quinta-feira, 24 de maio de 2007

Textos sobre livros – 26 (ESPECIAL)

Este post da série «textos sobre livros» é especial. Recupera um romance sobre o qual escrevi em meados de 2005. Trago aqui o texto porque ontem à noite lembrei-me do título do romance, quando tomei conhecimento da figura triste do ministro (?) Mário Lino.


Livro: «O Deserto Habitado», de Júlio Conrado (Âncora, 146 pp.)

Soltar a imaginação

Três décadas depois, uma nova escrita para um romance que o corrupio da revolução dos cravos ajudou a que ficasse esquecido nas livrarias. Mantém-se a trama, mas o autor apostou no «reforço dos traços caracteriais da personagem principal», um crítico de televisão de repente mandado pela sua estação tratar de assuntos de maior conveniência. A história é de 1971, mas nos dias de hoje caberia muito bem.
Uma nova versão de um romance inicialmente publicado uma semana antes do 25 de Abril, também ele engolido pelo corrupio revolucionário que de repente se instalou em Portugal, versão esta a surgir três décadas depois, com «a supressão de uma mão cheia de páginas inúteis e o investimento no reforço dos traços caracteriais da personagem principal». Esta personagem principal é um crítico de televisão cujas opiniões acabam por ir deixando marcas na imagem da estação televisiva para a qual trabalha. Olegário Crispim – pseudónimo do destravado crítico, «herói para uns, demónio para outros» –, depois de suspenso de funções por causa de mais um artigo, inicia uma nova etapa da sua «carreira», passando a cobrir casos de polícia, que já os havia em 1971, ano em que decorre a acção do romance.
Crispim acaba por ser enviado para o Alentejo, para uma «vilória rendida ao sol em brasa no descampado a perder de vista». Motivo, acompanhar o julgamento de um pastor acusado de ter assassinado a mulher. Contudo, as peripécias deste julgamento pouco parecem interessar a Crispim. Aquilo que verdadeiramente o envolve são as suas próprias recordações. «De corpo inteiro no julgamento do pastor», Crispim acha-se ao mesmo tempo «presença e ausência, juiz, réu e testemunha de uma causa expandindo-se por mil subterfúgios de retórica forense até se diluir» num lugar onde a ele, Crispim, lhe «apetece pensar que se poderia estar e onde em certa medida se está», porque dá «rédea solta» à imaginação.
Crispim, a par da cobertura de casos como este do pastor assassino, e também a par da actividade de dar «rédea solta» à sua imaginação, torna-se também «folhetinista». Lá para o final, tirando os momentos em que as vagas de calor o deixarão «desnorteado», há-de sentir-se «contentinho da vida» por ao menos ter fama na província, principalmente numa pensão onde é «mimado como um verdadeiro Deus». Resta saber que espécie de mimos gostam os deuses de ter, nomeadamente aqueles que se possam classificar como verdadeiros.
Júlio Conrado (n. Olhão, 1936) é crítico literário e escritor, destacando-se entre a sua vasta obra o excelente romance «Desaparecido no Salon du Livre».

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