Mais um texto sobre um livro. Desta vez, sobre o belíssimo romance «El-Rei no Porto», de Fernando Venâncio (saiu no suplemento «Mil Folhas», do jornal «Público», em meados de Setembro de 2001).
Livro: «El-Rei no Porto», de Fernando Venâncio (Edições Asa, 171 pp.)
Portugal cortado ao meio
O segundo romance de Fernando Venâncio tem Santa Maria da Feira como capital política de uma jovem monarquia, o Reino de Portugal. Nas terras do sul fica a república do costume, mais pequena, mas a do costume.
Não tem sido fértil a ficção portuguesa na exploração de cenários de grandes convulsões sociais ou políticas. Talvez porque a própria pacatez do nosso país não leve a que se pense muito no tema. Daí alguma surpresa quando se entra na leitura de «El-Rei no Porto», o segundo romance de Fernando Venâncio, que conta uma história de amor num Portugal que acaba por dividir-se em dois países. A ideia não era nova, o autor já a tinha anunciado aos quatro ventos em 1988, numa crónica publicada no «Jornal de Letras». Aí, oferecia-a a quem a quisesse aproveitar, não para fazer uma revolução, mas para escrever um livro, ou fazer um filme ou uma série de televisão. «Mas ninguém reagiu» – lamenta-se numa nota final a «El-Rei no Porto». Acrescentando depois: «Doze anos não bastaram para que alguém chamasse seu a tamanho tesouro...»
Admite-se a Fernando Venâncio a expressão «tamanho tesouro», porque de facto a trama de um romance que corte Portugal ao meio é sem dúvida uma boa ideia, muito boa mesmo, embora talvez não deva ser levada muito a sério fora da ficção. Quanto à sua concretização, ainda na ficção, já se vê, que é o que para aqui interessa, isso será outra história. E difícil, bem difícil, o que por certo explica o facto de ninguém se ter metido em aventuras depois da crónica de 1988. Lá teve assim o próprio Fernando Venâncio de arregaçar as mangas e pôr mãos à obra noutras circunstâncias, por certo bem diferentes das que lhe permitiram chegar à ideia.
E então apareceu o romance que corta Portugal ao meio, arranjando uma monarquia a norte e uma república a sul. O Reino de Portugal, com o coração no Porto e a capital política em Santa Maria da Feira, e Portugal, ainda e sempre com tudo concentrado em Lisboa. A trama passa-se no século XXI, presume-se que nos primeiros anos. O narrador é Ricardo Gralho, um jornalista desportivo de Lisboa que tem no Porto a sua namorada, a jovem Márcia. Ricardo conta a certa altura: «A 10 de Abril, na noite das eleições, foi o terror. Matilde Laborim ganhava por 54% dos votos. Só que nove décimos deles vinham de a sul do Mondego. Os 46% que Rodrigo Penhas reuniu, couberam-lhe praticamente só na metade norte. Tudo graças a uma formidável mobilização no Sul, e a uma suficiente, mas ainda hoje inexplicada, falta de comparência a Norte.» Talvez não tenha sido inocente essa falta de comparência, capaz de deixar o nortenho Rodrigo Penhas fora do palácio de Belém. Os autarcas do norte, um verdadeiro poder, não pareciam muito afeitos à ideia de um presidente a mandar neles, mesmo que enviado do Porto para Lisboa. Um rei feito apenas à sua medida haveria de servi-los melhor.
Quando a nova presidente visita o Porto, na véspera de um Boavista – Sporting ainda para o campeonato do país unido, a cidade do derrotado Rodrigo recebe-a com «os rostos fechados, as figas à socapa, e por isso tão decepcionantes...» Chamam-lhe «a Moura». O mal-estar não é mais do que o prenúncio da guerra, que não tardará a rebentar. «As imagens precipitam-se, amontoam-se, repetem-se, estão lá todos, a RTP, a CNN, outros vão chegando. Por Madrid, por Rabat. Há uma guerra, outra guerra, na Europa? Poça, há uma guerra no meu país. Os americanos e a SIC arranjaram cada um seu helicóptero...»
