Unidos ou a Austrália, ou em relação à Grã-Bretanha?
É outro circuito. Nós somos latinos, mas ainda por cima vivemos de costas viradas para o que podia ser o nosso mundo, por isso estamos sós. Os espanhóis foram muito mais hábeis; eles unificaram a literatura castelhana com a da América Latina, enquanto nós virámos as costas ao Brasil, que tem escritores fabulosos. Sofremos de uma espécie de complexo de inferioridade em relação aos países anglo-saxónicos, que depois os intelectualóides de esquerda transformam em ódio anti-americano. Mas, no fundo, há um sentimento de inferioridade que nos faz sentir que nunca seremos como eles. Claro que não, porque o nosso sangue corre nas veias a uma outra temperatura. Mas não somos piores, somos diferentes. E devíamos ser mais unidos à Espanha, ao Brasil e ao resto da América Latina.
De tudo o que tem vindo a dizer, nota-se que sabe exactamente aquilo que quer. Já falou da estratégia que tem para si enquanto escritora, para a sua carreira. E em relação a um livro, depois de um ano a escrever, como disse, o que é que tem de ser feito? O último, «I'm In Love With a Pop Star», por exemplo…
O «Pop Star» foi um desafio, talvez o mais interessante a nível literário que lancei a mim mesma: escrever um fairy tale no século XXI. Como aconteceu nos outros romances, o «Pop Star» é o resultado de um puzzle assente em dois conceitos que me andavam a ocupar o espírito há algum tempo: porque é que já não há generation gap e como é bom ter uma vida normal em oposição à vida de pop star. A partir destas premissas, criei personagens e uma narrativa que as demonstrasse e ao mesmo tempo as desmontasse. Pam tem 16 anos, um piercing no umbigo e um sonho, o de conhecer o seu pop star preferido. Mas também tem uma mãe divorciada, uma amiga disparatada, todo um quadro sociológico que corresponde à nova organização social; famílias monoparentais, adolescentes obrigados a tomar conta dos pais desde muito cedo, esse tipo de coisas... A história é apenas um pretexto para reflectir sobre a nova sociedade.
O que há de novo em relação aos anteriores?
O estilo é um exercício de oralidade da primeira à última linha. Todos os capítulos acabam com um aforismo. A personagem principal reina sobre todas as coisas, é mais forte e mais atraente do que a própria história. Há ainda muito humor, muita ironia, ambos mascarados de um pragmatismo quase infantil. Porquê? Porque uma miúda de 16 anos vê o mundo com simplicidade e com ingenuidade. Mas ela é muito sábia para idade, e porquê? Porque de outra forma ela não iria tão fundo na análise da realidade. Este livro foi prazer puro. Eu adoro escrever, mas este, porque era muito cáustico e ao mesmo tempo muito romântico, deu-me um gozo enorme.
E em relação aos livros de crónicas?
As crónicas são tubos de ensaio para tudo: personagens, histórias, estilos literários... E dão-me a «mão», o treino de que todos os criativos precisam. Não se pode parar nunca de escrever, practice makes perfect. Não tenho nenhuma aspiração à perfeição, mas acho que só há uma maneira de escrever seriamente, que é escrever, escrever, escrever...
Houve uma festa para comemorar a venda de meio milhão de livros seus. Isso representou o quê dentro daquele objectivo global de que falou? E depois disso, que metas é que vai estabelecer?
Eu nunca estabeleço objectivos por números, seria incapaz de fazer isso, até porque os números não me dizem nada. As minhas metas têm a ver com o que eu acho que vou conseguir e que é importante para dar passos em frente na minha carreira. A internacionalização é um dos mais importantes neste momento. Quer o reforço nos mercados onde já estou, quer a conquista de outros mercados. E, claro, continuar a evoluir do ponto de vista literário. Há muito para fazer e eu tenho muito tempo, sou nova, não para escritora, mas para a obra que já tenho.
