Outras histórias

Nesta página pode ser lido na íntegra o meu livro de histórias «Políticos, Esses Animais». Dezasseis histórias portuguesas, seleccionadas entre as que escrevi nos últimos anos para jornais e revistas.












POLÍTICOS, ESSES ANIMAIS
e outras histórias portuguesas



 António Manuel Venda






«Um intelectual escreveu, ao nascer o seu filho: As famílias, quando nasce um filho, desejam que ele seja inteligente. Eu, através da erudição, tendo arruinado a minha vida toda, desejo apenas que a criança se revele ignorante e estúpida. Então ela coroará a sua vida tranquila, tornando-se um Ministro de Estado.»
Confucio





As histórias: 
- Políticos, esses animais
- Pelo fim da manhã
- Os Pachecos
- O meu golpe demasiado azul
- «Cuidadinho, Isidro!»
- Só que até lá…
- Surpresas de Lisboa
- Isso de receber um prémio
- O minuto do Drácula
- Que fazer de um cruzamento sem fantasmas?
- Vizinhos, mas de ao pé de casa
- Fomos a votos
- A tasca do professor Carvalho Rodrigues
- Dog story
- Uma onda, talvez
- Um dia sem o Mercedes









Políticos, esses animais

Conheci em tempos (creio que em 1998) um ex-presidente de câmara destronado à tangente nas eleições anteriores por uma candidata estreante. Tinha estado no cargo para cima de vinte anos, os últimos dos quais acumulando com a presidência da junta metropolitana da sua área. Numa das reuniões que tivemos estava também presente um ex-secretário de Estado – e futuro, embora na altura eu não soubesse –, ex esse que tinha para com o antigo autarca uma reverência que achei digna de espanto. Tratava-o inclusive por «senhor presidente», coisa que ainda me fez pensar se a certa altura não surgiria alguma retribuição do género «muito bem, senhor secretário de Estado». Isso, contudo, não aconteceu, e inclusive o homem derrotado pela estreante deixou-me a ideia de não ser muito dado a imitações. Aliás, se fôssemos a ligar à roupa, por exemplo, ele distinguia-se logo; era o único que não tinha gravata, como parecia ser moda no seu partido, e esse pormenor se calhar até me deixava mais mal a mim – e ao ex e futuro secretário de Estado – do que a ele, que parecia completamente à vontade. Teria dispensado o artefacto com a saída da câmara? Ou a dispensa seria algo já de muitos anos? Eu tinha-o visto poucas vezes, apenas na televisão e em jornais, e a verdade é que nunca tinha ligado à sua indumentária habitual. O que logo me vinha à cabeça ao ouvir o nome do homem não era a forma como se vestia, era antes uma expressão com que a ele se referiam: «um dinossauro do poder local».
Sempre associei a palavra «dinossauro» ao temível Tyrannosaurus Rex, o maior carnívoro terrestre de que até hoje foram encontrados vestígios. Segundo informam alguns compêndios, e também a Internet, era um bicho assustador, com uma cabeça que ultrapassava um metro de comprimento, e dispunha de meia centena de dentes bem afiados, alguns chegando aos vinte centímetros. Enfim, era uma autêntica máquina de matar e de retraçar. Na posse destas informações, claro que ao encontrar alguém a quem chamavam «dinossauro do poder», ainda que «local», compreende-se que eu não conseguisse evitar certos temores. Mas no caso não se justificaram, porque o ex-presidente de câmara revelou ser uma pessoa bastante afável.
Aliás, pensando melhor, talvez a questão nem tivesse a ver com o verbo justificar, porque ao falar-se de «dinossauros», não de toda a política mas apenas do «poder local», isso não obriga necessariamente a que seja no mau sentido. A expressão até costuma ser utilizada para melhor ilustrar o longo tempo que determinadas pessoas estão nos cargos, e algumas, sabemo-lo bem, estão desde a pré-história da democracia portuguesa, que decorreu lá pela segunda metade da década de 1970. O facto de alguém ser tratado por «dinossauro» não implica necessariamente comportamentos reprováveis, de caciquismo ou até de tendência para falcatruas e cambalachos, por exemplo. Os eleitores podem ter sido, digamos assim, obrigados a gostar da pessoa, mas também podem ter gostado livremente. Ou seja, a expressão «dinossauro do poder local» acaba em determinados casos – não sei se muitos se poucos – por traduzir-se num herbívoro e não no sanguinário Rex. Talvez seja mais o Brachiosaurus, um pachorrento gigante que passava a maior parte do dia a comer folhas de coníferas, que pelos vistos eram as suas árvores preferidas. Calcula-se que bastava duas toneladas de folhas por dia para o pôr de bom humor. A confirmar esta ideia, o meu encontro com aquele ex-autarca, um «dinossauro do poder local» que se revelou uma simpatia de pessoa.
Já para a política em geral não é tão comum o uso do termo «dinossauro». Aí vai-se mais pelas generalizações, chamando «animal» (nunca «bicho») a quem se considera como sendo um verdadeiro político. E faz-se isso sempre no bom sentido, ou seja, pressupondo que a pessoa em causa conhece o mundo da política e vive para ela – e dela, já agora, ainda que não ande lá apenas a tratar da sua vidinha. Enfim, respira política como os poetas respiram poesia, ou como os economistas respiram nem sei bem o quê (mas alguma coisa há-de ser). O «animal político», o verdadeiro, não o de peluche, obviamente, é visto assim. Honesto, com objectivos elevados, capaz de ver mais longe do que os outros, pensando globalmente, na comunidade e não apenas em si próprio. Às vezes faz-se confusão em relação a certos políticos, chamando-lhes erradamente «animais», pelas suas múltiplas artimanhas para singrarem na actividade, mas para esses tal terminologia não é adequada. São apenas «sobreviventes» e de cada um deles para usar o termo «animal» só se poderá dizer «é um grande animal», ou até «é uma besta» (ou, se quisermos especificar mesmo o animal, «é um porco», ou «é uma vaca», ou «uma cabra», no caso de se tratar de uma mulher). Nunca «é um animal político».
Outra variante que apareceu na política, ou entre os políticos, tem a ver com a crítica, que não implica necessariamente um julgamento negativo. Crítica é uma análise fundamentada, que pode ser boa ou má; os poderes do vulgo é que levaram o termo a suscitar uma certa carga negativa assim que é pronunciado. Talvez até por isso seja importante determo-nos nessa vertente, a dos aspectos negativos, porque afinal uma das características da política, provavelmente a primeira, é dizer mal. E, além disso, o lado positivo já foi sobejamente referido («é um dinossauro do poder local», «é um animal político»). Uma das manias que já notei na política, como auxiliar da actividade de dizer mal de adversários – e não raras vezes de companheiros –, é a da associação de adjectivos e substantivos nada inocentes a palavras como «político», «política» ou «politicamente» e a expressões como «em termos políticos» ou «politicamente falando», ou mesmo «numa perspectiva política». Entre outras. Veja-se os seguintes exemplos, com semelhanças ao que por vezes circula na comunicação social: «Politicamente cobarde»; «Em termos políticos, é uma fraude»; «Tem uma actuação política ignóbil»; «Não está a ser politicamente honesto»; «Trata-se, sem dúvida, de um camaleão, isto em termos políticos»; «Um autêntico assassino, politicamente falando»; «Um perigoso pirómano da política»; «Uma sanguessuga política»; «Tem ideias de uma pobreza política gritante»; «Numa perspectiva política, um ladrão»; «Politicamente irresponsável»; «De baixo carácter político»… E creio que basta. Já o «pára-quedista», o «prestidigitador», a «amélia» e o «tachista», por exemplo, não costumam requerer acompanhamento, assim como estranhamente não o tiveram «barata tonta», «mosca morta», «picareta falante» e «adiantado mental». Pelo contrário, «deserdado», «dependente» e «desempregado» tiveram («deserdado da política», «político-dependente», «desempregado da política»). E «boy» não teve, ao contrário do que julgo deveria acontecer com «boi», como adiante referirei.
A ajuda de termos ou expressões bastante simples permite dar a volta às coisas e usar o «assassino», o «ladrão», o «cobarde», a «sanguessuga» e outros. Curiosamente, os animais até não são utilizados de uma forma insistente por cá. No Brasil, por exemplo, imagino que seja bem diferente, mas dentro das nossas fronteiras nunca dei por coisas como «gato político» («rato» já ouvi, «rato da política»), «urso, em termos políticos», «politicamente, um boi» ou «cão político», embora já tenha ouvido referências a «rafeiro político», o que até é compreensível. Também não dei por «cobra», «serpente» ou «cascavel». Nem «abutre», nem «gavião», tudo «político». Esta falta de insistência, provavelmente, é apenas fruto do acaso, ou então não é nada disso e eu é que nunca prestei a devida atenção ao que por cá se vai dizendo e escrevendo. Com tantos bichos, sempre que surja a oportunidade, sabe-se lá se não vêm mesmo à baila. Nem que seja um de cada vez. O escaravelho, por exemplo, que para nós é um bicho repelente, embora no antigo Egipto tivesse um carácter sagrado (nos desenhos animados da série «Abelha Maia», lembro-me de que havia um que passava a vida a empurrar bolas de estrume de um lado para o outro). E a doninha, que não é nada bem vista, assim como o furão, que tirando alguns caçadores poucos adeptos consegue juntar. Aliás, o furão já é utilizado por um programa de televisão, embora apenas para nome de um boneco inspirado num político.
Com o recurso aos artifícios linguísticos, parece que ninguém se ofende, ou pelo menos ninguém se mostra ofendido. Talvez seja até uma forma de evitar o avolumar de processos nos tribunais. Afinal, um dos problemas com que os políticos ainda não sabem como lidar, a par dos da saúde, da educação, da cultura, da economia, da segurança social, do ambiente, dos transportes, do desporto, do emprego, entre outros, é o da justiça. Distraído ou não, com tudo o que já ouvi, devo confessar que, além de mais bichos, espero por novos termos e novas expressões. Por exemplo, coisas tão portuguesas como «cabrão» ou «filho da puta», sempre a emparelharem com o arranjo da praxe – «O senhor, politicamente, é um grande cabrão»; «O senhor, em termos políticos, é um filho da puta, mas só em termos políticos, obviamente, porque a nível pessoal até o considero um bom amigo». A par do «assassino», do «pirómano» e da «sanguessuga», nada disto haveria de ficar muito deslocado. E depois ainda há aquela história das imunidades.


Pelo fim da manhã

Foi pelo fim da manhã; uma manhã de Fevereiro de 1968, enquanto decorria mais uma reunião do executivo da câmara, em Monchique. Vivia-se o tempo pachorrento do costume, numa terra oficialmente despreocupada com as guerras de África, salvo nas casas de quem nessas guerras tinha alguém. Por muitas que fossem, as casas, nelas sofria-se em silêncio com os tormentos da incerteza. A bem, ao que se dizia, da nação. Pouco antes do meio-dia, ainda com vários assuntos por discutir, alguém interrompeu a reunião e chamou o presidente de parte. Sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido, posto o que ele voltou para o lugar, mas só para avisar de que tinha de ir rapidamente para o hospital. Voltaria assim que pudesse, mas o mais certo era só se despachar depois do almoço.
Da câmara ao hospital a distância não era muita, cerca de um quilómetro. Dificilmente poderia ser mais, numa pequena vila de província do estado novo português, bem no interior do Algarve. Um estado com um ditador velho, sempre pacóvio, maldoso, cínico e decadente, ainda que longe de imaginar que mais mês menos mês haveria de se estampar com a própria cadeira. Acabou por acontecer em Setembro, de noite. Transportado numa limusina negra, pelo meio do trânsito desordenado de Lisboa, foi mandado parar pelo sinaleiro no Cais do Sodré. Ao lado do condutor ia um detestável figurão chamado Fernando Eduardo da Silva Pais, o director da PIDE, a polícia política do regime. Assim que o viu, o sinaleiro pareceu ficar sem voz.
– Avance! Avance! – terá ordenado Silva Pais.
E o motorista conduziu a alta velocidade para o Hospital de S. José, o primeiro poiso do estampado Salazar antes da convalescença na clínica da Cruz Vermelha, em Benfica. Haveria de morrer dois anos depois, pensando que continuava como presidente do conselho.
Em Monchique, a caminho do hospital onde ia nascer mais um bebé, naquele final de manhã de Fevereiro de 1968, o presidente da câmara também conduzia depressa. Mas ninguém lhe fez sinal para parar. Ia num Fiat, um carro dele, não do Estado, que ser presidente de câmara, nomeado pelo governador civil, ainda não dava para grandes luxos. Talvez alguns anos depois… O presidente ganhava a vida como médico, de manhã quase sempre no hospital, onde era o director, e à tarde em casa a dar consultas particulares. A presidência da câmara tinha-lhe sido entregue por se tratar de uma das figuras mais prestigiadas da terra.
Quando chegou ao hospital, estava na hora para o parto. Era para isso que o tinham chamado. Pouco passava do meio-dia. A mulher tinha chegado na noite anterior, indo logo para o quarto onde funcionava a maternidade. Ainda haveria de ficar mais três ou quatro dias no hospital, mas já num dos quartos particulares. O presidente da câmara por pouco não chegava a tempo, mas ainda fez o parto, com as enfermeiras a assistirem. Tudo acabou em bem por volta do meio-dia e meia e o presidente da câmara pôde ir dizer ao homem que aguardava à porta que tinha mais um menino. Só já depois da uma é que deixou o hospital.
Até essa altura, o presidente da câmara ficou a acompanhar o trabalho das enfermeiras com o bebé. Não sabia bem se ainda se justificava passar pela câmara, para a continuação da reunião do executivo. Os outros elementos, provavelmente, tinham aproveitado para almoçar. Se continuassem da parte da tarde e despachassem as coisas cedo, ainda poderia ir para casa a tempo de atender alguns doentes. Aquele parto tinha-lhe complicado a agenda, assim como as dos colegas na câmara. Mas no pachorrento tempo de 1968, ainda por cima na serra algarvia, a velocidade da vida não era muita. Tudo haveria de se arranjar.
O presidente da câmara, mesmo sem saber bem o que fazer, não dava mostras de estar preocupado. E o recém-nascido, no quarto, também não. Haveriam de passar muitos anos até ele começar a perceber certas coisas.
Terá sido algum bebé importante? Para originar tanta labuta, seria bem possível. Mas não. Pelo fim daquela manhã de Fevereiro de 1968, no hospital de Monchique, nasceu um bebé que depois haveria de ser registado com o nome de António. Era eu. Apenas eu.