Conta ainda Ricardo Gralho: «A coisa estragou-se, se bem percebi, numa saída da auto-estrada, junto a Pombal, quando os tanques do Norte ensaiavam um envolvimento, um romper das linhas, onde é que a gente já ouviu tais termos. Uma coluna dos nossos tentou fazer-lhes alto, diz-se que a bem, 'numa tentativa de chamar à razão o inimigo', estamos a tornar-nos eloquentes. Foi pior. Fomos mal percebidos. Alguém do outro lado fez fogo, talvez por pânico, com a razão à deriva. Eram seis e quarenta da tarde, estava eu a tentar falar à Márcia, de cinco em cinco minutos, contra toda a sanidade.»
Percebe-se na narrativa do protagonista a segurança de Fernando Venâncio, não apenas na condução da trama, revelando factos muito antes do que o leitor poderia sequer esperar – sem que com isso quebre o interesse pela história –, mas sobretudo na maneira como vai tendo mão nas próprias palavras. Fica-se com a ideia, não poucas vezes, de que a insistência numa certa coloquialidade na narrativa de Ricardo, mais linha menos linha, conduzirá a atropelos irremediáveis. Mas não, o jornalista desportivo lá avança pelo livro, a toda a hora descobrindo maneira de se livrar de algum embaraço.
Já com Márcia, Ricardo não parece ter tanta sorte. Nem o telemóvel nem o e-mail lhe valem. As suas dúvidas são as do leitor, que inevitavelmente torce por ele. Ricardo procura a sua amada, e o livro até parece prometer melhor leitura se ele a encontrar. O jornalista vai ao novo reino do norte através de Espanha, como toda a gente, como se torna uso nas viagens de sul para norte e de norte para sul. Mas de Márcia nem sinal. No Reino de Portugal, Rodrigo Penhas é mesmo feito Dom Rodrigo, chegando ao trono. E Márcia, a namorada portuense de Ricardo Gralho? Até onde chegará ela? Descobre-se isso a meio de «El-Rei no Porto», sem que nada apele a que se pare por aí a leitura. Mas a desilusão dessa descoberta, a grande desilusão de Ricardo, não há-de derrotar tão cedo a esperança de que o amor talvez possa triunfar. Afinal, ainda faltará muito livro nessa altura. E os dois países terão de entender-se. Ironicamente, será o futebol o pretexto para o primeiro reencontro entre o norte e o sul.
Livro: «El-Rei no Porto», de Fernando Venâncio (Edições Asa, 171 pp.)
Portugal cortado ao meio
O segundo romance de Fernando Venâncio tem Santa Maria da Feira como capital política de uma jovem monarquia, o Reino de Portugal. Nas terras do sul fica a república do costume, mais pequena, mas a do costume.
Não tem sido fértil a ficção portuguesa na exploração de cenários de grandes convulsões sociais ou políticas. Talvez porque a própria pacatez do nosso país não leve a que se pense muito no tema. Daí alguma surpresa quando se entra na leitura de «El-Rei no Porto», o segundo romance de Fernando Venâncio, que conta uma história de amor num Portugal que acaba por dividir-se em dois países. A ideia não era nova, o autor já a tinha anunciado aos quatro ventos em 1988, numa crónica publicada no «Jornal de Letras». Aí, oferecia-a a quem a quisesse aproveitar, não para fazer uma revolução, mas para escrever um livro, ou fazer um filme ou uma série de televisão. «Mas ninguém reagiu» – lamenta-se numa nota final a «El-Rei no Porto». Acrescentando depois: «Doze anos não bastaram para que alguém chamasse seu a tamanho tesouro...»
Admite-se a Fernando Venâncio a expressão «tamanho tesouro», porque de facto a trama de um romance que corte Portugal ao meio é sem dúvida uma boa ideia, muito boa mesmo, embora talvez não deva ser levada muito a sério fora da ficção. Quanto à sua concretização, ainda na ficção, já se vê, que é o que para aqui interessa, isso será outra história. E difícil, bem difícil, o que por certo explica o facto de ninguém se ter metido em aventuras depois da crónica de 1988. Lá teve assim o próprio Fernando Venâncio de arregaçar as mangas e pôr mãos à obra noutras circunstâncias, por certo bem diferentes das que lhe permitiram chegar à ideia.