No mundo da gestão utilizam-se muito os case studies, inclusive as empresas que costumavam aparecer neles vêem-se de repente substituídas por instituições bem diferentes. Na última edição de um dos best-sellers da área de recursos humanos em Portugal, aparece um estudo do caso do Futebol Clube do Porto, em detrimento de uma empresa de distribuição, e ouvi inclusive falar de uma seguradora que o mais certo era deixar de ser lá citada. Também li artigos de gestão sobre, por exemplo, a Companhia de Ballet Contemporâneo da Gulbenkian, ou sobre um alpinista. Acha que o fenómeno que se gerou à sua volta poderá vir a ser um case study?
É provável que sim. Já há trabalhos de licenciatura em comunicação sobre os meus livros. E de outras áreas também. Sei de uma finalista de arquitectura que fez o projecto de licenciatura baseado no «Alma de Pássaro».
Mas temos sempre de voltar ao início. Você é escritora, escreve livros, isso é sempre a base de tudo…
Isso é o que me dá sentido à vida enquanto ser humano inserido numa determinada sociedade. Porque eu preciso de estar em comunicação com o que me rodeia e os livros fazem a ponte entre aquilo que sou, o que penso e o que me preocupa e o mundo. É claro que me realizo como mãe ou como mulher, mas não imagino a minha vida sem a escrita. E se estou algum tempo sem escrever, ou porque tenho um problema de saúde ou porque estou em promoção, começo a perder a alegria de viver, é como se o sentido da vida me escapasse por entre os dedos. Preciso mesmo de escrever para ser feliz e não imagino a minha vida de outra maneira.
Os números de Margarida (até 2004)
«Sei Lá» (romance) 140.000 exemplares (dos quais 90.000 na primeira editora)
«Não Há Coincidências» (romance) 170.000 exemplares
«As Crónicas da Margarida» (crónicas) 70.000 exemplares
«Alma de Pássaro» (romance) 100.000 exemplares
«Artista de Circo» (crónicas) 60.000 exemplares
«I’m in Love with a Pop Star» (romance) 45.000 exemplares
Os instrumentos de trabalho
Do que precisa Margarida Rebelo Pinto para trabalhar? Ou melhor, quais são os seus instrumentos de trabalho? Há a ideia de que o escritor precisa apenas de papel e caneta, tipo o que se dizia há uns anos do corta-mato, onde os portugueses eram bons porque precisavam apenas de uns calções, de uma T-shirt e de uma par de sapatilhas… Resposta na primeira pessoa... «Preciso, antes de mais, de um computador e de uma impressora; ambos portáteis, porque odeio esse tipo de material electrónico. Preciso de uma filo-fax para me organizar no dia-a-dia. O telemóvel é indispensável e o carro também, porque sem ele a minha vida seria um inferno. São bens que me dão autonomia total na gestão do meu trabalho. E para escrever preciso de uma mesa grande, uma janela grande e vários cadernos de notas, que andam sempre comigo.»
A Margarida
Margarida Rebelo Pinto nasceu em Lisboa, em 1965. Licenciou-se em «Línguas e Literaturas Modernas» na Universidade Clássica e, após uma passagem como copywriter pelo mundo da publicidade, iniciou a sua actividade jornalística («O Independente», «Sete», «Marie Claire» e «Diário de Notícias»). Foi repórter do Canal 1 da RTP, retomou a crónica «O Meu Pequeno Mundo», em 1999, na revista «Olá» do jornal «Semanário» e tornou-se cronista regular da «Elle», colaborando também com outras publicações. O seu primeiro romance, «Sei Lá», deu-lhe o «Prémio Literário FNAC». Tem mais seis livros editados: «Herman SuperStar» (a biografia do humorista), «Não há Coincidências», «As Crónicas da Margarida» (uma compilação das crónicas escritas para a revista «Olá»), «Alma de Pássaro» (romance iniciada com «Sei Lá» e continuada com «Não Há Coincidências»), «Artista de Circo» (um livro de crónicas e de pequenas ficções) e «I'm In Love With a PopStar» (publicado há cerca de três meses). Paralelamente à escrita, dedicou-se também ao guionismo (é autora do telefilme da SIC «Um Passeio no Parque», estando a rever o guião da adaptação cinematográfica de «Sei Lá»). (a partir do site oficial da escritora, http://margarida.clix.pt/)
.