Os Pachecos

Talvez seja um sinal dos tempos, e especialmente dos tempos portugueses, mas a verdade é que muitas vezes assistimos a analogias entre o presente que por cá se vive e o passado de há mais de 100 anos que Eça de Queiroz experimentou e sobre o qual tanto escreveu. O Conde d’Abranhos, o Pacheco e tantos outros não hesitam quando se trata de sair-nos ao caminho, mesmo que não andemos ocupados com a leitura de alguma obra de um dos autores de «As Farpas». Vejamos o caso do Pacheco, uma personagem que aparece em «A Correspondência de Fradique Mendes»
O Pacheco representa alguém sem valor intelectual, uma nulidade, um tonto que só obtém destaque porque vive rodeado de medíocres. Já diz um ditado que em terra de cegos quem tem olho é rei; bom, um Pacheco é sempre o rei na terra dos parvos, sendo que tais monarquias chegam mesmo a contar com diversos reis, tipo harém, mas ao contrário, ou próximo disso. Em «A Correspondência de Fradique Mendes», lê-se a certa altura: «Pacheco não deu ao seu país nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustre unicamente porque tinha um imenso talento (...). O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundidades de Pacheco! Constantemente ele atravessou a vida sobre eminências sociais: deputado, director-geral, ministro, governador de bancos, conselheiro de Estado, par, presidente do Conselho - Pacheco tudo foi, tudo teve, neste país que, de longe e a seus pés, o contemplava, assombrado com o seu imenso talento (...). A testa de Pacheco oferecia uma superfície larga e lustrosa. E muitas vezes, junto dele, conselheiros e directores-gerais balbuciavam maravilhados: - Nem é preciso mais! Basta ver aquela testa!»
Certa vez, ao ser criticado como Ministro do Reino, Pacheco respondeu a um deputado da oposição: «Ao ilustre deputado que me censura só tenho a dizer que, enquanto S. Exa., aí nessas bancadas, faz berreiro, eu aqui nesta cadeira, faço luz!» Pela pena de Fradique, Eça diz-nos: «Pacheco e Portugal, de resto, necessitam insubstituivelmente um do outro. Sem Portugal Pacheco não teria sido o que foi entre os homens; mas sem Pacheco Portugal não seria o que é entre as nações!» Portugal, de facto, deve muito a cada Pacheco que lhe saiu na rifa. E os Pachecos, todos sem excepção, por certo nunca terão agradecido o suficiente a generosidade desta terra.
Há meia dúzia de anos, num debate sobre a Internet, e incidindo no deserto legal que então caracterizava a chamada nova economia (será que entretanto esse deserto diminuiu?), um advogado de nome Manuel Lopes Rocha - aliás, um dos maiores especialistas portugueses em legislação relativa ao ciberespaço (bela palavra…) - justificava o facto de Portugal estar muito atrasado a nível europeu naquele domínio precisamente com o Pacheco criado por Eça. Dizia ele que «no nosso país não faltam, nunca faltaram e por certo nunca faltarão os célebres Pachecos» e que «então no Direito, ramo do saber que em Portugal alberga universidades ainda de tradição medieval, aí o melhor é nem falar». Segundo julguei perceber, a nossa grande moda, para o advogado, era quase como aquilo do «vá para fora cá dentro», só que com pequenas adaptações, tipo «falar da boca para fora só cá dentro», porque passada a fronteira a maior parte dos nossos representantes remetia-se ao silêncio, para os prejuízos não serem de monta, principalmente os pessoais. E então em Bruxelas, em Estrasburgo e no Luxemburgo... Enfim, tudo Pachecos, ou melhor, as representações portuguesas ocupadas por Pachecos.
Pode, é claro, perguntar-se o seguinte… Mas como é que é? Desses Pachecos, nunca deve ter havido um único que não levasse para casa ao fim do mês uns bons milhares de euros, fora os extras… Às vezes, até me sinto tentado a acreditar que, na verdade, o mundo – enfim, Portugal – pertence aos Pachecos. Aliás, é um pouco a velha teoria de que o sucesso chega facilmente aos artolas, aos pobres de espírito e aos lambe-notas, perdão, aos lambe-botas. Mas adiante…
O meu amigo Tiago Salazar uma vez escreveu um artigo chamado «A mentira é o pão-nosso de cada dia». Nem vale a pena referir quem por lá se espojava, o curioso será copiar uma citação de Confucio, que aparecia logo a abrir. «Um intelectual escreveu, ao nascer o seu filho: As famílias, quando nasce um filho, desejam que ele seja inteligente. Eu, através da erudição, tendo arruinado a minha vida toda, desejo apenas que a criança se revele ignorante e estúpida. Então ela coroará a sua vida tranquila, tornando-se um Ministro de Estado.» Haverá alguma palavra chinesa para o nosso Pacheco? Se bem que isto dos nomes seja tudo muito relativo... O mesmo Tiago dizia-me pela mesma altura em que escreveu o artigo: «Vê lá, sou jornalista e sempre assinei Tiago Salazar. Agora já não posso assinar de forma diferente, porque é assim que sou conhecido.» Isto porque carregar no nome o Salazar às vezes é problemático, principalmente depois do que por cá aconteceu nos tempos vergonhosos do Estado Novo. Eu, a ver se ajudava, perguntei-lhe o nome completo. E ele disse-me que era Tiago Nuno e mais uns apelidos, inclusive Gomes. Arranjei-lhe logo uma solução para assinar os artigos: Nuno Gomes. Mas ele não aceitou, nem mesmo conhecendo o sucesso do ponta-de-lança do Benfica e da selecção nacional, que ainda por cima nessa altura vinha de marcar quatro golos no «Euro 2000» (a prova na qual tivemos a sorte de o desastrado Pauleta estar impedido de jogar na abertura, dando lugar ao então jovem benfiquista, que depois haveria de se transferir para o futebol italiano).
A culpa talvez seja do velho Eça. Foi arranjar o Pacheco para ilustrar os chicos-espertos que sempre caracterizaram as nossas urbes e alguns dos nossos campos e depois deu no que deu. Ainda pelos tempos do desabafo do Tiago, Vasco Pulido Valente, numa crónica sobre o então líder do PSD, Durão Barroso – que ainda não tinha chegado nem a primeiro-ministro –, escrevia: «Isto soa a Eça (...). Barroso era um praticante exímio de uma das mais geralmente estimadas, e meritórias, modalidades da política portuguesa: administrar o silêncio. Eu nunca percebi como se administrava o silêncio, excepto estando calado, o que, na minha inconsciência, supunha fácil. Mas parece que o exercício exige talento. Barroso fora um ministro medíocre e o autor do irresponsável acordo de Bicesse. Nada o recomendava para nada, até ao dia em que meteu a viola no saco. Um acto providencial, porque dali em diante toda a gente começou logo a suspeitar [de] que tanta e tão fina mudez escondia com certeza, além de portentosas virtudes, um plano infalível para a salvação do partido e da pátria. (...) Infelizmente Barroso cometeu o erro imenso de abrir a boca, e em seis meses o céu caiu. Um infortúnio que, aliás, não perturbou o PSD. Por sorte, já havia outro silêncio - estrondoso, prenhe, fulgurante, que o doutor Dias Loureiro administrava no sector privado. E que saiu dele, na hora em que finalmente o messias se mostrou à turba? Uma entrevista (...) de um senhor pomposo, sem uma ideia na cabeça.» Durão Barroso e Dias Loureiro, para Vasco Pulido Valente, segundo julguei perceber, eram Pachecos.
Mas, no fundo, isso de alguém ser Pacheco é discutível. Mesmo o próprio nome Pacheco. E se Eça se tivesse lembrado de Valente? Ou de Pulido? Por exemplo, eu assisti uma vez a uma conferência de Durão Barroso enquanto líder da oposição - o mesmo Durão Barroso que várias vezes tinha visto fazer figuras tristes – e precisamente no local onde um dos principais membros do governo de António Guterres fez uma figura de urso difícil de igualar, ele, Barroso, um indiscutível Pacheco para Vasco Pulido Valente, até que se saiu mais ou menos. Um amigo, antigo Capitão de Abril e na altura da conferência a trabalhar como gestor numa grande empresa portuguesa, dizia-me uns dias depois: «Aquele tipo, ministro ainda por cima, é o que lá na minha terra, ao pé de Leiria, se costuma chamar um burgesso!» Eu perguntei-lhe: «Então e o Durão?» E ele respondeu-me: «Bem, esse, a falar para a malta das empresas, até se desenrasca!»
Nestes reinos todos, a verdade é que não há mesmo nada que não seja discutível. Um «tipo» que para aquele meu amigo «a falar para a malta das empresas» até se desenrascava, para Vasco Pulido Valente era um Pacheco dos de Eça. Lembro-me de que na altura dei comigo a matutar no que pensaria Vasco Pulido Valente da «malta das empresas», se é que sabia o que isso era. Não cheguei a conclusão nenhuma. Nem depois, quando eu próprio me questionei sobre Durão Barroso; nada de especial, apenas se alguma vez ele conseguiria chegar a Pacheco Pereira.


O meu golpe demasiado azul

Lembro-me perfeitamente do dia 25 de Abril de 1974, apesar de ter então apenas seis anos. Melhor, se alguém me aparecer com a velha pergunta de onde é que estava no 25 de Abril, não terei dificuldade em responder, ainda que nessa altura nem sequer andasse na escola. No dia 25 de Abril de 1974, uma quinta-feira, fui para a casa da minha avó materna; fui logo de manhã. Das conversas que escutava à minha volta, ia percebendo que algo de estranho se passava, mas não entendia o que era. Para mim, todas as figuras que dominavam o país, fosse lá como fosse, pouco significavam. Uma vez, creio que um ano ou dois antes, tinha dado de caras com o presidente da República, Américo Tomás, depois de sair da missa; foi num domingo de manhã. O velhote ia a descer uma das ruas de Monchique, perante a multidão embasbacada e submissa, menos preocupada com ele do que com os guardas que não hesitavam em distribuir encontrões e o que mais fosse necessário. No meio de tanto burburinho, ainda me apertou a mão, enquanto dizia:
– Menino, menino.
Fiquei todo cheio de orgulho, e só daí a alguns anos é que percebi o quanto tal orgulho era ridículo. Não haveria de demorar muito, no entanto, para que num outro domingo, de novo à saída da missa, mas então já preparado para ir à catequese, dar de caras com o Mário Soares à frente de uma multidão ululante, com pessoas de punho fechado e com ar de poucos amigos. Meteram-me medo, mais ainda do que os guardas dos encontrões, que naquele espaço de dois ou três anos haviam desaparecido misteriosamente. Tudo ao contrário do velho presidente-almirante, que tinha sempre ar de não ser homem para fazer mal nem a uma mosca. Só mais tarde percebi que estava enganado, que o presidente do ditador Salazar não era tão bom como isso, assim como o Mário Soares também era capaz de não ser o diabo que a ira que transparecia dos seus gritos e do seu semblante, pelas ruas de Monchique, deixava adivinhar. Apesar de também não ser nenhum anjinho que aparecia ao domingo, pelo fim da manhã, em vilas do interior de Portugal.
O dia 25 de Abril de 1974, o dia do golpe de Estado, como eu ouvia as pessoas dizerem à minha volta, não foi lá muito bom para mim. Nas andanças pelos campos em redor da casa da minha avó, armado de faca e pau para melhor parecer um guerreiro, acabei por estragar as coisas logo a seguir ao almoço. Nessa altura, se calhar, o substituto de Salazar, Marcello Caetano, ainda tinha alguma esperança de conter o golpe para dar cabo do resto do país em mais meia-dúzia de anos. Ou então já tinha perdido a esperança completamente; isto se é que ele alguma vez soube o significado dessa palavra, que o mais certo é nem vir nos compêndios de Direito de agora, quanto mais nos daquela altura, muitos deles ainda de uso corrente. A imagem com que fiquei de Caetano é a de um homem a preto e branco, como a maioria dos homens do regime só de homens daquela altura, e com uns óculos de aros bem espessos e escuros. A culpa podia muito bem ser da televisão, igualmente a preto e branco, mas não. Eles eram mesmo assim, a preto e branco, ou cinzentos, e isso pude eu constatar na altura em que o velho Tomás me apertou a mão (Tomás, por vezes, até tinha a mania de andar com a farda branca da marinha, mas daquela vez estava de fato preto). Era a forma como todos se vestiam, tal como pensavam e agiam, a preto e branco, ou quando muito em tons de cinzento. Creio mesmo que naquele mundo kafkiano a televisão a cores, se existisse, não iria causar grande transformação aos nossos olhos. As imagens haveriam de colorir-se muito pouco ao focar os mandantes, fossem eles Salazar, Caetano, Tomás ou até os que mais tarde regressaram vestidos de cores garridas.
Mas voltando à minha odisseia pelos campos de batalha junto à casa da minha avó, não sei por quê nem como, se calhar porque não conseguia dar outro uso à faca, cortei-me no dedo polegar da mão esquerda. Fiz um golpe de quase uns dois centímetros, coisa que pode não parecer muito mas que comigo, com seis anos, deu para lágrimas, gritos e alguns pulos. O que acabou por me distrair foi o paralelismo que logo alguém me fez com o que acontecia em Lisboa. Eu, tal como os militares, também tinha feito um golpe. Tinha arranjado o meu próprio golpe. Daí que a meio da tarde – já com Marcello Caetano a dizer que se ia embora, mas para o tratarem com dignidade, e que o deixassem levar a biblioteca – eu andasse de um lado para o outro todo contente a mostrar o polegar ferido, como um precioso troféu.
À noite, em casa, ainda eu andava com a mão esquerda bem à vista, não a fazer sinal de que estava tudo bem, mas a mostrar o dedo. Não liguei à surpresa da apresentação na televisão dos senhores da Junta de Salvação Nacional, uma espécie de governo que ia assegurar a transição para aquilo a que chamavam democracia. Para mim, com seis anos, tanto se me dava, ainda por cima aparecendo eles também a preto e branco, num fundo cinzento. Se nem a PIDE, a polícia política do regime (com o sonso Caetano camuflada com o pomposo e enganador nome de Direcção-Geral de Segurança), alguma vez me tinha dado que pensar, não haveriam de ser aqueles artistas a ter essa honra, ainda por cima comandados por um velhote quase mais caquéctico do que Tomás, o tal que dizia «menino, menino» quando apertava a mão. Não me preocupei mesmo nada, nem com as desconfianças que eles geravam, porque a verdade é que mesmo sendo os substitutos dos maus, como se dizia, ninguém sabia o que iriam fazer. Ainda ouvi comentar que de entre os que apareciam no ecrã, se calhar, o único que se aproveitava mesmo era o locutor, o Fialho Gouveia, mas nem a isso dei importância. Continuava orgulhosamente a pensar no meu golpe, mas já um pouco preocupado, porque o dedo estava a ficar demasiado azul.