E então apareceu o romance que corta Portugal ao meio, arranjando uma monarquia a norte e uma república a sul. O Reino de Portugal, com o coração no Porto e a capital política em Santa Maria da Feira, e Portugal, ainda e sempre com tudo concentrado em Lisboa. A trama passa-se no século XXI, presume-se que nos primeiros anos. O narrador é Ricardo Gralho, um jornalista desportivo de Lisboa que tem no Porto a sua namorada, a jovem Márcia. Ricardo conta a certa altura: «A 10 de Abril, na noite das eleições, foi o terror. Matilde Laborim ganhava por 54% dos votos. Só que nove décimos deles vinham de a sul do Mondego. Os 46% que Rodrigo Penhas reuniu, couberam-lhe praticamente só na metade norte. Tudo graças a uma formidável mobilização no Sul, e a uma suficiente, mas ainda hoje inexplicada, falta de comparência a Norte.» Talvez não tenha sido inocente essa falta de comparência, capaz de deixar o nortenho Rodrigo Penhas fora do palácio de Belém. Os autarcas do norte, um verdadeiro poder, não pareciam muito afeitos à ideia de um presidente a mandar neles, mesmo que enviado do Porto para Lisboa. Um rei feito apenas à sua medida haveria de servi-los melhor.
Quando a nova presidente visita o Porto, na véspera de um Boavista – Sporting ainda para o campeonato do país unido, a cidade do derrotado Rodrigo recebe-a com «os rostos fechados, as figas à socapa, e por isso tão decepcionantes...» Chamam-lhe «a Moura». O mal-estar não é mais do que o prenúncio da guerra, que não tardará a rebentar. «As imagens precipitam-se, amontoam-se, repetem-se, estão lá todos, a RTP, a CNN, outros vão chegando. Por Madrid, por Rabat. Há uma guerra, outra guerra, na Europa? Poça, há uma guerra no meu país. Os americanos e a SIC arranjaram cada um seu helicóptero...»
Conta ainda Ricardo Gralho: «A coisa estragou-se, se bem percebi, numa saída da auto-estrada, junto a Pombal, quando os tanques do Norte ensaiavam um envolvimento, um romper das linhas, onde é que a gente já ouviu tais termos. Uma coluna dos nossos tentou fazer-lhes alto, diz-se que a bem, 'numa tentativa de chamar à razão o inimigo', estamos a tornar-nos eloquentes. Foi pior. Fomos mal percebidos. Alguém do outro lado fez fogo, talvez por pânico, com a razão à deriva. Eram seis e quarenta da tarde, estava eu a tentar falar à Márcia, de cinco em cinco minutos, contra toda a sanidade.»
Percebe-se na narrativa do protagonista a segurança de Fernando Venâncio, não apenas na condução da trama, revelando factos muito antes do que o leitor poderia sequer esperar – sem que com isso quebre o interesse pela história –, mas sobretudo na maneira como vai tendo mão nas próprias palavras. Fica-se com a ideia, não poucas vezes, de que a insistência numa certa coloquialidade na narrativa de Ricardo, mais linha menos linha, conduzirá a atropelos irremediáveis. Mas não, o jornalista desportivo lá avança pelo livro, a toda a hora descobrindo maneira de se livrar de algum embaraço.
Já com Márcia, Ricardo não parece ter tanta sorte. Nem o telemóvel nem o e-mail lhe valem. As suas dúvidas são as do leitor, que inevitavelmente torce por ele. Ricardo procura a sua amada, e o livro até parece prometer melhor leitura se ele a encontrar. O jornalista vai ao novo reino do norte através de Espanha, como toda a gente, como se torna uso nas viagens de sul para norte e de norte para sul. Mas de Márcia nem sinal. No Reino de Portugal, Rodrigo Penhas é mesmo feito Dom Rodrigo, chegando ao trono. E Márcia, a namorada portuense de Ricardo Gralho? Até onde chegará ela? Descobre-se isso a meio de «El-Rei no Porto», sem que nada apele a que se pare por aí a leitura. Mas a desilusão dessa descoberta, a grande desilusão de Ricardo, não há-de derrotar tão cedo a esperança de que o amor talvez possa triunfar. Afinal, ainda faltará muito livro nessa altura. E os dois países terão de entender-se. Ironicamente, será o futebol o pretexto para o primeiro reencontro entre o norte e o sul.
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