Margarida Rebelo Pinto
«Há sempre um Tulius Detritus»
Tulius Detritus, esclareça-se, para quem não leu «A Grande Zaragata», de Asterix, é «uma personagem nojenta que cheira a arenque fumado e anda constantemente a fomentar a discórdia». O esclarecimento tem por base uma opinião de Margarida Rebelo Pinto, quando fala do ambiente que se vive em muitas empresas. Conheceu poucas, especialmente das grandes, onde o ambiente fosse saudável, e mesmo nessas havia sempre o tal Tulius Detritus.
Mas isso foi há alguns anos, ou melhor, há alguns anos atrás, como agora existe muito quem diga no Portugal pós-modernista. Margarida Rebelo Pinto andava então pelo mundo das empresas, mas agora, nesse Portugal pós-modernista, já escritora e com vendas a tocar o meio milhão de exemplares, é ela o pomo da discórdia. Não porque se comporte como a personagem da «Zaragata» de Asterix, mas porque por mais leitores que tenha há quem não lhe reconheça o mérito. «Vulgarólogos» e «impotentes literários», assim os caracteriza uma mulher que fala da sua carreira como se estivesse a apresentar um plano de acção para uma empresa a sério.
Estamos numa publicação ligada a temas de gestão, portanto, ao mundo das empresas. Esse mundo raramente aparece reflectido na literatura portuguesa. O que acha que contribui para que ele não seja um cenário literário, digamos assim, tradicional?
Os escritores portugueses, em geral, vivem sob um certo isolamento e há uma cultura, ou ditadura, literária que dita os temas e os ambientes sobre os quais se deve escrever para se ser reconhecido. Nisso, como em tantas outras coisas, o país e a sua cultura estão atrasados e são ainda muito provincianos.
Os seus livros são um pouco uma excepção. Neles desfilam personagens que trabalham, que têm profissões, não apenas o costumeiro médico, ou o professor, ou o empregado de escritório, que às vezes dá para tudo... O que é que a levou a tomar essa opção?
Eu escrevo sobre o que conheço; como trabalhei mais de dez anos na imprensa e em agências multinacionais de publicidade, é normal que vá buscar a esses ambientes personagens que, afinal, têm a ver com a nossa existência quotidiana.
E que mundo é este das empresas, para si? Uma personagem sua dizia a certa altura: «quando olho para trás e me lembro que dei sete anos da minha vida às maiores multinacionais do mercado até me dá náuseas.» Será um mundo saudável?
De forma alguma. As empresas podem ser verdadeiros infernos, se os líderes não as souberem gerir do ponto de vista humano. E não há nada mais difícil de gerir do que pessoas… Conheci poucas empresas grandes com ambiente saudável e mesmo nessas havia sempre um Tulius Detritus – aquela personagem nojenta que cheira a arenque fumado e anda constantemente a fomentar a discórdia em «A Grande Zaragata», do Asterix. Por outro lado, há pequenas e médias empresas muito saudáveis, onde o factor humano é uma prioridade. A Oficina do Livro, por exemplo, é assim: toda a gente gosta do que faz, sabe qual o seu papel, há espírito de equipa e de entreajuda. Mas são pouco mais de dez pessoas.
A sua editora é jovem e distinguiu-se rapidamente no mercado da edição…
A Oficina do Livro sempre fez um trabalho notável na promoção dos autores. Sempre houve muito cuidado com a imagem, nomeadamente na concepção das capas. Também foi e é inovadora em outros aspectos; apostou num catálogo diversificado e em autores portugueses que não eram necessariamente escritores, mas cronistas, e isso foi muito importante para criar aproximação dos leitores. E é uma editora muito próxima dos seus autores, que cuida dos interesses deles, apoia-os e ouve-os.