«Cuidadinho, Isidro!»

Há muitos anos, mesmo muitos anos, ainda eu era uma criança, li um livro de aventuras em que aparecia um velho marinheiro que tinha um corvo. Ao contrário de outros, que usavam um papagaio, ou uma arara, ou então dos que não usavam pássaro nenhum, aquele carregava invariavelmente o corvo no ombro direito. E o corvo ainda por cima falava, não com grande elevação retórica, mas mesmo assim com um desembaraço capaz de deixar algum transeunte mais conservador a dar voltas à cabeça para ver se entendia aquilo que pensava serem os descaminhos do mundo. Logo no início da trama o corvo não parecia ter muita justificação, mas à medida que as coisas avançavam o seu papel tornava-se compreensível. Era o danado, com a sua voz cavernosa, que avisava o velho marinheiro de nome Isidro de algum perigo que se aproximasse, fosse de que espécie fosse. O corvo era tão previdente que sempre que o dono puxava do maço de tabaco e do isqueiro dizia-lhe:
– Cuidadinho, Isidro, vê lá se engoles o cigarro!
Confesso que me irritava um pouco aquele espírito tão precavido, ainda por cima num pássaro. Já o velho marinheiro não se importava; se calhar até era por isso que se ia aguentando, depois de tantos perigos que tinha enfrentado por mares e oceanos. Ele lá sabia…
Ainda tenho o livro do corvo e do velho marinheiro numa das estantes do meu quarto de criança. Às vezes, quando lá entro e me ponho a ver as antigas coisas mais importantes da minha vida, muitas delas já consumidas pelos anos e pelos meus descuidos, dou com ele no meio das cadernetas de cromos de futebol e dos livros de cowboys. Podia deitá-lo fora, ou vendê-lo mais outras traquitanas a um feirante de velharias, mas nunca tive coragem. Não por grande amizade pelo corvo, ou pelo velho marinheiro Isidro, mas se calhar pela estranha sensação que começa a invadir-me sempre que penso em desfazer-me de qualquer coisa a que realmente cheguei a dar importância. Um livro ou uma camionetazinha de plástico, ou umas caricas com lusitanos desenhados, ou então aqueles guerreiros medievais com que costumava travar longas batalhas de desfecho imprevisível.
Um dia lembrei-me do corvo e do velho marinheiro Isidro. Não porque tivesse voltado ao meu quarto de criança, mas sim por uma notícia que li num jornal, ou melhor, pelo que soube depois, no seguimento dessa notícia. Havia tanto tempo que não pensava no corvo e no velho marinheiro... O jornal falava de uma estrela da televisão portuguesa, e também da rádio, nem mais nem menos do que o Júlio Isidro, que tinha sido internado de urgência com um problema de saúde. Devo dizer que o título da notícia me deixou um pouco alarmado, porque a ideia com que se ficava era a de que o coitado do Júlio Isidro estava com alguma doença muito grave; mas depois, ao ler o desenvolvimento, percebi que era só um problema no ombro. Tinha tido um pequeno acidente quando se aprestava para dar início a um programa de televisão, ao receber um conhecido cientista português, o professor Carvalho Rodrigues. «São uns exagerados, estes jornalistas», pensei. Só que daí a pouco ainda fiquei mais intrigado, porque dei de caras com outro jornal, a puxar para título de primeira página que o cientista tinha posto a estrela da televisão completamente KO. Bom, aquilo colocava as coisas noutros termos. Afinal, já não tinha sido o Júlio Isidro a tropeçar, mas sim a força do cientista a ajudá-lo a descolar da órbita do chão.
Mais tarde, foi a vez de a rádio entrar em acção, e logo com o próprio professor Carvalho Rodrigues a explicar o que tinha acontecido. Segundo a versão do cientista, o Júlio Isidro tinha-o convidado para ir a um programa da tarde, e antes de entrarem em estúdio, ele, Fernando Carvalho Rodrigues, tinha-lhe falado num projecto qualquer em que andava envolvido. Ora, o Júlio Isidro, com grande sentido de oportunidade, como se costuma dizer, tinha-se logo interessado, ao ponto de querer ir fazer uma reportagem no próprio local (ou, como também se costuma dizer, no terreno). E o professor Carvalho Rodrigues nem esteve com mas nem meio mas, aceitou sem pestanejar que uma equipa da televisão fosse filmar a coisa. Tanto que, em jeito de concordância, disse alegremente:
– Arrematado!
E ao mesmo tempo deu uma palmada no ombro da estrela, palmada essa também de concordância, sem saber que ia atingi-la precisamente no ponto mais fraco. Foi assim que o Júlio Isidro levantou voo.
Finalmente, tudo estava esclarecido para mim. Só não pude deixar de me lembrar do tal corvo prevenido que valia por dois, ou até mais, ao velho marinheiro Isidro. «Se o Júlio Isidro carregasse um pássaro assim ao ombro…», pensei. Decerto que teria evitado chatices com o cientista, cujas palmadas, por mais amigáveis que fossem, pelos vistos não eram nada de fiar. Ao ver aproximar o pai do primeiro satélite português, o corvo haveria de segredar logo ao ouvido da estrela da televisão: «Cuidadinho, Isidro, vê lá se evitas que ele te agarre!» Mas, infelizmente, tudo tinha sido diferente, por causa da falta do valioso pássaro.
E pensar eu que poucos dias antes do voo do Júlio Isidro estive em contacto com o professor Carvalho Rodrigues, por causa de um convite para uma conferência… Devo ter-me livrado de boa, porque fiz o convite por telefone, e ele aceitou também por telefone. Eu bem o ouvi dizer que estava arrematado, só que era do outro lado da linha, sem que me pudesse atingir com a terrível palmada de concordância. Assim, uns dias depois, quando tivemos a reunião preparatória da conferência, e mais tarde, durante a própria conferência, já não foi preciso nenhuma palmada, apenas uns cordiais apertos de mão. De forma que mesmo sem corvo lá me aguentei. Tive mais sorte do que o Júlio Isidro, a estrela da televisão, que pelos vistos quis tratar de tudo directamente, sem pensar que estava a falar com o cientista que concebeu o primeiro satélite português e, quem sabe, também ajudou no seu lançamento. Com uma potente palmada, daquelas que qualquer corvo, ou até outro pássaro, por menos previdente que fosse, haveria logo de adivinhar que ia mesmo arrancar a coisa da órbita do chão. Enfim, o mal menor, para o Júlio Isidro, bem entendido, é que não foi para tão longe como o satélite. Se calhar porque no caso dele se tratou de um lançamento de improviso, sem os anos de estudo que o PoSAT1 mereceu ao professor Carvalho Rodrigues. O melhor é nem me pôr a imaginar onde teria ido parar o Júlio Isidro, se também ele tivesse sido objecto de rigorosos cálculos.


Só que até lá...

No mundo nunca faltaram charlatães. A sua ciência, a dos charlatães, bem entendido, não a do mundo, que é muita, variada e sempre dada a evoluir, a ciência dos charlatães, dizia, é intemporal e para ela existem professores até de sobra. Existem, existiram e muitos outros hão-de sair com diploma – e em certos casos com louvor – das universidades da vida. É desta maneira que começa uma das fábulas de La Fontaine, chamada precisamente «O Charlatão». Quer dizer, não começa bem desta maneira, aqui tudo resulta de uma tradução muito livre, porque a verdade é que La Fontaine tinha por costume de escrita ser muito sintético, coisa que não o impedia de ser bem mais incisivo do que aqueles que como eu pecam quase sempre pelo excesso de palavras (ou melhor, até para me adaptar ao século XXI, pelo excesso de caracteres). Mas pronto, adiante... La Fontaine, mesmo parco nas palavras, deu muita vida às suas composições, e também um tom deveras bem disposto. Era um hábil narrador e malicioso quanto baste para conquistar leitores, quem sabe se até ao fim dos tempos (no caso, obviamente, de os tempos terem um fim marcado). Conseguiu libertar a moral de muitos dogmas, por vezes enraizados não se sabe bem em que serranias, e além disso enriqueceu os preceitos tradicionais com inúmeras reflexões e com uma grande experiência de vida.
A fábula «O Charlatão» trata de um atrevido mistificador que se comprometeu a ensinar a um burro a arte da retórica. Comprometeu-se perante o rei, não perante o burro, nem tão-pouco perante o dono, porque com esses dois, já se vê, o caso nem daria para La Fontaine escrever uma fábula. Era perante o rei o comprometimento, de forma que assim o caso tornava-se mais sério. A verdade é que o tal homem, o charlatão, jurou fazer do burro um brilhante orador, mas só ao fim de dez anos de aturados exercícios e também de alguma teoria, que fica sempre bem nos conteúdos programáticos, nem que seja só para fazer vista perante o rei. Como recompensa de tal tarefa, o homem recebeu logo à cabeça uma avultada soma em dinheiro. E pouco se importou com a ameaça da forca em que seria pendurado se no final do prazo não mostrasse ao soberano o seu êxito com o burro. Pelos vistos, escasseavam oradores na corte.
A moralidade da fábula é a seguinte: projectar coisas para prazos longos é um enorme erro, uma loucura. Porque até lá, até que chegue a data fixada, como diz o charlatão na fábula, «le roi, l'âne ou moi, nous mourrons» («o rei, o burro ou eu, um pelo menos há-de morrer», isto de novo em tradução muito livre).
Quando passei pela universidade, tive um professor de Gestão que se fartava de elogiar os japoneses porque, segundo assegurava, planeavam a duzentos e cinquenta anos. Não sei onde o homem foi descobrir semelhante coisa, mas a verdade é que a história do planeamento a duzentos e cinquenta anos era habitual nele. Provavelmente nunca tinha lido La Fontaine, ou se tinha guardava o facto só para si, sem sequer se arriscar a tecer uma crítica que fosse ao criador de fábulas.
O que diria esse tal professor de Gestão se ouvisse falar de uma história que alguns consultores precisamente de Gestão costumam contar sobre o longo prazo, uma história em que se diz que, afinal, o longo prazo não é mais do que dez minutos? Uma vez, no Algarve, um senhor – japonês, ainda por cima – respondeu exactamente assim a uma pergunta do jornalista António Pérez-Metello sobre o que era o longo prazo: «O longo prazo? Bem, isso são dez minutos!» Não se tratava de um japonês qualquer, um turista, por exemplo, a ver se torrava no calor algarvio. Era um antigo presidente da Sony, um senhor chamado Akio Morita, tido como um guru imagine-se de quê… Claro, de Gestão. Apesar de os anos terem ido passando, a resposta dos dez minutos para o longo prazo continua a ser citada com alguma frequência em certos meios, ou porque fica bem, ou porque se está a falar de coisas como a futuro ser já amanhã, ou vivermos não em tempos de turbulência mas sim de completa imprevisibilidade. Enfim, os consultores lá sabem, assim como o guru japonês sabia e o jornalista português, a partir daquele dia no Algarve, por certo também ficou a saber.
Mas se a ciência dos charlatães me faz lembrar do tal professor que tinha a mania do planeamento a longo prazo – «looooongo», como diz uma personagem de um conto que em tempos escrevi –, mais me faz ainda lembrar de certas figuras que em vez de se meterem a dar aulas enveredam pelos sempre destravados caminhos da política. Quando não acumulam, obviamente. Penso por vezes nessas figuras, assim como penso na fábula do charlatão. E tudo pelo ruído que continuamente muitas delas teimam em fazer. Prometendo, prometendo, sempre prometendo. Para o futuro. Como outras figuras antes terão feito, num passado cujo futuro terá sido precisamente o presente dos novos prometedores. Assim pode-se sempre fazer promessas. Para um futuro lá bem à frente, até sem teimosias de que o horizonte atinja os duzentos e cinquenta anos; às vezes, bastam sete ou oito para horizonte das promessas, sete ou oito anos, e para medida há também a opção de usar legislaturas. «O desafio que temos pela frente, e isto é um compromisso de honra, é para ser vencido até ao final da legislatura. Quanto ao outro desafio…»
Entretanto, o mundo, o nosso mundo, há-de seguir sempre aos pulos, mesmo que não avance muito. Se calhar não morremos todos até ao final da legislatura, só que até lá...


