Deixou-nos hoje. Alfredo Saramago. Publiquei na revista, há não muito tempo, um texto que lhe pedimos, sobre os trabalhos que fazia. Deixo o texto a seguir, um texto onde a certa altura ele falava de querer «continuar a pensar, sem ter esperança de salvar o mundo», de querer «continuar a viver com entusiasmo» mesmo sabendo, «desde a primeira adolescência, o destino trágico do homem».
As reticências e outros fascínios
Quando se pede a alguém que fale de si próprio é uso dizer-se que quem deverá falar são os outros. Os que assim falam estão cobertos de razão porque nós somos o que os outros vêem em nós e não aquilo que nós pensamos que somos. É a eterna historia do «eu» e do «outro»… mas, no entanto, ninguém poderá falar melhor de nós do que nós mesmos, não existe ninguém que nos conheça melhor do que nós próprios embora o que acabei de escrever seja afirmação arriscada principalmente em tempo de celebração de efeméride freudiana…
Para falar sobre mim poderia começar por me interrogar por quê este fascínio pelas reticências… possivelmente o Dr. Freud teria alguma coisa a dizer… talvez sem me surpreender. Gosto de reticências porque sou preguiçoso e as reticências esclarecem ou induzem ao conhecimento daquilo que já não tenho pachorra para escrever. Gosto das reticências porque sou vaidoso, quero que os outros pensem que tenho muito mais a dizer mas que confio na astúcia de quem me lê para poder discorrer o que não quis explicitar.
Depois deste intróito, que poderia ser este ou outro, vamos ao que me pediram: que escreva 3.000 caracteres sobre mim e sobre o que faço. Direi que 3.000 caracteres são muitas palavras para dizer pouco ou que 3.000 caracteres são poucas palavras para dizer tanto… aqui as reticências podem ter duplo e contraditório sentido: tanto para um como para outro sentido, convocam a astúcia do leitor para imaginar um homem simples de fácil descrição ou um homem múltiplo de narração mais extensa. Com esta duvidosa explicação ganhei mais um parágrafo e poderei informar os meus leitores que neste momento já vou em 1.346 caracteres sem espaços e 1.621 incluindo espaços…
Ora então vamos à vida e ao que faço. Neste momento da vida só faço o que quero e o que gosto e o que quero e o que gosto é investigar História e Antropologia, escrever sobre estas matérias, continuar a estudar História da Alimentação, terminar dois livros sobre o assunto, fazer fotografia e preparar uma exposição, continuar a pintar depois da exposição, ver touros em Portugal e Espanha, caçar perdizes, rolas e tordos, descobrir bons vinhos, comer o que me dá prazer e ensaiar novos paladares, viajar, ouvir as músicas ditas clássicas que me têm acompanhado a vida, continuar o esforço para aprender a gostar das já ditas clássicas mas contemporâneas, visitar nos museus toda a história da pintura, continuar com todo o entusiasmo a ser director e colaborador da revista «Epicur» e, mais do que tudo, a viver tranquilo com a minha mulher, com os meus filhos e com os meus netos e a conviver com os meus amigos.
Quero continuar a pensar, sem ter esperança de salvar o mundo, quero continuar a viver com entusiasmo mesmo que saiba, desde a primeira adolescência, o destino trágico do homem. Há muito que abandonei a ideia da minha imortalidade e estou devidamente conformado com a morte inevitável. Eu sei que Deus deu ao homem, na ausência da imortalidade, a possibilidade de se poder embriagar e, por breves momentos, se sentir um semi-deus, mas gosto demasiado de vinho para beber em excesso e desta forma fico subtraído a essa brevíssima semi-imortalidade. Neste momento já tenho mais de 2.600 caracteres e estou a escrever no Alentejo, sem palavras para falar do campo, do cheiro do ar e do olhar tranquilo das pessoas que estão ao pé de mim.
As reticências e outros fascínios
Quando se pede a alguém que fale de si próprio é uso dizer-se que quem deverá falar são os outros. Os que assim falam estão cobertos de razão porque nós somos o que os outros vêem em nós e não aquilo que nós pensamos que somos. É a eterna historia do «eu» e do «outro»… mas, no entanto, ninguém poderá falar melhor de nós do que nós mesmos, não existe ninguém que nos conheça melhor do que nós próprios embora o que acabei de escrever seja afirmação arriscada principalmente em tempo de celebração de efeméride freudiana…
Para falar sobre mim poderia começar por me interrogar por quê este fascínio pelas reticências… possivelmente o Dr. Freud teria alguma coisa a dizer… talvez sem me surpreender. Gosto de reticências porque sou preguiçoso e as reticências esclarecem ou induzem ao conhecimento daquilo que já não tenho pachorra para escrever. Gosto das reticências porque sou vaidoso, quero que os outros pensem que tenho muito mais a dizer mas que confio na astúcia de quem me lê para poder discorrer o que não quis explicitar.
Depois deste intróito, que poderia ser este ou outro, vamos ao que me pediram: que escreva 3.000 caracteres sobre mim e sobre o que faço. Direi que 3.000 caracteres são muitas palavras para dizer pouco ou que 3.000 caracteres são poucas palavras para dizer tanto… aqui as reticências podem ter duplo e contraditório sentido: tanto para um como para outro sentido, convocam a astúcia do leitor para imaginar um homem simples de fácil descrição ou um homem múltiplo de narração mais extensa. Com esta duvidosa explicação ganhei mais um parágrafo e poderei informar os meus leitores que neste momento já vou em 1.346 caracteres sem espaços e 1.621 incluindo espaços…
Ora então vamos à vida e ao que faço. Neste momento da vida só faço o que quero e o que gosto e o que quero e o que gosto é investigar História e Antropologia, escrever sobre estas matérias, continuar a estudar História da Alimentação, terminar dois livros sobre o assunto, fazer fotografia e preparar uma exposição, continuar a pintar depois da exposição, ver touros em Portugal e Espanha, caçar perdizes, rolas e tordos, descobrir bons vinhos, comer o que me dá prazer e ensaiar novos paladares, viajar, ouvir as músicas ditas clássicas que me têm acompanhado a vida, continuar o esforço para aprender a gostar das já ditas clássicas mas contemporâneas, visitar nos museus toda a história da pintura, continuar com todo o entusiasmo a ser director e colaborador da revista «Epicur» e, mais do que tudo, a viver tranquilo com a minha mulher, com os meus filhos e com os meus netos e a conviver com os meus amigos.
Quero continuar a pensar, sem ter esperança de salvar o mundo, quero continuar a viver com entusiasmo mesmo que saiba, desde a primeira adolescência, o destino trágico do homem. Há muito que abandonei a ideia da minha imortalidade e estou devidamente conformado com a morte inevitável. Eu sei que Deus deu ao homem, na ausência da imortalidade, a possibilidade de se poder embriagar e, por breves momentos, se sentir um semi-deus, mas gosto demasiado de vinho para beber em excesso e desta forma fico subtraído a essa brevíssima semi-imortalidade. Neste momento já tenho mais de 2.600 caracteres e estou a escrever no Alentejo, sem palavras para falar do campo, do cheiro do ar e do olhar tranquilo das pessoas que estão ao pé de mim.
[Texto de Alfredo Saramago; escrito em Serpa, a 20 de Maio de 2006]
1 comentário:
O Alfredo Saramago tinha um ritmo que me marcou. Talvez devido a essa "pachorrência" me tenha inspirado na sua figura física para a personagem Alfredo (um mordomo de Deus) no meu romance "Seja o que Deus quiser".
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