O que é que acha do mundo editorial em Portugal? As editoras são empresas, mas por vezes passa uma ideia diferente... Edita-se porque sim, não se promove porque não há dinheiro para promoção, e depois não se vende e entra-se num ciclo vicioso, e depois espera-se e desespera-se pela crítica... O que lhe parece este ambiente? Não terá facilitado a vida à Oficina do Livro, com a postura com que abordou o mercado?!
Claro que sim. A Oficina do Livro é uma empresa dinâmica que nasceu e cresceu virada para o mercado e não para o que os sócios da editora gostavam de ver publicado. Em Portugal, as editoras publicam os amigos ou as pessoas que acham que vão trazer prestígio à marca e depois abandonam literalmente os livros nas livrarias. O sucesso comercial nestas condições é impossível. Se o mercado não mexe porque as editoras não investem em divulgação, o reconhecimento passa apenas pela crítica e é por causa desta realidade que alguns críticos ganharam tanto poder. Mas isso já lá vai, porque agora isto já é uma democracia literária e é o mercado que manda.
Voltando ao mundo de há pouco… Fale-me das suas experiências nas empresas, mesmo ficando aqui assente que as editoras também são empresas.
Tive boas e más experiências. Tive chefes com quem me entendia e outros não. E quando achava que as pessoas eram incompetentes, como não sou grande diplomata, de uma forma ou de outra elas percebiam o que eu pensava sobre elas, e por isso tive alguns problemas. Mas eu acho que levar com algumas portas na cara faz parte de um bom currículo, por isso quando as coisas corriam menos bem, eu procurava alternativas. E como nunca trabalhei só para uma entidade, sempre mantive uma boa rede de trabalho em regime free-lancer, nunca fiquei pendurada.
O que é que aprendeu então, para a sua vida?
Aprendi muito sobre o comportamento humano, aprendi a observar como é que as pessoas reagem sob pressão. Aprendi que há três cheiros aos quais muito poucas pessoas resistem: o da fama, o do poder e o do dinheiro. Aprendi a antecipar conflitos e a perceber quem é que trabalhava com lealdade e sem lealdade. Aprendi a desconfiar das pessoas aparentemente inofensivas. Enfim, aprendi imenso sobre relações interpessoais, que é um tema que sempre me apaixonou. Além disso, apurei a minha intuição para a imagem; sou uma apaixonada por comunicação e imagem e uso isso para a gestão da minha própria imagem.
E gerir a imagem de outras pessoas?
Já me pediram para gerir a imagem de outras pessoas, mas recusei, porque não tenho tempo. Mas não desdenhava a hipótese de ser consultora de imagem para uma marca, porque acho que a minha intuição é bastante certeira.
E o que lhe ensinou o mundo das empresas que sirva agora para o seu trabalho de escritora?
O contributo imediato foi o aperfeiçoamento de estereótipos reais e muito actuais. O estereótipo pode ser uma base muito útil para a construção de personagens. E depois aprendi a coleccionar tiques, manias, tornei-me uma observadora compulsiva, observando tudo e todos até ao mais ínfimo pormenor, quase como um jogo.
Você conseguiu fazer da ligação à literatura uma actividade rentável. Isso era um mito em Portugal. Agora ouve-se falar de outros escritores que têm bons resultados em termos de vendas, Miguel Sousa Tavares, Inês Pedrosa... Acha que o seu caso contribuiu para desmistificar o papel do livro?
Sem dúvida. E fico muito contente por isso. Hoje há mais respeito pela actividade literária, quer por parte das editoras que tratam melhor os autores, quer pelos próprios leitores. Um livro é hoje encarado como um objecto de entretenimento e não como um bicho-de-sete-cabeças. Eu posso dizer que contribuí para a massificação da leitura em Portugal. Hoje as pessoas vão ao supermercado e compram o arroz, o leite, e depois vão à secção de livros e compram um livro. E estou a falar das classes C e C1, porque a A e a B preferem a FNAC e as livrarias clássicas. Isto quer dizer que os livros já entraram na rotina, as pessoas estão a adquirir hábitos de leitura, o que é óptimo.