Surpresas de Lisboa

A entrada na faculdade representou uma grande mudança para mim. Talvez porque eu tivesse andado até essa altura relativamente despreocupado com a situação, acabei por não tomar logo de início as precauções que decorridas algumas semanas já me pareciam mais do que óbvias. No primeiro dia, ainda bem não entrava no edifício, dei de caras com os artolas das praxes. Eu nem me tinha lembrado de que eles existiam. Assim, completamente desprevenido, não consegui evitar que me pintassem a cara de verde e me enchessem o cabelo com creme de barbear e pasta de dentes. Ao princípio não sabia onde havia de me meter, só que depois comecei a ver outros iguais a mim e fui ganhando uma certa coragem. De qualquer forma, arrependi-me milhentas vezes de ter saído de casa de manhã como se fosse apenas mais um dia igual a tantos dos que até aí eu estava habituado.
Foi, na verdade, o meu primeiro grande choque em Lisboa, a primeira de uma longa série de surpresas. Eu ainda não conhecia bem a cidade. Pensando nas coisas agora, até me parece que tudo aconteceu, nem sei, talvez logo nos anos a seguir ao 25 de Abril. Mas foi bem depois… Nos dias de hoje, a comunicação social tudo desmistifica. Creio mesmo que será por essa sua influência crescente que se poderá combater a degradação em que tantas coisas vão continuando. Imagine-se o estado de impunidade em que viveríamos sem a comunicação social a servir de grande montra de misérias, injustiças e vergonhas do nosso dia-a-dia... Mesmo caindo em tantos exageros... Com a justiça que nem vemos, com o ensino a que podemos aspirar, com a saúde que em muitos casos nem sequer nos vai valendo, enfim, com o Estado incompetente, desinteressado e tantas vezes minado pela corrupção o melhor é nem pensar muito.
De facto, Lisboa não estava ainda desmistificada para mim, como agora por certo estará para um jovem recém-chegado. Eu acabava de entrar, no Outono de 1986, numa floresta cerrada. Virgem ou já explorada, eu nem me preocupava com isso, era bem cerrada e isso bastava-me como primeira ideia. O problema da alimentação também não me tinha preocupado grandemente até aí, mas acabou por colocar-se. Era preciso comer barato e, já agora, umas refeições de jeito e sem grandes rebaldarias pelo meio. De entre as cantinas de estudantes, acabei por descobrir uma perto de casa em que dava para comer mais ou menos e até um pouco descansado. De forma que ia lá muitas vezes jantar. Era a cantina da Faculdade de Ciências, sempre com gatos de um lado para o outro e com uma malta um bocado estranha, contudo bem menos incomodativa do que a tropa que nessa altura já começava a invadir os cursos de Gestão.
Uma vez, ainda nos primeiros tempos, fui mais cedo jantar, por isso demorei-me a fazer o percurso pela rua fora. Para minha grande surpresa, mais uma, cruzei-me com um político conhecido, António Guterres. Nessa altura ele não me parecia o tipo sorridente e bem-falante que acabaria por ser depois como primeiro-ministro. O que eu via na televisão, mesmo sendo a televisão de 1986, era um deputado em permanente guerra com tudo e com todos, quase ameaçando cuspir fogo pela boca a cada três palavras. Era a imagem que eu tinha de Guterres e que facilmente teria quem lhe visse as actuações em S. Bento. Nesse fim de tarde, porém, ao cruzar-me com ele, a caminho do jantar na cantina dos gatos, não me pareceu que fosse capaz de lançar chamas a partir das goelas. Caminhava pela rua fora, com passada curta e pachorrenta, provavelmente na direcção da sede do partido. Ia todo metido consigo próprio, com um sorrisinho mal disfarçado por baixo do bigode que ainda teimava em usar. Fiquei um bocado a pensar no que teria dado origem a tão grande metamorfose, mas depois disse para comigo que as coisas eram mesmo assim e apressei o passo em direcção à cantina, não fosse algum dos gatos ficar-me com o jantar.
No princípio, eu não tinha professores assim muito conhecidos, ao contrário do que esperava depois de algumas pessoas me terem dito que estava a entrar na melhor faculdade de Gestão do país, a par da Universidade Católica. Só ao fim de algum tempo é que me apareceram dois ou três de quem eu tinha ouvido falar, já bem depois de ter apanhado logo na cadeira de enquadramento de todo o curso com um senhor que costumava perguntar-se, quando estava mais declamativo, o que seria do mundo sem a burocracia. Se calhar, dizia ele a olhar para as caras de parvos dos alunos, os aviões, ali bem perto, no aeroporto da Portela, nem haveriam de conseguir levantar voo. Mas um dia – já ia o curso no terceiro ano – chegou alguém que aparecia nos jornais e na televisão, ainda que estivesse então apenas a iniciar o caminho da fama. Dava as aulas teóricas de «Economia Portuguesa» a todas as turmas, num auditório sempre com duas ou três centenas de desgraçados, e além disso assegurava as aulas práticas da minha turma, que tinha uns 30 alunos. Chamava-se Eduardo Ferro Rodrigues e haveria de chegar a ministro acompanhando Guterres no governo, e ainda por cima sempre bem colocado nas sondagens; antes da desgraça, é claro. Já nessa altura era simpático, ao contrário do Guterres da televisão e, estranhamente, à semelhança do Guterres que caminhava pelas ruas de Lisboa. Destoava um pouco da maioria que nos ia aparecendo, às vezes até de pára-quedas. Ia num Opel Kadett branco, dispensando fato e gravata e quase sempre com o jornal «A Bola» debaixo do braço. Faltava pouco, e quando isso acontecia arranjava uma aula suplementar. Era, por exemplo, o oposto de um cromo do primeiro ano, de «Contabilidade Geral», um sujeito pequenino e com cara de artista de circo que não terá chegado a aparecer nem em cinco aulas, e nessas ocasiões metia-se a convidar alunas para tomar café (não tinha lá muita sorte, talvez se aparecesse mais vezes…). Ferro Rodrigues recorria às aulas suplementares por causa das faltas que dava nas alturas em que havia interpelações ao governo de Cavaco Silva. Ele, de um partido então na oposição, tinha de ir para S. Bento falar de determinadas questões para as quais a maioria dos deputados do seu partido não estava preparada. Nem os que andavam lá a fazer figura de corpo presente, nem mesmo os que até botavam discurso. Pelo menos era o que eu ouvia dizer…
Na mesma altura de Ferro Rodrigues, apanhei com outro professor mais ou menos conhecido. Apareceu numa das cadeiras jurídicas e, para surpresa e mal de todos, apesar de parecer um tipo porreiro, lá para meio do ano começou a dizer que um aluno para ter mais do que treze tinha mesmo de ser brilhante. No final correu-nos quase todos a treze, certamente porque não viu em nós nem uma simples réstia de brilho. O homem tinha a mania de filosofar um bocado e às vezes até lançava propostas corajosas. Certo dia saiu-se com a ideia de que os alunos é que deveriam escolher os professores que queriam para cada cadeira, mas depois ficou a pensar um pouco, quando um de nós lhe disse que o mais certo era assim haver professores que ficariam sem alunos. A grande surpresa que o homem me causou, no entanto, não foi esse seu gosto pelo treze e a preocupação com a autodeterminação dos alunos. O que achei estranho foi o facto de ele ir para a faculdade num automóvel do Estado, com um motorista que ficava a secar à espera do fim das aulas, para depois o levar de volta ao gabinete do ministério (ou da empresa pública) em que se abrigava. Era o que se pode chamar um senhor, com direito a tacho arranjado enquanto não chegava a ministro ou algo parecido. Acabaria por conseguir mesmo ser ministro, mas não dos normais, apenas da República para os Açores.
Claro que no terceiro ano as coisas já estavam mais calmas para mim. Já não era tanto como nos primeiros meses, quando andava constantemente no meio de coisas que antes nunca tinha esperado que pudessem acontecer; ou seja, eu chegava a dar comigo a pensar até onde haveriam de chegar as surpresas. Mas com o passar do tempo elas próprias, surpresas, tinham começado a ganhar um estranho estatuto de acontecimentos normais. Sei que me lembrei de tudo isto muitos anos depois de entrar para a faculdade, quando num fim de tarde de 1999 conduzia por uma rua estreita de Lisboa, na zona de S. Bento, e de repente me surgiu pela frente um homem alto e forte, de fato castanho e já então com uma idade respeitável. Atravessou saído não sei de onde, sem olhar, talvez distraído pela conversa que ia tendo com a rapariga que o acompanhava. Era o Mário Soares e eu por pouco não o atropelava, embora me tenha parecido que nem ele nem a rapariga se aperceberam da situação. Depois da pequena travagem que tive de fazer, meti a primeira e conduzi apressadamente até casa, porque ia dar um jogo do Sporting na televisão.


Isso de receber um prémio

Nos meus tempos finais da faculdade, houve uma ocasião em que estive quase a receber um prémio das mãos de um secretário de Estado; calhou-me logo o Santana Lopes. Foi na sede de uma seguradora, num edifício antigo do Chiado, em Lisboa, um edifício por sinal bem bonito, embora um bocadinho mal conservado, coisa que depois acabou por ser corrigida. Santana Lopes pertencia então a um governo de Cavaco Silva; tratava da cultura, que com Cavaco, como poucos hão-de estranhar, não tinha honras de ministério – e se calhar já ia com sorte em ter as de secretaria de Estado. Ora precisamente por tratar então da cultura em Portugal, Santana Lopes tinha sido convidado para presidir à entrega dos prémios literários do Centro Nacional de Cultura. Era essa cerimónia que a sede da seguradora acolhia, e eu estava presente porque ia receber - pelo menos era o que eu pensava quando me dirigia para o local -, ia receber, dizia, o prémio para a categoria de «revelação».
Foi num fim da tarde de Maio de 1991. Em Roterdão, no Estádio De Kuip, conhecido como «a banheira de Roterdão», iam jogar as equipas de futebol do Barcelona e do Manchester United. Estava em disputa a Taça dos Clubes Vencedores das Taças, que nessa altura ainda existia. Eu dirigia-me para a sede da seguradora um bocado contrariado, por um lado porque ia perder o jogo - coisa que anos mais tarde pouco me importaria, mas que na altura achava importante. Além disso, estava curioso em saber no que daria uma disputa entre uma equipa bastante forte – a do Barcelona – e outra – a do Manchester United – que era classificada pelos especialistas do pontapé na bola como outsider, depois de vinte e tal anos de alguma obscuridade a seguir à vitória na final da Taça dos Clubes Campeões Europeus de 1968, frente ao Benfica. Isto por um lado. Por outro, eu dirigia-me para a sede da seguradora um bocado contrariado porque imaginava que a cerimónia haveria de ser uma coisa chata. O que eu estava longe de imaginar era que haveria de ser pior do que isso.
Um colega de curso estava na esplanada da Brasileira à minha espera. Entrámos os dois na sede da seguradora e aí encontrámos logo mais dois ou três colegas. Faltava uns vinte minutos para a cerimónia começar e já estava muita gente no local. Talvez umas duas ou três centenas de pessoas. Lembro-me de que comentámos que aquela afluência devia ter muito a ver com o premiado principal, que era muito conhecido, e também com a presença de nomes importantes para abrilhantar a ocasião, como o escritor José Saramago, que ia falar das obras premiadas, precisamente no mesmo dia em que estreava ali mesmo ao lado, no S. Carlos, daí a duas horas, a ópera «Blimunda», inspirada no seu romance «Memorial do Convento».
Enfim, lá nos metemos pelo meio daquela gente toda, até que chegámos perto de uma divisão que parecia ser o salão nobre, ou coisa do género. Um senhor que fazia uma espécie de triagem, assim tipo porteiro de discoteca, mandou-nos esperar, franzindo o sobrolho quando eu lhe disse o nome e que era um dos premiados. Depois meteu-se em direcção ao salão, avisando-nos novamente de que devíamos esperar ali. Sentámo-nos num enorme sofá, sem nos preocuparmos muito, até que daí a uns minutos ele voltou, acompanhado por um outro senhor, enfezado, que com uma das mãos nos fez sinal para que esperássemos, desaparecendo logo em seguida.
- Aquele senhor é que sabe tudo - disse o porteiro.
E o tempo foi passando. Até que para meu espanto percebi que no interior do salão a cerimónia estava a começar. Levantei-me e tentei espreitar para o interior, para a zona do fundo onde tinham colocado a mesa dos premiados e dos outros intervenientes, isto enquanto o porteiro praguejava para dentro com a minha insolência. Logo a seguir, voltou a aparecer o senhor que segundo ele é que sabia tudo, só que em menos de nada desapareceu outra vez. As pessoas que entretanto tinham entrado no salão formavam um conjunto compacto que já não respeitava nem a ordenação das cadeiras, nem os espaços de circulação. Por entre as cabeças, consegui ver o que se passava na mesa do fundo. Distingui um escritor um bocado entradote, o tal que ia receber o prémio principal, uma rapariga que ia receber o da categoria de «literatura infantil», José Saramago para falar das obras e o secretário de Estado para as entregas. Havia também uma cadeira vazia, que presumi tratar-se da minha.
De repente, o tal senhor que sabia tudo voltou. Vinha um bocado esbaforido; assim que o porteiro apontou para mim, olhou-me e disse:
- Ah, mas você é o premiado!...
Eu fiz que sim com a cabeça e ele apresentou-se, acrescentando que era o responsável pela organização da cerimónia. Aquilo despertou-me a atenção, porque os apelidos coincidiam com os da presidente da instituição que promovia os prémios. Era o filho. Voltou a falar:
- É pá, isto é um problema, porque...
Um dos meus colegas interrompeu-o:
- Ouça lá, a gente está aqui há mais de um quarto de hora e ninguém veio receber o meu colega, e agora você diz que é um problema?!
- Pois - retorquiu o senhor que sabia tudo -, mas sabe que...
- Olhe - acabei por dizer -, se me tivessem deixado passar eu tinha ido para a minha cadeira na altura em que os outros ocuparam as deles.
- Pois - insistiu o senhor que sabia tudo -, isto agora é mesmo um grande problema.
Parecia procurar uma solução. De repente, todo decidido, disse:
- Pronto, você entra ali, devagar, passa por entre as pessoas e senta-se na cadeira livre.
Eu disse-lhe que ele devia estar mas era maluco…
- Você deve estar mas é maluco!
Ele ficou calado, até que outro dos meus colegas lhe disse:
- Bom, você o que tem a fazer é levá-lo até lá!
- Levá-lo até lá?!
- Pois, interrompa as coisas e explique o que aconteceu!
- Isso não faço! - disse o senhor que sabia tudo.
Perante aquela resposta, decidi não entrar.
- Recebo o prémio no fim - disse-lhe eu, e ele virou-me as costas.
Entretanto, José Saramago tinha começado a falar. De onde eu estava, não conseguia ouvir grande coisa, mas a certa altura percebi que falava ou de mim, ou do livro pelo qual eu tinha sido premiado, ou talvez dos dois. Pareceu-me ouvi-lo dizer algo como ser uma pena não estar presente o autor que escrevia assim. Ainda hoje estou para saber o que é que ele teria querido significar com tais palavras. Seria assim tão bem? Ou assim tão mal? Ou teria dito assim-assim e eu só consegui apanhar o primeiro assim? Ou teria eu ouvido tudo mal e José Saramago não estava a falar nem de mim, nem do livro?
Até que a cerimónia terminou. Quando as pessoas começaram a dispersar, o senhor que segundo o porteiro sabia tudo voltou a dar as caras. Eu estava novamente sentado no sofá, à espera, enquanto um dos meus colegas andava de um lado para o outro, como se a ele é que tivessem impedido de receber o prémio. Os outros já tinham saído, com a promessa de esperarem por nós na Brasileira.
- Olhe, já temos ali o prémio - disse o senhor que sabia tudo.
Fui buscar o prémio, com ele à frente, e com o meu colega ao lado, cada vez mais impaciente, porque éramos do mesmo grupo na faculdade e tínhamos deixado duas das raparigas que também o integravam a adiantarem um dos trabalhos de fim de curso. O secretário de Estado estava a falar com um tipo que eu nunca tinha visto mais gordo. Aliás, mesmo que já o tivesse visto, era um tipo tão gordo que seria difícil tê-lo alguma vez visto ainda mais gordo. Ainda pensei que seria ele a entregar-me o prémio, ele o secretário de Estado, não o gordo, mas nenhum dos dois olhou para mim. Como estavam junto à porta da sala para onde nos dirigíamos, o meu colega teve de pedir licença para que nos deixassem passar, depois de o senhor que sabia tudo ter aproveitado uma nesga momentaneamente livre para se esgueirar. Mas nem o gordo nem o secretário de Estado se desviaram. O meu colega voltou a pedir, mas nada. Repetiu o pedido, e nada outra vez. Foi então que disse uma coisa de que eu nunca mais me esqueci. Mais palavra, menos palavra, terá sido assim:
- Este gajo, lá porque é do governo, deve pensar que não precisa de dar passagem a ninguém!
Fê-lo em voz bem alta, tanto que algumas pessoas se puseram a olhar, talvez na esperança de assistirem a uma cena apetitosa. Mas o secretário de Estado continuou sem se desviar, e sem sequer olhar para trás, para onde nós estávamos. O gordo é que acabou por desviar-se, mas também ele sem nos olhar. E nós passámos, não sem que eu me lembrasse de que se calhar, neste país, há governantes que usam sempre um assessor para se desviar por eles.
O prémio, afinal, estava na posse de um senhor que, segundo julgo recordar-me, era o presidente da empresa patrocinadora. Quando o senhor que sabia tudo o informou de que eu era o «premiado faltoso», virou-se para mim e disse:
- Ah, então é você!
Entregou-me um envelope. Abri-o e estava lá um cheque.
- Está tudo bem? - perguntou o meu colega, enquanto virávamos as costas.
- Deve estar - disse eu.
- Convém, porque tens uns copos para pagar à malta toda!
Nessa altura, o presidente da empresa patrocinadora chamou-me:
- Olhe, não se vá ainda embora!
Virei-me para ele.
- Está aqui um livrinho sobre automóveis, que temos todo o gosto em oferecer-lhe. Foi a nossa empresa que o editou.
- Ah, obrigado! Como é que sabe que eu gosto de automóveis?
- Não sei. Quer dizer, fico agora a saber.
- Ah, compreendo - disse eu.
- É que damos isso a toda a gente. Já que editámos...
- Boa - disse eu, e virei as costas definitivamente.
O meu colega tinha desaparecido a caminho da Brasileira. Quando saí da sala, já não vi o secretário de Estado, nem tão-pouco o gordo que nunca ninguém alguma vez poderia ter visto mais gordo.
«Agora tenho o caminho livre», pensei.
Desci as escadas em direcção à rua. Os meus colegas não tinham conseguido arranjar mesa na Brasileira, de forma que fomos a correr petiscar qualquer coisa a uma tasca do Bairro Alto. Ainda não tinha aparecido por cá o McDonald’s. Eu, tal como o meu colega de grupo, tinha o trabalho da faculdade à espera, ainda por cima de uma das cadeiras mais complicadas do curso, e se calhar com as raparigas já a dizerem mal de nós. Por certo, teríamos que fazer serão em frente do computador, enquanto elas dormiam um bocado.
- Porcaria do trabalho!! - praguejou o meu colega.
Era mesmo uma porcaria. E consumiu-nos a noite toda. Mesmo assim, ainda conseguimos ver um resumo do jogo de Roterdão no «Eurosport». O Manchester United ganhou por dois a um, com dois golos de um jogador galês de nome Mark Hughes, que depois haveria de jogar no Barcelona. Pelo Barcelona já não me lembro quem marcou, mas talvez perguntando ao secretário de Estado, que acabou por tornar-se comentador desportivo... Além de presidente de câmara, primeiro-ministro e outras coisas que nem interessa estar aqui a lembrar.


