quarta-feira, 27 de setembro de 2006

Textos sobre livros - 3

Há dias li uma crítica arrasadora sobre o último romance de José António Saraiva, «As Herdeiras de Adriano Gentil» (Oficina do Livro). Saiu no suplemento «Mil Folhas», do jornal «Público». Eu tenho o livro em causa comigo; li as primeiras páginas e desisti, porque não aguentei mais do que essas primeiras páginas (umas cinco). De qualquer forma, como gostei do primeiro romance de Saraiva, «O Último Verão na Ria Formosa», aqui fica o texto que escrevi sobre ele (curiosamente, para o mesmo suplemento do «Público») no Verão de 2001.
Livro: «O Último Verão na Ria Formosa», de José António Saraiva (Publicações Dom Quixote, 260 pp.)

Labirinto de emoções

Muito mais do que na investigação da morte de um jovem, a trama do primeiro romance de José António Saraiva assenta numa teia obscura, insondável. Como quase todas as que têm a ver com as relações humanas.
Vá lá perceber-se por quê, nunca faltaram no mundo defensores da literatura como feudo de um grupo muito restrito. Defensores sempre atentos a invasões, e prontos para combatê-las até à última letra da última palavra. Actores, políticos, publicitários, mas sobretudo jornalistas (se calhar porque habitualmente escrevem), estão invariavelmente na calha para serem zurzidos se se meterem em aventuras literárias. Isto tudo, imagine-se, quando a própria literatura, vivendo muito dos chamados escritores-escritores, tem conhecido também grandes momentos à custa de invasões, seja de médicos, seja de advogados, seja de políticos, seja até, e tantas, tantas vezes, de jornalistas.
Parece ser este último caso o de José António Saraiva, director de um jornal, autor do romance «O Último Verão na Ria Formosa», um indiscutível bom momento. Sem ter história de relevo na ficção, decidiu escrever um romance e, sacrilégio maior, poderão dizer certos puristas, publicá-lo. Pois em boa hora o fez, presenteando um público vasto (até porque é uma figura bastante conhecida) com uma obra bem meritória.
O romance logo logo talvez não desperte a atenção. Ao percorrer-se as primeiras páginas, numa leitura transversal, pode chocar-nos com a sua estrutura, quase a lembrar um diário, e mais ainda com o tempo presente de boa parte do texto. Em manuais de escrita criativa, por vezes, vê-se defender que o uso do presente na literatura costuma ser associado a escritores menores. Talvez não seja uma ideia para levar muito a sério, até pelos inúmeros casos de grandes obras escritas no presente. Por esta também.
«O Último Verão na Ria Formosa» lê-se de um fôlego. Ao fim de poucas páginas, percebe-se o despropósito dos óbices iniciais, precisamente por redundarem, eles mesmo, em fonte de prazer para a leitura. Afinal, em última análise, é isso que interessa ao leitor de ficção: o prazer retirado da leitura. Também se lê «O Último Verão na Ria Formosa» com um sentimento de pena, porque à medida que as páginas avançam toma-se consciência de que em poucas horas sairemos de uma grande história. E que talvez nos mantenhamos a pensar nas personagens e no seu mundo ainda tão recente, de há vinte e cinco, trinta anos [a contar de 2001]. Tão recente, mas tão diferente do dos nossos dias. O Portugal do final do Estado Novo, que exerce o seu fascínio sobretudo porque agora é possível observá-lo de longe, a salvo dos desmandos da ditadura. E o Portugal dos anos imediatamente a seguir ao 25 de Abril.
José António Saraiva conseguiu um romance inteligente e com uma narrativa empolgante. A escrita é simples e com uma pontuação que parece ser apenas a estritamente necessária, confiando mais na disciplina de respiração do leitor do que no uso das vírgulas. Esta frugalidade quase faz lembrar a casa da personagem central. Já a profundidade psicológica chega por vezes a parecer imbatível. Apesar de se tratar de um primeiro romance, «O Último Verão na Ria Formosa» é um romance de alguém que já viveu e que já leu o suficiente para saber aquilo que deve apresentar aos potenciais leitores. E de alguém que já passou pela escrita para televisão (entre 1977 e 1980, chegou a ensiná-la na RTP); nota-se isso página a página, porque todas elas se apresentam como se nos fosse permitido estar a um canto, discretos, à espreita de cada cena.
Jacinto de Jesus é um médico beirão a exercer a actividade em Tavira. Anda pelos quarenta anos e ainda é solteiro. Foi a mãe, viúva e a viver numa aldeia da Beira Baixa, que lhe comprou o pijama que usa na noite em que tudo começa. «Está para se enfiar na cama quando o telefone toca. – Doutor Jacinto de Jesus? - interpela uma voz áspera, enérgica, antes de o médico ter podido dizer alguma coisa. – Sim, é o próprio... – Fala o sargento Faria, da GNR. Houve um acidente aqui na área. Um carro que se meteu na ria.»
No Verão, Jacinto substitui o delegado de saúde local, enquanto este goza férias, de modo que é ele que passa a certidão de óbito de um jovem encontrado morto no interior do carro. Escreve «Afogamento» na certidão, mas há-de começar a ter suspeitas de que não foi isso que aconteceu. Decide então investigar, não por simples curiosidade, mas por reencontrar uma mulher cuja visão numa esplanada de Tavira o deixara fascinado. «Um grito agudo soa na noite como um uivo e Mariana Mendes lança-se nos braços de Jacinto. – Desculpe – diz ela ao fim de alguns momentos, sem olhar para o médico. – É o meu filho – explica numa voz rouca, arrastada, endireitando-se lentamente e procurando recuperar a compostura. Então ele reconhece-a.»
Não tardará a que a história se embrenhe por um labirinto de emoções, com todos os seus mistérios. Muito mais do que na investigação de uma morte, seguindo modelos banais do romance policial, «O Último Verão na Ria Formosa» assenta numa teia obscura, insondável, como quase todas as que têm a ver com as relações humanas. A investigação nunca passa de um conjunto de suposições, que como se irá descobrindo não são apenas as do médico Jacinto de Jesus...
«O Último Verão na Ria Formosa» é a primeira experiência de José António Saraiva na literatura de ficção. Numa entrevista, questionado sobre o seu futuro como escritor, disse que depois do primeiro romance não contava meter-se a fazer outro. Haverá por certo muita gente a lamentar.

Nota de agora: o que eu escrevi no último parágrafo perdeu entretanto a vaidade; José António Saraiva, como se sabe, já escreveu mais dois romances e inclusive disse numa entrevista ao jornal que então dirigia que tinha esperanças de vir a ganhar o Prémio Nobel da Literatura.

1 comentário:

Anónimo disse...

Essa crítica arrasadora no Mil Folhas sobre "as herdeiras de adriano gentil" é vergonhosa e infame, porque este é um grande livro que se lê de uma penada -

simples, bem escrito e apelativo-!
E não se pode deixar de ler "Jardim Colonial"

Seve