Nas faculdades de gestão, os novos alunos são muitas vezes confrontados pela primeira vez com o facto de a noção de gestão não ser algo estanque, de não se aplicar apenas a uma empresa, chamemos-lhe assim, tradicional. Gestão aplica-se a uma empresa, a um município, a um projecto científico, a um exército, a uma carreira, enfim, a tudo. Como é que gere a sua actividade de escritora?
Com disciplina e definição de objectivos a curto e médio prazo. Para cada ano, estabeleço dois ou três objectivos – e não mais. Por exemplo: terminar um romance e apostar na internacionalização. Escrevo sempre de manhã, pelo menos quatro manhãs por semana. Faço aquilo a que se chama planeamento estratégico. E vou estudando o impacto da minha imagem, nunca perco isso de vista. Já disse que sou uma apaixonada por imagem e sou uma observadora atenta de figuras mundiais cujo percurso acho notável, como a Madonna, por exemplo.
Você não foi aceite por determinados sectores do meio literário, se é que podemos falar de um meio literário em Portugal... Mas outros sectores sim, chegando até a encontrar-se um estilo a partir do que escreve, denominado «Realismo Urbano Total». Como é a sua relação com esse tal «meio literário»?
É boa, ao contrário do que certas vozes fazem correr. Tenho o respeito e a amizade de escritores de todos os géneros e gerações. Eu também acho que não há um meio literário em Portugal; há três ou quatro críticos que pensam que são opinion leaders e que só se ouvem uns aos outros... É quase pungente. Portugal vive virado para dentro e essa é uma das razões por que não se desenvolve. Umbiguismo, mais uma marca do provincianismo de que já falei… Falo frequentemente com críticos e outros escritores e há pessoas de quem realmente gosto, porque admiro o seu trabalho e a sua postura perante a vida, como o João Lopes, o Possidónio Cachapa, o José Eduardo Agualusa e outros. Ainda outro dia o Eduardo Prado Coelho disse que o meu último romance, «I'm In Love With a Pop Star», tinha falhado em todas as frentes e que a campanha de marketing tinha sido um flop. Eu gostava de saber em que país do mundo é que um livro que entra para o top em cinco dias e vende 40.000 exemplares em dois meses é um fracasso. Coitado, como se ele soubesse alguma coisa de marketing. Pode saber de livros, mas como é tendência em Portugal, dá-lhe para opinar sobre tudo. É um vulgarólogo.
Também ouvi a referência a «subespécies». Como é que comenta esse tipo de observação?
Não tenho nada a dizer. Vivemos numa democracia. Uns usam melhor a liberdade de expressão do que outros; é o preço a pagar pela liberdade de expressão. Mas há impotentes literários, que são pessoas que gostavam de ser romancistas mas não conseguem. E há os vulgarólogos, que pensam que sabem sobre tudo e que se enganam muitas vezes. Até chega a ser divertido.
Uma coisa parece ser certa, você acaba por não ser indiferente a nenhum dos lados. Qual será a explicação para isso?
Eu mexi com o mercado e alterei a realidade vigente. Acabei com uma série de equívocos atrás dos quais os pretensos pseudo-intelectuais se escondiam. Que o escritor tinha que ser pobre, ou coxo, ou feio, ou incompreendido. Foram mudanças que abalaram o status quo cultural e que, logo, criaram polémica. Mas, como eu costumo dizer, nada na vida avança sem conflito.
O que é a sua actividade de escritora? Fale-me dela, dos momentos ao longo do dia, das relações que estabelece, dos contactos...