O minuto do Drácula

Conheço um jovem artista que em tempos fez um filme de animação que conta a história de um talk-show apresentado pelo Drácula e em que o único convidado é o Frankenstein, atentamente guardado por um tigre de porte altivo. Tudo se passa num cenário às listas brancas e pretas – na verdade uma colcha a imitar pele de zebra –, com um aparelho de televisão feito a partir de uma pequena caixa e um par de sofás azuis que antes de pintados eram, imagine-se, os moldes de duas próteses dentárias. Os sofás aparentemente são iguais, só que o do entrevistado é muito guloso, enquanto que o do apresentador não passa daquilo a que usualmente se chama uma mosca morta. Para acompanhar, há uma música típica do circo, rápida e animada o suficiente para não parecer despropositada ao pé do ritmo frenético que o apresentador impõe ao programa. Quem vê o Drácula a conduzir as coisas daquela maneira, não pode deixar de se lembrar de figuras como Júlia Pinheiro, Jorge Gabriel, Herman José e outros que a seguir foram surgindo nos ecrãs das televisões portuguesas. Nenhum deles, por mais pulos e saltos que desse, haveria de servir nem para assistente do terrível conde da Transilvânia.
O Drácula e o Frankenstein saíram ao jovem artista candidato a realizador nas promoções de uma cadeia de fast-food, a Burger King. Ele filmou apenas com esses bonecos porque na altura não conseguiu arranjar os restantes, o Lobisomem e o Monstro da Lagoa Negra, os dois artistas que completavam a colecção oferecida pela Burger King e que em pouco tempo parece que esgotaram. Se calhar por isso é que o talk-show ficou apenas com um convidado. Ou então, quem sabe, a intenção do jovem era ter um programa com os entrevistadores a variarem e sempre com o mesmo convidado, o Frankenstein. Os entrevistadores haveriam de ser uma vez o Drácula, outra o Lobisomem, outra ainda o Monstro da Lagoa Negra, e depois, se fosse para continuar a saga, ele poderia arranjar um boneco parecido com um apresentador brasileiro que em tempos apareceu em Portugal, o Ratinho, poderia pedir emprestado uns bonecos à «Contra-Informação», tipo o Major Valentão ou o despropositado Coelhone, e por aí adiante. E se o talk-show fosse para durar muito, isto é, se o Frankenstein acabasse por ir sobrevivendo às dentadas do sofá guloso destinado ao entrevistado, as coisas também se haveriam de arranjar. Nem que fosse preciso o jovem artista meter-se uns dias por algum matagal dos arredores de Lisboa, de certeza que não seria difícil encontrar uma cobra manhosa, um furão de fuças arrebitadas e mais meia dúzia de simpáticos profissionais.
Não haveria de ser, contudo, uma ideia original, porque um formato assim já foi usado pelo menos uma vez. No final da década de 1980, a RTP chegou a transmitir uma série de programas com o professor Agostinho da Silva. Ao contrário, por exemplo, do caso do professor José Hermano Saraiva, o programa não estava sob a sua responsabilidade. O genial pensador ia lá todas as semanas mas era para responder às mais variadas perguntas, sem falhar uma, semana ou pergunta, e em cada semana havia um novo entrevistador. A rotatividade era tanta que eu já nem me lembro bem de todos. Aliás, sem fazer grandes esforços de memória, o único nome que me vem à cabeça é o do então jornalista Miguel Esteves Cardoso.
Mas voltemos ao filme de animação, cujo talk-show, a continuar, não sei que formato verdadeiramente deveria ter; apresentador variável, ou convidado variável, ou nem uma coisa nem outra... Naquela primeira edição, depois de o perigoso Frankenstein, afinal, ter sido devorado logo depois de se sentar, à primeira dentada e sem saber bem como nem por quê, o seu animal de guarda, o tigre, começou a ficar um bocado nervoso. E não era para menos, porque o dono, que metia medo a quase toda a gente, afinal tinha sido engolido por um perigoso molde de prótese pintado de azul. Sem que o Drácula pudesse fazer nada, por mais que esbracejasse e corresse de um lado para o outro, o tigre pôs-se a rodar que nem um pião e acabou transformado num porco – que não imagino em que promoção terá saído – e acabou por ir-se embora, talvez resignado com a sina de passar de animal com uma certa nobreza a bicho frequentador de atasqueiros e lamaçais. Foi então que o Drácula, que até tinha dado a parecer que estava assustado com as voltas do tigre, respirou de alívio. O caso não era para menos, porque os dentes do porco não podiam ser comparados às imaginativas armas da boca do felino protector do entrevistado Frankenstein. E ele, Drácula, de dentes percebia o suficiente para saber isso melhor do que ninguém.
Bom, o talk-show prosseguiu, com o Drácula sozinho no cenário de zebra, sempre a mexer-se o mais que podia para acompanhar o ritmo desenfreado da música. O sofá guloso continuava a arreganhar os dentes, enquanto o seu colega de serviço ao apresentador permanecia na mesma indolência de sempre. Como já não tinha o Frankenstein para entrevistar, o Drácula aproximou-se da caixa que fazia de aparelho de televisão e pôs-se a tentar passar umas imagens sobre a vida e a obra do seu infortunado entrevistado. Só que quando as imagens iam começar, o tempo do talk-show, um minuto, nem mais nem menos, esgotou-se. E ele, por muito que barafustasse, e por mais ameaças que fizesse de que partiria tudo, não conseguiu que lhe prolongassem a emissão. Dizem que um minuto em televisão é muito tempo, mas fosse lá alguém explicar isso ao Drácula...


Que fazer de um cruzamento sem fantasmas?

Por vezes o que está na base de uma história, especialmente se ela se mete pelos caminhos do fantástico, acaba por ter pouco a ver com as peripécias que vão sendo relatadas linha após linha. Lembrei-me disso a propósito de um boato que me chegou aos ouvidos, um dos muitos com que somos confrontados a cada dia que passa, pelas mais variadas fontes: televisão, rádio, amigos, jornais, vizinhos, patrões, empregados, até mesmo pelos transeuntes que nem conhecemos mas dos quais nos chega algum comentário fugaz. Ao ouvir aquele boato, a que nem interessa agora dar alimentação porque eu sei que era mesmo um boato, não pude deixar de fazer o contraponto entre todo o caminho que esse tipo de coisas percorre – desde a simples faísca até ao enorme fogo que no final quase toda a gente jura a pés juntos ter visto –, não pude deixar de fazer o contraponto, dizia, entre esses aumentos e todo o processo de criação de uma história a partir de um pequeno acontecimento, talvez até de uma recordação bem remota.
Há uns anos escrevi um conto chamado «Os Fantasmas do Cruzamento da Morte». Conta a história de dois fantasmas, o de um gato que foi atropelado por uma motorizada e o do condutor da motorizada que atropelou o gato num dos cruzamentos mais perigosos da zona. Esse lugar era até conhecido por «cruzamento da morte», devido aos muitos acidentes que ocorriam aí, principalmente porque quem surgia da secundária estrada de terra às vezes nem parava para ver se na estrada nacional havia movimento. O gato era bravo, talvez para apimentar mais o enredo, e o motociclista também não era nada para o caseiro. Os dois morreram no acidente, o motociclista porque se despistou a seguir ao atropelamento e o gato bravo porque foi atropelado e ficou com as tripas à mostra. Acabaram por ir para fantasmas, com o do gato bravo a aparecer quase todas as noites, e por vezes até durante o dia, e o do desgraçado do motociclista só uma vez por ano, na noite de quatro para cinco de Outubro, que era a data em que tinha acontecido a tragédia. Entretanto as coisas evoluíram, com os fantasmas, principalmente o do gato bravo, a tornarem-se atracções turísticas (coisa que a autarquia encorajava). O fantasma do gato bravo aparecia de repente à frente dos carros e das bicicletas, como que em desafio, e então era um vê se te avias, os condutores apontavam mesmo para ele e muitas vezes deixavam-no com as tripas à mostra, ao Sol ou à Lua, conforme a hora. Depois, quando era para limpar o alcatrão, ele desaparecia enquanto o Diabo esfregava um olho, ou então enquanto os homens do lixo, incrédulos, esfregavam os olhos a ver se estavam bem acordados ou não. Até que o fantasma do gato bravo se cansou de fazer de vítima e deixou de dar as caras, e assim o «cruzamento da morte» ficou só com uma atracção, e apenas uma vez por ano, na noite de quatro para cinco de Outubro. Ficou reduzido ao fantasma do infeliz motociclista, ainda por cima um fantasma de pessoa, coisa de pouca novidade, embora aparecesse de bicicleta.
Vou contar os factos que estiveram na origem da história. Uma noite, creio que em 1983, eu e mais três amigos estávamos sentados no muro que fica ao pé do cruzamento, que até nem tem nome de filme de terror; aliás, nem nome tem. Regressávamos a casa, depois de mais um treino da equipa de futebol. Como não nos apetecia ir logo dormir, ficámos um bocado na conversa, debaixo da escassa luz que a lâmpada do cimo do poste permitia, pois a Lua estava nem a gente sabia onde. Fantasmas, ali, era coisa que não nos preocupava, mesmo quando olhávamos para cima e víamos os parvos dos morcegos de um lado para o outro sem saberem onde aterrar. Só de vez em quando, muito irregularmente, um ou outro carro, ou uma motorizada, iluminavam um bocadinho mais o lugar, fazendo parecer que a manhã estava a chegar adiantada. Mas durava pouco essa ilusão… Uma das motorizadas foi mesmo a de um conhecido bêbado da zona, que passou na marcha lenta do costume, com o trabalhar do motor quase a morrer. Não ligou sequer às nossas saudações e meteu pela estrada de terra que saía do cruzamento, a mesma de onde haveria de vir na história o infortunado motociclista que depois foi para fantasma mais o gato bravo. O bêbado perdeu-se logo na escuridão, pois à estrada de terra a iluminação pública não chegava, nem fraca nem forte, e ele também não podia pedir grande clareza à velha lâmpada da motorizada, que ainda por cima nem nos dias feriados sabia o que era um balde de água. Ficámos assim sem escutar a voz arrastada pela bebida que tantas vezes já nos tinha divertido (a voz, porque a respeito de bebida, com a nossa idade...).
Mais tarde, talvez uma hora depois, ainda estávamos os quatro na conversa, fazendo serão como os morcegos – se é que se pode dizer que os morcegos faziam serão, porque afinal aquela era a altura da sua labuta normal. O susto que acabámos por apanhar teve então início. De repente, sem mais nem menos, ouvimos o barulho de uma motorizada a descer pela estrada de terra. Isso era normal e nem nos deveria despertar grandemente o interesse, mas o desenfreado andamento punha as coisas noutro ponto. Entreolhámo-nos. Ainda me lembro de ver na cara dos outros uma inquietação que quase jurava ser a que eu próprio sentia. A motorizada parou no outro lado do cruzamento, mesmo onde acabava a estrada de terra e começava o alcatrão. O estranho motociclista parecia querer encandear-nos com o feixe de luz, mas eu não sei se não era o medo que nos impedia de ver, em vez do efeito do feixe dirigido aos nossos olhos. O feixe era muito fraco, mesmo muito fraco. O que é certo é que não conseguíamos distinguir quem nos observava. Ao fim de uns minutos, que nos pareceram intermináveis, o motor parou, a luz apagou-se e ficámos sem ver praticamente nada. Seria um fantasma? Mas nós, mesmo ainda muito novos, sabíamos que os fantasmas não andavam de motorizada, ao contrário do que viria a acontecer depois ao da história. Do que tínhamos a certeza era de que se tratava de um vulto preto, numa motorizada que ou também era preta ou então tinha uma cor sem nome. Tudo aquilo, no entanto, era diferente do preto da noite, impossível de classificar. E os fantasmas deviam ser brancos, como diziam os compêndios que então regulavam as nossas vidas.
De repente, parecendo sair de nenhum sítio, chegou até nós um «boa-noite» arrastado. Um «boa-noite» que logo nos pareceu familiar. Só podia ser a voz do tal bêbado, mas o estranho é que ele nunca conduzia assim tão desalvorado. Teria tido algum acidente pelo caminho acima? Teria morrido e o seu fantasma já tomava conta da motorizada e andava a fazer das boas mesmo sem o desgraçado enterrado? Que confusão… Nós não dizíamos nada, e ouvíamos os morcegos por cima nas vidas que pareciam sem mudança possível. Até que a voz voltou, com um discurso mais longo:
– Desculpem lá, amigos, mas só já quando ia a chegar a casa é que me lembrei de que não tinha dado as boas-noites, de maneira que vim por aí abaixo que nem uma seta, como nunca tinha andado aqui com a motoreta, e sempre a pensar que se calhar esta noite é que ia de encontro aí a algum sobreiro, mas valeu a pena, porque os amigos ainda cá estão, e eu não ia conseguir dormir se não lhes tivesse respondido, mesmo um bocado atrasado.
Era realmente o bêbado, vivo, com força para dizer uma frase enorme e, sobretudo, bem-educado; os fantasmas nunca poderiam ser tão respeitosos no falar. Logo depois o motor voltou a trabalhar, a luz fraca acendeu-se e ele partiu, aí novamente muito devagar – afinal, a sua velocidade –, e perdeu-se pela estrada de terra acima. O cruzamento continuava sem fantasmas.
Uma vez tentei contar esta história e não fui capaz. Sem conseguir controlar a pressa da caneta em aventurar-se por caminhos para mim desconhecidos, acabei por dar comigo a tentar conjugar no papel a presença do fantasma do gato bravo com a do fantasma do motociclista que o tinha atropelado em vida. A caneta queria lá saber da história sem grandes peripécias que eu tinha vivido naquela noite distante com os meus companheiros de treino... Essa caneta, por certo, tinha vistas mais largas. Pensava a dobrar, se é que pensava, se é que em vez disso não tinha alguma outra faculdade por mim desconhecida e capaz de arranjar uma história com um processo parecido ao dos boatos. Acabei por deitá-la fora, sem lhe colocar uma nova carga que permitisse continuar em busca de novas aventuras. Ainda hoje não imagino aquilo que terei perdido.