Eu vivo obcecada com o livro que ando a escrever ou com o próximo. Tenho sempre várias ideias, por isso trabalho em paralelo noutras obras, mesmo quando estou a escrever um romance. Passo o tempo todo a tirar notas, além do tempo que estou sentada ao computador a escrever, que é metade do dia. Preciso de sossego, por isso de manhã desligo os telefones. Trabalho a ouvir música – clássica ou jazz – e a olhar para o mar. Trabalho sempre no mesmo sítio, na cabeceira de uma mesa enorme de vidro. Como não gosto de ambiente de escritório, trabalho na sala e quando termino o computador arruma-se e fica invisível. Os papéis e os livros estão no escritório, do outro lado da casa. De vez em quando vou buscar um ou outro, que fica ao lado do computador a fazer-me companhia enquanto escrevo. Não escrevo à noite nem ao fim-de-semana. E quando vou de férias levo um caderninho e um maço de folhas, não me vá dar um ataque de escrita... Já me aconteceu, tenho que estar prevenida.
Que contraponto faz entre o seu caso e aquela imagem do escritor metido num buraco a escrever para a seguir entregar na editora e depois logo se vê?
Todos os escritores têm que viver nesse buraco para produzir e eu também tenho o meu. Mas eu tenho facilidade em sair dele e encarar a realidade. E não passo mais de um ano a trabalhar num livro para depois não o vender. Isso seria um desperdício. Há escritores que se viciam nessa quase não existência, nesse isolamento auto-imposto. Outro dia, o Lobo Antunes comparava a escrita a uma droga dura… Eu escrevo por prazer, por paixão, porque simplesmente não me imagino a fazer mais nada. Mas não sofro da quase inevitável dicotomia «escrever» ou «viver», porque adoro viver. A Annais Ninn, o Henry Miller, o Hemingway, eles sempre foram bon-vivants. E eu adoro viver, por isso hei-de sempre sair do buraco.
Acha que daqui a uns anos os seus livros podem ser revisitados, ser um pouco um retrato de Portugal nos anos 90 e no início do novo século?
É provável…
Quanto é que vale, ou o que vale, o nome Margarida Rebelo Pinto?
Não é quantificável. Vale o que vale uma marca. E faz-se valer.
E como é que se gere o sucesso?
Com o que aprendi em comunicação e publicidade. Não serve de nada o step by step se não se tiver uma visão global e a longo prazo do que pode suceder. Gosto de pensar a longo prazo e planear o futuro. Eu tenho uma imagem polémica, mas tenho a oportunidade de renovar o meu produto a cada livro que faço. Eu sei que sem um produto de qualidade não há imagem que aguente. E sei o que é o ciclo de vida de um produto. E sei que o mercado mudou. Estou atenta ao que me rodeia. Mas quando me sento para escrever desligo e vou para onde quero na escrita, é sempre uma viagem.
Li o recente vencedor do «Booker Prize», para escrever sobre ele. É o maior prémio de língua inglesa. Ao lê-lo, lembrei-me dos seus livros. Acha que teria mais hipóteses de ser premiada numa realidade como essa?
É provável. Num mercado gigante, como o anglo-saxónico, não há espaço para preconceitos nem provincianismo, mas há espaço para todos os géneros de literatura, desde que sejam eficazes. Nós somos um país periférico, sempre sofremos com isso e sempre haveremos de sofrer.
A acção do livro («Vernon Little – O Bode Expiatório») decorre nos Estados Unidos, e o livro é escrito por um australiano que vive na Irlanda. O que é que tem a dizer de Portugal em relação países como os Estados Unidos ou a Austrália, ou em relação à Grã-Bretanha?
É outro circuito. Nós somos latinos, mas ainda por cima vivemos de costas viradas para o que podia ser o nosso mundo, por isso estamos sós. Os espanhóis foram muito mais hábeis; eles unificaram a literatura castelhana com a da América Latina, enquanto nós virámos as costas ao Brasil, que tem escritores fabulosos. Sofremos de uma espécie de complexo de inferioridade em relação aos países anglo-saxónicos, que depois os intelectualóides de esquerda transformam em ódio anti-americano. Mas, no fundo, há um sentimento de inferioridade que nos faz sentir que nunca seremos como eles. Claro que não, porque o nosso sangue corre nas veias a uma outra temperatura. Mas não somos piores, somos diferentes. E devíamos ser mais unidos à Espanha, ao Brasil e ao resto da América Latina.
De tudo o que tem vindo a dizer, nota-se que sabe exactamente aquilo que quer. Já falou da estratégia que tem para si enquanto escritora, para a sua carreira. E em relação a um livro, depois de um ano a escrever, como disse, o que é que tem de ser feito? O último, «I'm In Love With a Pop Star», por exemplo…
O «Pop Star» foi um desafio, talvez o mais interessante a nível literário que lancei a mim mesma: escrever um fairy tale no século XXI. Como aconteceu nos outros romances, o «Pop Star» é o resultado de um puzzle assente em dois conceitos que me andavam a ocupar o espírito há algum tempo: porque é que já não há generation gap e como é bom ter uma vida normal em oposição à vida de pop star. A partir destas premissas, criei personagens e uma narrativa que as demonstrasse e ao mesmo tempo as desmontasse. Pam tem 16 anos, um piercing no umbigo e um sonho, o de conhecer o seu pop star preferido. Mas também tem uma mãe divorciada, uma amiga disparatada, todo um quadro sociológico que corresponde à nova organização social; famílias monoparentais, adolescentes obrigados a tomar conta dos pais desde muito cedo, esse tipo de coisas... A história é apenas um pretexto para reflectir sobre a nova sociedade.
O que há de novo em relação aos anteriores?
O estilo é um exercício de oralidade da primeira à última linha. Todos os capítulos acabam com um aforismo. A personagem principal reina sobre todas as coisas, é mais forte e mais atraente do que a própria história. Há ainda muito humor, muita ironia, ambos mascarados de um pragmatismo quase infantil. Porquê? Porque uma miúda de 16 anos vê o mundo com simplicidade e com ingenuidade. Mas ela é muito sábia para idade, e porquê? Porque de outra forma ela não iria tão fundo na análise da realidade. Este livro foi prazer puro. Eu adoro escrever, mas este, porque era muito cáustico e ao mesmo tempo muito romântico, deu-me um gozo enorme.
E em relação aos livros de crónicas?
As crónicas são tubos de ensaio para tudo: personagens, histórias, estilos literários... E dão-me a «mão», o treino de que todos os criativos precisam. Não se pode parar nunca de escrever, practice makes perfect. Não tenho nenhuma aspiração à perfeição, mas acho que só há uma maneira de escrever seriamente, que é escrever, escrever, escrever...
Houve uma festa para comemorar a venda de meio milhão de livros seus. Isso representou o quê dentro daquele objectivo global de que falou? E depois disso, que metas é que vai estabelecer?
Eu nunca estabeleço objectivos por números, seria incapaz de fazer isso, até porque os números não me dizem nada. As minhas metas têm a ver com o que eu acho que vou conseguir e que é importante para dar passos em frente na minha carreira. A internacionalização é um dos mais importantes neste momento. Quer o reforço nos mercados onde já estou, quer a conquista de outros mercados. E, claro, continuar a evoluir do ponto de vista literário. Há muito para fazer e eu tenho muito tempo, sou nova, não para escritora, mas para a obra que já tenho.
No mundo da gestão utilizam-se muito os case studies, inclusive as empresas que costumavam aparecer neles vêem-se de repente substituídas por instituições bem diferentes. Na última edição de um dos best-sellers da área de recursos humanos em Portugal, aparece um estudo do caso do Futebol Clube do Porto, em detrimento de uma empresa de distribuição, e ouvi inclusive falar de uma seguradora que o mais certo era deixar de ser lá citada. Também li artigos de gestão sobre, por exemplo, a Companhia de Ballet Contemporâneo da Gulbenkian, ou sobre um alpinista. Acha que o fenómeno que se gerou à sua volta poderá vir a ser um case study?
É provável que sim. Já há trabalhos de licenciatura em comunicação sobre os meus livros. E de outras áreas também. Sei de uma finalista de arquitectura que fez o projecto de licenciatura baseado no «Alma de Pássaro».