Vizinhos, mas de ao pé de casa

Houve um tempo em que um amigo, lá de vez em quando, costumava entregar-me alguns textos escritos ao correr da pena, sem uma segunda leitura, ou seja, sem grandes preocupações de depurar um pouco o original. Eu fazia as correcções, procurando limitar-me às gralhas, mas por vezes não conseguia deixar passar coisas que também ele, com uma leitura cuidada, por certo haveria de detectar. Assim de repente, lembro-me de duas frases que acabei por alterar, embora isso até possa ser discutível, porque eram, de facto, preciosidades. A primeira dizia assim: «Naquela noite regressei a casa acompanhado por uns vizinhos que moravam ao pé de mim» (cortei a parte final, «que moravam ao pé de mim»). E a segunda: «Revi os conhecidos, cumprimentei os amigos e conheci pessoas que ainda não tinha conhecido antes» (substituí a última parte por «conheci novas pessoas»).
Quase todos os que escrevem estão sujeitos a este tipo de situações. Serão caso raro, por certo, aqueles que conseguem colocar directamente no papel (ou no ecrã do computador) os textos definitivos. Uma vez ouvi dizer que Virgílio Ferreira tinha essa capacidade, mas normalmente as pessoas têm de melhorar ou corrigir as primeiras versões daquilo que fazem. Em maior ou menor grau, mas têm. José Cardoso Pires, por exemplo, até escrevia mais do que uma versão dos seus romances. António Lobo Antunes diz que produz apenas uma ou duas páginas por dia, certamente por ter um processo muito complexo de escrita. José Riço Direitinho, segundo me contaram, também escreve muito pouco, trabalhando a linguagem ao máximo.
Ora, aquele meu amigo costuma escrever de seguida, ao sabor da imaginação, sem reler. Assim, as gralhas sobrevivem, tal como os pleonasmos, as repetições e outras coisas. E tanto material nem sequer pode ser aproveitado pelos académicos como recursos estilísticos. Isto, é claro, se as coisas continuam como no tempo das minhas aulas de Português do ensino complementar, quando eu andava mais uma data de desgraçados quase sempre à procura dos tais recursos, que em muitos casos de estilísticos pouco ou nada tinham.
Para a minha professora de Português desses tempos não bastava levar Camões, com «Vi claramente visto o lume vivo», ou o Diabo dos autos de Gil Vicente a dizer «Subi, subi pera cima». De forma que lá andávamos em correrias desenfreadas, à procura de pleonasmos e demais recursos, enfim, estilísticos. E também medíamos orações, por exemplo, coisa que, devo confessar, me ajudou menos em termos literários do que os livros aos quadradinhos com as aventuras do fabuloso guarda rural norte-americano Tex Willer. O que veio a revelar-se útil foi o autêntico sistema de salve-se quem puder que apanhei durante aqueles dois anos. As aulas eram uma prova terrível, onde os alunos passavam por um leque de situações perfeitamente inaceitáveis, de pressão, algum terror e muita humilhação. A professora, que era uma autêntica psicopata, punha as coisas bastante difíceis para nós. Daí que fosse preciso andar um pouco como na guerra, sempre de olhos bem abertos, para ir sobrevivendo. Uma palavra mal escrita, por exemplo, dava não sei quantas dezenas de repetições em casa, e isso, há que reconhecê-lo, ensinava qualquer um. Eu tinha sempre muitas para repetir, não porque fosse de dar erros, mas porque com a minha letra um bocado despachada cada palavra com um «m», por exemplo, era logo assinalada, ou porque o «m» tinha quatro pernas, ou porque tinha cinco, ou afinal porque parecia mais um «n» do que outra coisa. No fundo, lá bem no fundo, talvez eu até devesse agradecer a essa professora sinistra que nos fazia correr atrás de perífrases, pleonasmos, contrastes (ou antíteses), cacafonias, regionalismos, maravilhosos pagãos (e maravilhosos cristãos, não sei se para equilibrar), imagens e sinestesias (ou confusões de sentidos). O exemplo que ela dava neste último caso era «aquele cheiro soube-me tão bem», mas nunca revelava qual era o cheiro, ficando as coisas sempre num certo suspense. O suspense, curiosamente, nunca nesses dois anos teve direito a figurar na lista dos recursos estilísticos.
Mas a professora, certo dia, ficou sem palavras (o que numa professora de Português é de assinalar, e então naquela...). Foi a única vez. A pergunta de abertura era sempre para mim, porque como eu pertencia à letra «A» – só havia mais outro assim nesse ano, o Artur – ficava logo no primeiro lugar da sala, naquela altura disposta em «U» por causa de umas experiências pedagógicas que acabariam por não dar em nada. De forma que se eu não respondesse a mulher ia percorrendo a turma de aluno em aluno até ouvir a resposta certa. Se ninguém acertasse, ela virava-se para o primeiro (logo por azar, eu) e presenteava-o com um enxovalho de todo o tamanho e, pior do que isso, de argumentação bem aprimorada. «Os teus ‘Maias’ não são iguais aos meus!», ou «Onde é que os compraste, em Monchique?», foram alguns dos mimos que me calharam. Mas chegou a haver pior («Sabes, rapariga, as vacas costumam andar nos campos! Como é que podes entrar na escola nessa figura?!» – razão: uso de mini-saia). Bom, o que é certo é que naquele dia eu consegui passar a prova sem grandes estragos, e os colegas seguintes, melhor ou pior, também passaram. O que fez com que um dos dos últimos lugares, o João Lúcio, também acabasse por ter direito a uma pergunta, chamemos-lhe assim, de arranque.
Foi por isso o João Lúcio quem teve a honra de fazer calar a professora pela única vez naqueles dois anos de guerra. Era um aluno médio, mas talvez dos mais inteligentes da turma em termos emocionais. Ou seja, e não me deixando derivar para os conceitos da moda nos meios ligados às empresas, era um autêntico mestre do desenrascanço. O João Lúcio levou com uma pergunta terrível, ou melhor, não foi bem uma pergunta, foi um desafio.
– Lúcio!! – gritou a professora. – Faz-me um retrato físico e psicológico do gigante Adamastor!!
Eu pensei logo que ia haver confusão, pois ele ia de certeza embatucar com aquilo, e então lá viria a peixarada do costume. Pelo menos eu imaginava o que se passaria se a pergunta tivesse sido para mim; de certeza que eu haveria de começar a analisar o gigante à minha maneira e a maluca interromper-me-ia logo na segunda ou na terceira frase para me desancar. Porque para ela dava a ideia de que o gigante tinha existido mesmo, que havia fotos, depoimentos gravados, até algumas reportagens perdidas nos arquivos da televisão do Estado, etc, etc, etc. Enfim, eu não conseguiria sair da sala sem uma tremenda humilhação.
O João Lúcio começou por olhar para o tecto, enquanto a professora esperava com as mãos ferradas nas ancas. E daí a uns segundos, a medo, começou a falar:
– Pois, o Adamastor era monstruoso, era grande...
A professora interrompeu-o logo, procurando ridicularizá-lo:
– Evidentemente, se era monstruoso tinha mesmo de ser grande!
Ela não admitia pleonasmos aos alunos, só aos autores que deixava que estudássemos. Foi então que chegou a resposta do João Lúcio, imediata, certeira, definitiva:
– Eu conheço pessoas que são pequenas e que mesmo assim são monstruosas.
A professora ficou sem fala. Os minutos passaram e nada, até que o toque da campainha a anunciar o fim da aula acabou por salvá-la. Ela não devia passar muito do metro e cinquenta de altura.
Nesse dia, compreendi que nem tudo o que parece um pleonasmo é verdadeiramente um pleonasmo. Quem conseguir, nestas linhas, reconhecer a minha professora de Português nos dois anos do complementar, numa escola de Portimão, saberá por certo o valor da resposta do João Lúcio. Quanta coragem ele teve, como se arriscou até a ser confrontado com alguma tentativa da professora em fazê-lo suspender das aulas – ainda era possível, mesmo estando nós já a meio da década de 1980 e com o criminoso de Santa Comba em sítio seguro.
Já agora, para acabar com um pleonasmo mesmo pleonasmo, aquele de que mais me recordo não é de uma obra literária. Ouvi-o num banco, em Lisboa, por sinal um banco norte-americano. Um dos directores recebeu-me, perguntou-me se aceitava um café e depois começou a falar-me dos «valores», da «missão» e de mais uma série de coisas da «instituição». Até que chegou a uma altura em que, para explicar como é que faziam a «gestão do risco de crédito», se pôs a falar de «medidas preventivas». E comentou:
– Sabe, nós aqui não aceitamos qualquer cliente. Para entrar na nossa instituição, é preciso ter um certo back ground para trás!
Ainda hoje estou à espera de que me apareça alguém capaz de melhor.


Fomos a votos

Uma noite (não faltava muito tempo para que José Saramago ganhasse o Prémio Nobel de Literatura, talvez dois ou três anos), estive num jantar no qual a certa altura fui surpreendido com uma estranha situação. Estranha pelo menos para mim, que participava pela primeira vez. No final, anunciou o presidente da instituição que promovia o jantar, iria haver uma votação para que fosse escolhido um candidato português ao Prémio Nobel de Literatura (ao que me pareceu, já era habitual a organização enviar para a Suécia uma proposta de candidato). Também votei, e o nome que escolhi foi José Cardoso Pires, que curiosamente acabou por ser o nomeado, após um inusitado despique não com Saramago, mas com Sophia de Melo Breyner, a que todos na sala se referiam como Sophia. Ou melhor, quase todos, porque eu – e se calhar mais dois ou três dos novos – só conhecia a poetisa de nome e de ler algumas coisas do que tinha escrito. Tal como só conhecia Saramago e Cardoso Pires de nome e das respectivas obras – quer dizer, uma vez eu cheguei a ver José Cardoso Pires, quando tive de ir marcar uma consulta para o meu pai no Instituto de Reumatologia; ele estava lá, na fila da frente, entre dezenas de pessoas anónimas que enchiam um quadrado de cadeiras de plástico já a pedirem reforma, e isso fez-me uma enorme confusão, porque eu sempre tinha imaginado que uma pessoa como o autor da «Balada da Praia dos Cães» era quase como o presidente da República, que não ia aparecer assim numa situação daquelas, mas pronto, vivendo e aprendendo.
Desconfio de que todos os participantes no jantar sabiam que aquela votação, na prática, não interessava para nada, mas o que é certo é que lá se votou. E ainda bem, porque todo o processo, pelo menos para mim, isto em termos lúdicos, foi bastante interessante. Passo então a descrever o que aconteceu…
Cada um dos presentes recebeu um papelinho para votar, dobrar e entregar ao presidente da instituição. Este depois procedeu ao escrutínio, e aí acabaram por aparecer Saramago, Cardoso Pires, Sophia de Melo Breyner (a Sophia) e Lobo Antunes (a que alguns, curiosamente, se referiam como «o lobo mau»). Foram estes quatro os mais votados, não necessariamente pela ordem em que os enumerei, mas também apareceram outros, como António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade e até, imagine-se, Agustina Bessa Luís. O problema foi que depois de Cardoso Pires ganhar, creio que por um voto, a Sophia de Melo Breyner, e por três ou quatro a Saramago, houve um dos presentes, certamente mais batido em questões eleitorais, que se lembrou de propor uma nova votação, só para os três nomes mais votados, porque para ele a vitória de Cardoso Pires não tinha sido «categórica». Ora, o assunto foi a discussão durante uma boa meia hora, com violência até, embora só intelectual e uma vez por outra de punho contra a mesa, se é que as duas coisas não se equivalem um pouco. E acabou por realizar-se mesmo uma nova votação. Aí, Saramago ficou a ver navios.
O problema é que Cardoso Pires e Sophia de Melo Breyner, contados e recontados os votos, acabaram por empatar nessa interessante segunda volta da votação. E agora, perguntava-se, se a academia sueca nunca até então nos tinha dado nem um Prémio Nobel de Literatura num ano, como seria se apresentássemos logo dois candidatos de uma só vez? E Cardoso Pires e Sophia de Melo Breyner estariam dispostos a dividir o prémio, na altura (ainda não havia euros) cerca de 170 mil contos. O Prémio Nobel, como Saramago haveria de desabafar tempos depois, ainda vá que não vá, agora o dinheiro, isso já requeria, pelo menos, uma demorada reflexão. Então, que fazer para arranjar apenas um nome? O passo seguinte foi discutir durante mais meia hora, que como dizem que diz o povo a conversar é que as pessoas se entendem. Até que acabou por ter início uma terceira votação, difícil de realizar em termos práticos, dada a logística complicada, porque os opositores desde a primeira hora da solução de voltas sucessivas até ao nome final não ficaram calados nem quietos durante o processo. Mas a tendência inicial confirmou-se: Cardoso Pires ganhou por um voto a Sophia (nessa altura eu já começava a habituar-me ao simples nome de Sophia).
Só então é que alguém se lembrou de avançar com uma razão para uma quarta volta, ou lá o que lhe quisessem chamar. Então não é que em todas as votações anteriores, à frente de Cardoso Pires, de Sophia, de Saramago e de Lobo Antunes, e de todos os outros juntos, tinha aparecido sempre alguém a quem o presidente da instituição que promovia o jantar (era ele o escrutinador) não conseguia ver o nome nos papéis de voto. Talvez fosse um escritor de nome invisível… Ou seria o próprio homem invisível, afinal, um português autor de contos e novelas? Ou então talvez aquilo fosse como que uma intenção de homenagem não ao soldado desconhecido, mas sim ao escritor desconhecido, quer dizer, a todos os escritores desconhecidos de Portugal, mortos como os soldados homenageados ou até mesmo vivos. Talvez alguém com esse perfil merecesse ser escolhido… Enfim, o que é certo é que a sugestão não passou e o nome do candidato a enviar para a Suécia, depois de uma tal maratona eleitoral, acabou por ser José Cardoso Pires. Se bem que todos os presentes soubessem que a ganhar um português o Prémio Nobel de Literatura num dos anos seguintes esse português seria José Saramago, a terceira escolha daquela noite. Ou mesmo, porque não, António Lobo Antunes, que ainda teve menos votos e, pior do que isso, foi identificado por alguns dos presentes como «o lobo mau». Podiam ter-lhe chamado apenas António, da mesma forma que carinhosamente tratavam por Sophia a autora do «Dia do Mar».


A tasca do professor Carvalho Rodrigues

Quem já leu a história em que o Júlio Isidro levantou voo, a quinta que aparece neste livro, deve recordar-se de uma referência minha a um encontro que tive com o professor Carvalho Rodrigues. Foi numa conferência em Lisboa, depois de uma intervenção que ele fez sobre o mundo digital. Lembro-me de aquilo que ele tentava transmitir à assistência, ainda que se calhar isso fosse pedir-lhe demais, era uma «perspectiva do futuro»; futuro que se calhar, na altura, era aquele que agora vivemos. Convenhamos que é algo que parece difícil, alguém dar uma perspectiva do futuro, principalmente quando não se trata de um bruxo, de um astrólogo ou até, com um bocadinho de sorte, de um analista político. Mas o professor Carvalho Rodrigues lá se desenrascou, inclusive deixando algumas das pessoas que tinham acabado de o ouvi-lo completamente deslumbradas. Pareceu-me que ele conseguiu mesmo dar a tal «perspectiva do futuro», principalmente porque ao longo de uma hora, para a tarefa do mostrar o futuro, socorreu-se sempre quer dos grandes ensinamentos do passado, quer das angústias quotidianas do ser humano. E é bem sabido que o futuro não é mais do que o reflexo daquilo que aconteceu no mundo e, também, do que está a acontecer em cada momento.
Terá sido por tomar como ponto de partida o passado, e talvez pelas reflexões sobre o presente, que o ilustre cientista, a certa altura, falou da tasca portuguesa, da genuína tasca portuguesa. E o exemplo que deu foi o de uma onde se servia caracóis, não querendo com isso dizer fosse seja sinal de genuinidade servir caracóis. Ajudaria, mas o importante, mesmo o mais importante, era um letreiro na porta a dizer «á caracóis»; «á sem h», obviamente, porque se não fosse assim já não seria uma tasca genuína, pelo menos na opinião do professor Carvalho Rodrigues. Eu ouvi-o dizer isto e apeteceu-me interrompê-lo, mas contive-me. Deixei para o final, para quando pudéssemos falar um pouco. E assim foi. Mais tarde, terminada a palestra, disse-lhe que tudo bem, que o «á sem h» podia ser um sinal de genuinidade, mas que na minha terra, em Monchique, havia uma tasca que eu considerava bem genuína e que tinha «há com h», um «há» correctamente escrito.
- Ó meu amigo! - admirou-se o professor Carvalho Rodrigues. - Isso não pode ser!
- Pode, então não há-de poder! - disse eu.
E nem precisei de acrescentar que a genuinidade, na tasca que eu conhecia, chegava ao ponto de quando alguém cuspia para o chão aparecer logo a dona com um balde de serradura para tapar o cuspo. E isto quando o caso não metia algum escarro...
- A verdadeira tasca portuguesa é aquela do «á caracóis», sem h, - insistiu o professor Carvalho Rodrigues.
- ...
Bem, o que é certo é que não consegui convencê-lo, nem mesmo quando lhe disse que na Serra de Monchique as coisas eram – são – um bocado diferentes daquilo a que ele por certo estava habituado. Na Serra de Monchique havia sempre algo mais. Até nas tascas, incluindo as que não eram genuínas. Quanto mais naquela, que na minha opinião representava o máximo da genuinidade.
- Então diga lá, meu amigo, porque é que essa tal tasca que tem «há com h» é genuína.
Eu, é claro, disse. Mais ou menos assim:
– Pois essa tasca, que até nem tenho a certeza de que sirva caracóis, mas é bem provável que sirva, e moelas, e passarinhos fritos, e pão com presunto, e chouriço assado, além do vinho e da aguardente, e das inevitáveis cervejas que já não são propriamente uma marca de genuinidade, essa tasca, tem um letreiro à porta onde está escrito «há pitroil». Há com h.
Disse, claro que disse, mas apesar dos meus esforços não consegui convencer o professor Carvalho Rodrigues da genuinidade da tasca do balde da serradura. Nem a ele, nem a uma pessoa que acabou por apanhar a conversa a meio. Essa pessoa até me disse que aquilo do «pitroil» não era por causa de estar escrito como se calhar a dona da tasca dizia, mas antes por causa da palavra inglesa «oil», que o mais certo era estar escrita no depósito do camião que fazia a entrega do petróleo.
Enfim, desisti. E confesso que tão cedo não me meto noutra. Inclusive, já tive ocasião de me pôr à prova, quando em conversa com umas pessoas assim a raiar o intelectual intensivo se começou a falar de expressões de uso corrente em diversas terras, principalmente do norte de Portugal. Ora, eu estava tão escaldado com aquilo das tascas que o mais que conseguia fazer era dizer «ah», ou «muito bem», a cada expressão das mais esquisitas que os meus interlocutores atiravam para a mesa. Podia ter tentado brilhar com o «calitro», expressão tão popular da zona de Monchique, o eucalipto, ou com outras coisas do género. Mas não me atrevi. Ainda precisava de deixar passar uns dias, depois daquilo da conversa com o professor Carvalho Rodrigues. Nem recorri ao já celebérrimo «béque-me», simplificação de qualquer coisa como «parece-me», ou «tenho a ideia de que». E o «béque-me» já me valeu muitas coroas de louros em conversas por esse país fora.
Curiosamente, uns dias antes, no Porto, já eu me tinha retraído, mesmo estando a história das tascas ainda para acontecer. Ia para tomar o pequeno-almoço, e sabendo das confusões de outras pessoas de fora da cidade com os pedidos, resolvi não arriscar. Queria um galão, mas para me prevenir pedi um copo de leite, que era o que tinha visto numa tabela de preços que estava no balcão. E como não queria o galão quente pedi ao empregado para o trazer morno.
«Aquilo deve ser o galão», pensei.
Então e não é que o homem tirou um pacote de leite branco do frigorífico, creio que meio-gordo, encheu um copo e pôs-se a aquecê-lo!...
- Olhe, desculpe - avisei-o, meio atrapalhado - eu queria com café.
- Ah, quer um galão!... - disse o homem.
- Pois, pois, um galão.


Dog story

O melhor é começar por pedir desculpa pelo título em inglês. Achei que ficava bem, mesmo num livro de histórias portuguesas. Feito o pedido, adiante com a narrativa…
Em Lisboa, perto do Hospital de Santa Maria, viveu durante alguns anos um cão de pêlo amarelado e que dava pelo nome de Farrusco. Quando nasceu parecia estar com o destino marcado para o canil dos abandonados, mas acabou por ser levado para o apartamento de um casal que o tratou bem. Muito bem, aliás. O Farrusco era pequeno, ou melhor, era baixinho, porque em comprimento até se tratava de um cão normal. Era um pastor alemão traçado de cão da Serra da Estrela, segundo creio, só que ficou baixinho, quem sabe se pela falta de leite dos primeiros tempos. A sorte dele tinha mesmo a ver com os donos. Apesar de viver num apartamento, saía à rua várias vezes por dia, e podia namoriscar à vontade e caçar gatos, entre outras tropelias de menor espanto para um cão de cidade.
Uma noite em que estava de visita lá a casa, ofereci-me para levá-lo à rua. Qual não foi a minha surpresa quando de um sítio escuro surgiu uma cadela que depois vim a saber que andava de pensamento firmado no Farrusco (e vice-versa). Os dois correram um para o outro, ela toda à-vontade e o Farrusco a esticar a trela. E eu sem saber o que fazer... A cadela era bem capaz de ter dono, e depois, como seria, o que é que eu inventaria como desculpa para aquilo?
Era um caso para decidir rapidamente, antes que acontecesse o pior. Ora, nem mais; puxei a trela com toda a firmeza, esqueci a atrapalhação que o raio do mecanismo que tinha associado me causava e levei o Farrusco de rojo até à porta do prédio. A cadela seguia-nos, sem se importar que eu a enxotasse, e o Farrusco gania, como se um céu de tempestade lhe fosse desabar em cima. Finalmente, quando chegámos, dei de caras com o dono do Farrusco. Tinha descido entretanto, se calhar prevendo os sarilhos em que eu andava metido. Entreguei-lhe logo a trela.
- Toma! - disse-lhe. - O cão é teu!
Ele, sem dizer nada, agarrou a trela. Deixou-a esticar ao máximo, de forma que o Farrusco e a cadela puderam aproximar-se um do outro. Fiquei de lado a observá-los, e a torcer para que não passasse ninguém por ali. Até que o dono do Farrusco falou:
- Isto tem sido sempre um grande namoro.
Eu, nada. Nem que sim, nem que não. Aproveitei foi para me afastar mais um pouco, porque surgiu um vulto ao fundo da rua. Era um senhor de quem se poderia dizer que andava pela meia-idade, e ia tão metido no sobretudo que eu ainda acreditei que ele não haveria de dar pelo casal de cães. Mas não... Ainda bem não passava por nós, já fazia um ar de escandalizado, perante a cena dos cães com o dono do macho a segurá-lo pela trela. Contudo, não disse nada; e o dono do Farrusco também não. Eu é que não me contive, e disse quase só para mim, quando vi o homem desaparecer do outro lado:
- Este hoje até dispensa a telenovela.
Mal acabava de falar, reparei num novo transeunte, ou melhor, num velho transeunte, porque o homem que tinha surgido de repente nem eu conseguia imaginar de que canto, mais do que meia-idade, tinha uma idade que se calhar se poderia considerar quase completa. A cara era-me familiar. Mas de onde? Eu já o tinha visto muitas vezes, não conseguia era lembrar-me onde. Parecia até que o conhecia de diversos sítios, de diversas profissões, como se ele tivesse o dom da multiplicação. Quem seria ele? E por que é que faria aquela cara de espanto, e também de escândalo, como o outro que tinha passado minutos antes? Com tão grande capacidade de multiplicação, não teria arcaboiço para encarar a situação com naturalidade? Que coisa estranha… Ainda por cima, entrou no prédio. Devia morar lá, mas não cumprimentou o dono do Farrusco, nem fez um simples aceno ao Farrusco.
Só quando o vi desaparecer atrás da porta é que na minha mente se fez luz. Eu conhecia-o de vê-lo na televisão. Era um actor, ainda por cima um que ultimamente andava a aparecer nalgumas séries e em telenovelas. Como é que eu não me tinha lembrado antes?
- É teu vizinho? - perguntei ao dono do Farrusco, que continuava entretido a segurar na trela, enquanto os dois animais se divertiam.
Ele respondeu-me secamente, sem sequer olhar para mim.
- Mora aí.
- Depois disto, deve ter ficado a pensar que o mundo está perdido.
- Ele já há muito tempo que pensa que o mundo está perdido.
- Bom, se é assim...
Finalmente o Farrusco e a cadela separaram-se. Ela afastou-se, a olhar para trás de vez em quando, até se perder no outro lado da rua. O dono do Farrusco continuava sem largar a trela. Tinha-se agachado, a ver se descobria algum gato a dormir debaixo dos carros estacionados à nossa frente. Se visse um, de certeza que lhe soltaria o Farrusco, coisa que pouco me importava. Nessa altura eu sentia-me mais à vontade, já tinha acabado a situação embaraçosa. Mas de gatos nem sinal.
«Mau», pensei, ao ver de novo a cadela. «Vai começar tudo outra vez.»
Mas não, um pouco atrás vinha uma senhora. Devia ser a dona. O Farrusco tentou logo uma investida, mas a senhora enxotou-o. E o dono, desta vez, puxou-lhe a trela com firmeza.
- Eles não tiveram relações, pois não?! - exclamou a senhora. - É que esta marota fugiu-me...
O dono do Farrusco disse que não, tão baixo que a senhora quis confirmar.
- Não?!
- Não - respondeu o dono do Farrusco, sempre com a trela bem segura, como também a senhora tinha agora uma com que controlava a cadela.
- Ela esteve aqui com ele, não esteve?!
- Esteve, mas não aconteceu nada.
- Nada?! De certeza?! - insistiu a senhora. - Não será melhor ela amanhã ir ao veterinário e levar uma injecção para não ficar grávida?!
- Esteja descansada que não é preciso - disse o dono do Farrusco, sustendo os ímpetos do cão.
Eu tinha voltado a afastar-me um pouco.
- Mesmo que tivesse acontecido - acrescentou o dono do Farrusco -, o meu cão é tão pequeno que não havia de dar em nada.
- Acha mesmo?
- Obviamente.
A senhora despediu-se e foi-se embora mais a cadela, que forçava a trela para conseguir olhar para trás.
Eu voltei a aproximar-me e perguntei, curioso:
- A cadela foge muitas vezes?
Não obtive resposta. O dono do Farrusco tinha avistado um gato a passar do outro lado da rua, por isso estava a soltá-lo. Depois de o cão partir a alta velocidade atrás do gato, virou-se para mim, pensativo, e ficou a olhar-me por uns instantes, enquanto colocava um cigarro na boca. Só depois de acendê-lo é que respondeu:
- Foge, foge muitas vezes.