Mas temos sempre de voltar ao início. Você é escritora, escreve livros, isso é sempre a base de tudo…
Isso é o que me dá sentido à vida enquanto ser humano inserido numa determinada sociedade. Porque eu preciso de estar em comunicação com o que me rodeia e os livros fazem a ponte entre aquilo que sou, o que penso e o que me preocupa e o mundo. É claro que me realizo como mãe ou como mulher, mas não imagino a minha vida sem a escrita. E se estou algum tempo sem escrever, ou porque tenho um problema de saúde ou porque estou em promoção, começo a perder a alegria de viver, é como se o sentido da vida me escapasse por entre os dedos. Preciso mesmo de escrever para ser feliz e não imagino a minha vida de outra maneira.
Os números de Margarida (até 2004)
«Sei Lá» (romance) 140.000 exemplares (dos quais 90.000 na primeira editora)
«Não Há Coincidências» (romance) 170.000 exemplares
«As Crónicas da Margarida» (crónicas) 70.000 exemplares
«Alma de Pássaro» (romance) 100.000 exemplares
«Artista de Circo» (crónicas) 60.000 exemplares
«I’m in Love with a Pop Star» (romance) 45.000 exemplares
Os instrumentos de trabalho
Do que precisa Margarida Rebelo Pinto para trabalhar? Ou melhor, quais são os seus instrumentos de trabalho? Há a ideia de que o escritor precisa apenas de papel e caneta, tipo o que se dizia há uns anos do corta-mato, onde os portugueses eram bons porque precisavam apenas de uns calções, de uma T-shirt e de uma par de sapatilhas… Resposta na primeira pessoa... «Preciso, antes de mais, de um computador e de uma impressora; ambos portáteis, porque odeio esse tipo de material electrónico. Preciso de uma filo-fax para me organizar no dia-a-dia. O telemóvel é indispensável e o carro também, porque sem ele a minha vida seria um inferno. São bens que me dão autonomia total na gestão do meu trabalho. E para escrever preciso de uma mesa grande, uma janela grande e vários cadernos de notas, que andam sempre comigo.»
A Margarida
Margarida Rebelo Pinto nasceu em Lisboa, em 1965. Licenciou-se em «Línguas e Literaturas Modernas» na Universidade Clássica e, após uma passagem como copywriter pelo mundo da publicidade, iniciou a sua actividade jornalística («O Independente», «Sete», «Marie Claire» e «Diário de Notícias»). Foi repórter do Canal 1 da RTP, retomou a crónica «O Meu Pequeno Mundo», em 1999, na revista «Olá» do jornal «Semanário» e tornou-se cronista regular da «Elle», colaborando também com outras publicações. O seu primeiro romance, «Sei Lá», deu-lhe o «Prémio Literário FNAC». Tem mais seis livros editados: «Herman SuperStar» (a biografia do humorista), «Não há Coincidências», «As Crónicas da Margarida» (uma compilação das crónicas escritas para a revista «Olá»), «Alma de Pássaro» (romance iniciada com «Sei Lá» e continuada com «Não Há Coincidências»), «Artista de Circo» (um livro de crónicas e de pequenas ficções) e «I'm In Love With a PopStar» (publicado há cerca de três meses). Paralelamente à escrita, dedicou-se também ao guionismo (é autora do telefilme da SIC «Um Passeio no Parque», estando a rever o guião da adaptação cinematográfica de «Sei Lá»). (a partir do site oficial da escritora, http://margarida.clix.pt/)
.
4 comentários:
muito, muito interessante esta entrevista
Temporariamente, a PESSOAL foi considerada uma "revista literária" no Blogtailors, mas o lapso já foi corrigido.
MRP diz "Tenho sempre várias ideias (...)".
Ela ideias tem. É pena serem tristes.
Ah! E outra coisa ainda, antes que me entusiasme mais: como é possível aplicar estes adjectivos a Eduardo Prado Coelho??".
Enviar um comentário