Uma onda, talvez

Isto já tem uns anos. Foi logo a abrir o século, ou melhor, o milénio. Realizou-se em Lisboa um encontro de escritores a que chamaram «Jornadas Ibero-Americanas de Literatura». Decorreu na Casa Fernando Pessoa, no bairro de Campo de Ourique, e nas diversas sessões participaram vários escritores de língua castelhana e de língua portuguesa. Eu integrei o painel de uma das sessões, depois de ter sido surpreendido uns meses antes com um convite feito através de uma chamada para o telemóvel. Mesmo não sabendo do que é que devia falar, aceitei estar presente. Depois, quando soube, fiquei um bocado pensativo, até a dizer a mim próprio que o melhor teria sido não ter aceite o convite. Havia sessões com títulos como «jornalismo e literatura», «contando histórias» ou «recontando a história»; nelas eu talvez estivesse à vontade, mas numa chamada «um mar de palavras», aí eu já não sabia muito bem.
De forma que no início da sessão eu estava um bocado preocupado. Era dos últimos a falar e a verdade é que não tinha muitas certezas sobre o que iria dizer. Mas depois de ouvir alguns dos outros participantes, percebi que o melhor seria ficar tranquilo. Eles ou contavam histórias ou liam excertos dos respectivos livros; nada de referências ao «mar de palavras», com excepção de Jacinto Lucas Pires (o outro português da sessão) e sobretudo do extraordinário escritor angolano Manuel Rui, de quem eu tinha lido um pequeno livro notável chamado «Quem me Dera Ser Onda». Ou seja, por pouco que eu falasse de «mar de palavras», nunca haveria de destoar.
Bom, sobre o tal «mar de palavras», ainda por cima na Casa Fernando Pessoa, o que me apetecia dizer era qualquer coisa como «ó mar salgado de palavras, quanto do teu sal são lágrimas dos escritores de Portugal», mas acabei por não o fazer. Falei foi das duas línguas irmãs, a portuguesa e a castelhana, imensas, ricas, belas, com uma infinidade de soluções. Com a diferença de a castelhana, onde quer que seja falada, ter musicalidade, e a portuguesa só a ter à custa da ajuda dos brasileiros e dos povos africanos lusófonos. Sem eles, a língua portuguesa seria apenas boa para contar, e não para cantar e contar, como a castelhana. Gosto da língua portuguesa como da castelhana e fiz a minha intervenção como se se tratasse de uma só língua, de um único mar imenso de palavras. Transmitindo a esperança de que possamos sempre navegar juntos nessa imensidão, mesmo que por vezes as águas não sejam as mais calmas.
No final, curiosamente, fiquei com a ideia de que valeu a pena ter sido colocado naquele tema; não precisava de me refugiar em histórias, porque o «mar de palavras» não metia medo. Recordo-me de que Manuel Rui, que fez uma intervenção brilhante sobre o mar – «seja o que for o mar, um homem ou uma mulher» –, também mostrou algumas reticências quanto ao tema, creio que proposto pelo chileno Luis Sepúlveda, que fazia de moderador das várias sessões… «Será que hoje, com este assunto para abordar e com este moderador, é que vamos ter o verdadeiro naufrágio de Sepúlveda?», perguntou logo a abrir.
Por falar em «Naufrágio de Sepúlveda», mesmo o verdadeiro, um romance de Vasco Graça Moura, não perco a oportunidade de contar um episódio que aconteceu no jantar que a então vereadora da cultura da Câmara Municipal de Lisboa, Maria Calado, ofereceu aos escritores participantes no encontro. Foi num restaurante da zona de Santa Apolónia, mesmo junto ao rio e por sinal bem in – o Bica do Sapato, do qual eu tinha ouvido dizer que um dos sócios era o actor John Malkovich. Na minha mesa, entre outras pessoas, calhou uma senhora que, ao ver-me de fato e gravata, perguntou-me:
- Você é da câmara, não é?
Disse-lhe que não, que era um dos escritores. E acrescentei:
- Mas sou dos desconhecidos e venho directamente do trabalho.
- Ah!... - admirou-se a senhora.
- Tive o dia cheio de reuniões... - desculpei-me.
- Que engraçado! E qual é o seu trabalho?
- Sou gestor.
Depois de ouvir a minha profissão, ou melhor, uma das minhas profissões da altura, ou talvez devesse dizer actividade, a senhora contou que estava na Comissão dos Descobrimentos – não disse «trabalho na...», disse «estou na...», o que se calhar tinha o seu fundo de verdade. Ao ouvir falar em Comissão dos Descobrimentos, não resisti a falar-lhe de uma vez ter ganho um prémio literário que era promovido pela dita comissão.
- Só que nunca mo entregaram - acrescentei.
A senhora não se atrapalhou.
- Isso deve ser coisa do tempo do Graça Moura – disse ela. – Há quanto tempo é que foi?
Respondi que já tinha sido havia uns 10 anos.
- Pois – disse ela.
Acabei por perguntar-lhe:
- Mas não acha que o que conta são as instituições, não as pessoas que entram e saem?
A senhora fez um sorriso de condescendência e depois disse qualquer coisa como «ó meu jovem...», e a seguir meteu conversa com o editor Manuel Hermínio Monteiro, que viria a falecer algum tempo depois.
Para acabar em beleza, conto um episódio que achei extraordinário. No final da sessão em que participei na Casa Fernando Pessoa, uma outra senhora foi falar comigo. Creio que esta não tinha nada a ver com a Comissão dos Descobrimentos. Era uma senhora de pele escura, o que me fez pensar que poderia ser natural de uma das ex-colónias portuguesas. Falava com entusiasmo de Manuel Rui. A certa altura, perguntou-me:
- Você, que eu ouvi já só na parte final a falar tão apaixonadamente da língua portuguesa e da língua castelhana, diga-me, de que país é?
Respondi-lhe que era de Portugal.
- Hum!... É de Portugal... – pareceu ela estranhar.
E eu confirmei:
- Sim, sou de cá.
Mas às vezes, como diria um dos miúdos do livro de Manuel Rui, o que eu queria mesmo era ser era ser onda.


Um dia sem o Mercedes

Esta história, a última do livro, não é cem por cento real, é uma história – digamos assim – real mas também um bocadinho surreal. Ou seja, o senhor que nela entra como personagem principal saiu mesmo de casa sem o carro para fazer a pé os percursos e as vidas que adiante descrevo. Levou foi com uns malabarismos na descrição, por questões de ritmo, ou seja, é como se a acompanhar o texto houvesse, por exemplo, uma banda a tocar. Cada leitor, já se vê, imagina a música que bem entender. A banda, não muito grande, segue o referido senhor a uma distância tida por compreensível, ou antes, respeitosa; segue-o por cada avenida, por cada beco, por cada corredor, por cada gabinete, e segue também outra pessoa, que no último parágrafo acaba por ser mencionada. Mas vamos à história; como agora há muito quem diga por cá, então é assim…
Num certo dia europeu sem carros, um responsável público bem colocado – colocado, mesmo no sentido de ter sido colocado, entenda-se –, nesse dia, o tal responsável fez o habitual percurso entre a residência e a instituição que superiormente dirigia a pé. Quer dizer, pela opção de não carregar ainda mais nas vírgulas na frase anterior, importa clarificar as coisas, o senhor não dirigia a instituição a pé, embora também não a dirigisse exactamente de pé, pois geralmente até se apresentava um pouco curvado; ainda que, considerando que as grandes decisões vêm sempre de patamares mais arejados do que o seu (seu dele, responsável), não fosse difícil justificar tal deficiência, mesmo sem recorrer a um médico conhecido ou até assíduo frequentador da casa. O que o senhor fez a pé, ou melhor, fez a pé naquele dia europeu sem carros, foi o percurso da residência até ao gabinete. Colaborou, ou melhor, aderiu, sem que isso signifique que foi preciso desdobrar-se (o mais correcto, no caso dele, até seria dizer dobrar-se, coisa que implica menores esforços) em planeamentos, mobilizações e comunicados justificativos.
Bom, o que é certo é que o senhor aderiu ao dia sem carros por essas europas – e por estas do oeste, já agora – e lá se pôs a andar a pé. Aliás, por morar e «trabalhar» em zona interdita a automóveis (não dos oficiais, como o seu, mas usá-lo no referido dia seria provocação a mais para o povo), por causa disso teve mesmo que ser. De nada serviu a vantagem de não morar nos arrabaldes, onde, com dia sem trânsito ou não no centro da cidade, circular seria um teste complicado para o sistema nervoso, e também para o sistema de embraiagem da nova viatura – ainda que com a pertença ao Estado o arranjo só aos respectivos serviços interessasse, e mesmo isso com tendência para desaparecer, com as novas modas de agilização e, sobretudo, «desburrocatrização». E então o senhor bem colocado na hierarquia lá se meteu a fazer o percurso a pé, a palmilhar ruas e avenidas, para cima e para baixo, dado que logo por azar a cidade capital assenta em sete colinas. Às onze da manhã, quase uma hora depois de sair da residência, já transpirava por tudo quanto era poro. Poderia ter usado os transportes públicos – o metropolitano, os autocarros ou algum eléctrico dos dos turistas –, mas e depois, o que é que diriam de um quadro dirigente tão superior, ainda por cima da administração pública, a fazer aquelas figuras? Se fosse um ministro, vá que não vá, o sacrifício seria compensado com as câmaras das televisões a segui-lo por entre apertos, encontrões e amparos de assessores, e com as secretárias sempre atentas para as maquilhações (que não maquinações, que isso é coisa mais para as oposições). Agora ele, apenas dirigente, ou responsável, mesmo que superior, rodeado de povo por todos os lados, e sem ser em época de eleições, aquela em que o apoio a quem o nomeou fica sempre bem e até se recomenda… Fora disso, o mínimo que poderiam dizer era que se tratava de um sacrilégio.
Usar a bicicleta ou a trotineta, nem pensar, que as vias das europas cá do oeste não ajudavam muito, tal como a barriga bem tratada e o fraco sentido de equilíbrio do senhor. Sentido de equilíbrio, compreenda-se, em termos de malabarismos sobre duas rodas, porque a outro nível, por exemplo no falar, onde não há alto dirigente curvado que não o tenha, aí as coisas fiam mais fino. Também a opção pelo cavalo não haveria de ser a melhor – por certo geraria falatórios acerca de algum enriquecimento demasiado rápido, ou outra calabrice do género – e o popularucho burro na volta ainda propiciava anedotas e até escárnios (além dos sempre inconvenientes zurros), apesar de ele próprio, o senhor, não o burro, já em tempos ter dado o seu aplauso a uma entrada na cidade de um burro em competição com um Ferrari. Enfim, somando as duas máquinas, o burro e o Ferrari (nunca o senhor), e dividindo por dois, sempre daria um bom Mercedes, afinal a marca que à data – a daquele dia europeu sem carros – superiormente atribuíam ao seu cargo dirigente. Seu dele, senhor (e nada burro).
Ao chegar à instituição, o senhor, parecendo-lhe que o fôlego já não o deixava com grande coragem para decidir sobre coisas importantes para a vida dos cidadãos (papelada, despachos e mais papelada), suspirou de alívio. Por sorte, tinha escapado às televisões naquele aspecto de o melhor ser nem dar a cara, a suar que nem um perdido (perdido apenas, não perdido bêbado). Depois de assentar praça no gabinete (expressão não muito feliz, assentar praça no gabinete, ainda que ele no gabinete e na praça fizesse sempre o mesmo, andasse de um lado para o outro, só que na praça com mais raio de acção), depois disso iria aproveitar para dar seguimento às «exigências» do cargo até chegar a hora do almoço. Então, nova jornada a pé até um restaurante de jeito, que os havia abertos mesmo num dia europeu sem carros. Aí, no restaurante de jeito, ou melhor, à entrada, já poderia aparecer perante as câmaras e até prestar algumas declarações, inclusive à imprensa, às rádios e aos portais informativos, para contribuir para o avolumar dos inquéritos de rua a responsáveis superiores ou, dizendo de outra forma, dirigentes superiores. Devidamente limpo e relimpo, à custa de lenços e toalhetes em abundância – que os há na administração pública –, e com o fôlego restaurado (ou antes, recuperado, que fica melhor num republicano), nessa pouco humilde condição tudo haveria de parecer diferente.
O pior era o regresso à residência, para o seio da família, outra vez a subir e a descer pelas sete colinas. Valia-lhe a presença constante do motorista, caminhando invariavelmente dois metros à frente para desimpedir o caminho e assegurar a credibilidade do piso. Até aí o motorista tinha-se saído bem, da residência ao gabinete e deste ao restaurante, inclusive com melhor performance (isto para usar um termo quase técnico) do que nos outros dias, ao volante do Mercedes, que era novo de um mês e meio, depois da decisão superior de acabar com tudo o que fosse BMW ao serviço de dirigentes que estivessem naquele nível, ou melhor, no nível daquele senhor. E com o tempo o motorista haveria de habituar-se, à semelhança do senhor a que naquele dia tão briosamente desimpedia o caminho pelas ruas da cidade. Até porque também, podia-se dizer com franqueza, entre o BMW e aquele novo Mercedes quase não havia diferenças. A mudança, já agora, tinha resultado de uma mera opção pela alternância, porque senão, mais ano menos ano, o mais certo seria surgir algum falatório, «sempre a mesma marca!, sempre a mesma marca!, uns são filhos e outros são enteados!, e outros são uns filhos da puta!, e resta saber quanto é que eles largam para terem o contrato!...» Enfim, como talvez acrescentasse algum secretário de Estado, ou até algum ministro, se tivesse oportunidade de pronunciar-se, «aquelas coisas desagradáveis que toda a gente conhece e que não custa nada evitar atempadamente que venham a acontecer, com medidas simples, eficazes e sobretudo capazes de introduzir alguma moralização».