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sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A figueira

À entrada da década de 1980, as notícias dos grandes duelos mundiais de xadrez traziam quase sempre dois nomes associados, Anatoli Karpov e Victor Kortchnoi. Era à volta destes dois mestres soviéticos que tudo parecia girar. Mas um outro nome começava a emergir, também russo, parecido com Karpov mas mais comprido. Garry Kasparov, nascido em 1963 em Baku, capital do actual Arzebaijão (então uma das repúblicas da União Soviética), já se tornara notado no mundo do xadrez. Corajoso, irreverente, agressivo e perfeccionista, Kasparov desafiou Karpov, o campeão mundial, em 1984. A partida durou seis meses, tornando-se a mais longa na história do xadrez. Foi parada pelo presidente da federação internacional da modalidade, que ordenou que se disputasse uma nova partida. Em Novembro de 1985, Kasparov ganhou o denominado rematch contra Karpov e tornou-se campeão mundial. Tinha 22 anos e era o jogador mais novo a consegui-lo.
Passados mais de 20 anos, assisti a uma conferência de Kasparov, no Estoril. Pareceu-me com a mesma coragem, a mesma irreverência, até a mesma agressividade (sobretudo em relação a alguma coisa ou a alguém que a pudesse justificar; por exemplo, Vladimir Putin). Vi-o a falar para quadros de empresas, a falar de estratégias, de tácticas, de inovação, de tudo o que rodeia a tomada de decisão numa organização. Sem perder de vista o xadrez e os seus exemplos para o mundo da gestão, não se esqueceu da sua condição de activista político, comprometido, empenhado em que o seu país conhecesse uma mudança capaz de fazer com que por lá se pudesse respirar plenamente os ares da democracia. E também falou de gurus da gestão, como Peter Drucker; de empreendedores, como Elisha Graves Otis ou William Edward Boeing; e de Thomas Edison, de Winston Churchill, do inevitável Sun Tzu, de nomes grandes do xadrez, de John F. Kennedy e inclusive de Cristóvão Colombo.
Até que na parte final, com alguma surpresa, pelo menos para mim, falou de cinco portugueses. Cinco figuras de épocas tão diferentes como a dos descobrimentos, a da criminosa ditadura salazarista ou a actualidade. Considerou-os a todos notáveis: dois navegadores, Gil Eanes e Vasco da Gama; um militar que se destacou sobretudo como político, Humberto Delgado; um futebolista, Eusébio; e um escritor, José Saramago. O que recordo mais foi o que disse do Nobel português, para ilustrar um dos tópicos que abordou, o da inovação. Não o fez pela opção única de Saramago escrever com uma pontuação bem peculiar, marcada sobretudo pela frugalidade, que permite uma leitura ao ritmo da própria respiração. Fê-lo por algo que para ele também é propício à inovação, à capacidade de inovar: as dificuldades da vida, principalmente aquelas que são experimentadas em criança. Para isso, Kasparov recorreu mesmo a uma frase de Saramago: «As crianças crescem melhor à sombra do que ao sol.» Naquela altura, ouvindo o homem de Baku, lembrei-me de uma outra sombra, absolutamente fantástica, do criador de «Memorial do Convento», a de uma figueira junto da qual, nas tardes de Verão, o rapazito Saramago se deitava muitas vezes, para se proteger do calor. Lembrei-me disso. A mesma figueira que depois, a cada noite, o voltava a acolher; a ele, o rapazito Saramago, que embalado pelas histórias do avô via as estrelas por entre os ramos. Como escreve no discurso de Estocolmo… «No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea…»
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sexta-feira, 18 de junho de 2010

José Saramago (1922-2010)

«No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea…» Assim falou Saramago dos seus tempos de criança. Foi em estocolmo. Ele terá sempre um lugar entre as estrelas. E talvez agora esteja a observar-nos.
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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A inquisição já não é o que era

No século XXI, os inquisidores já não ordenam a ida para a fogueira, limitam-se a sugerir que se abdique da nacionalidade. Antes eram perigosos, agora são simplesmente patéticos.
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domingo, 18 de outubro de 2009

Saramago no autocarro

Já em tempos tinha escrito aqui sobre a presença de Saramago em Montemor. Deixo agora um acrescento, Saramago no autocarro.
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segunda-feira, 1 de junho de 2009

No Dia da Criança, uma história

Uma história muito, mesmo muito bonita. Para ver aqui. Explicada pelo autor aqui. .

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Quase todos os nomes

Li há dias uma entrevista de Isabel da Nóbrega (revista «Tabu», do «Sol»). Gostei muito da entrevista, e recomendo a sua leitura. Mas não é esta recomendação que agora me leva a escrever isto. Não, escrevo por causa de uma das respostas da escritora e cronista, que durante muitos anos foi companheira de José Saramago.
Há dois romances de Saramago que para mim são inesquecíveis: o «Levantado do Chão» e o «Memorial do Convento». Os outros, falha minha, certamente, nunca me prenderam por aí além, apesar das tentativas com vários deles. Nessas tentativas ganhei uma aversão especial a um, «O Ano da Morte de Ricardo Reis», tantas vezes falado, por tantas pessoas; inclusive creio que Saramago conheceu a actual mulher por causa desse romance, que a levou a viajar até Lisboa para lhe fazer uma entrevista. A história, lembro-me da leitura das primeiras páginas, chateava-me, mas na volta nem era bem a história, era o nome escolhido para uma personagem: Marcenda. Como tantas das personagens de Saramago, aquela tinha um nome que me parecia uma escolha pouco feliz.
Agora, na entrevista de Isabel da Nóbrega, lembrei-me do meu problema com os nomes de Saramago. Na resposta fica-se a saber como ela salvou o Nobel de mais um estampanço. Deixo aqui um excerto… «Quanto à Blimunda [protagonista de ‘Memorial do Convento’]: ele escreveu o livro, eu disse que não queria lê-lo senão no fim e, quando comecei a ler, o que vi? O nome [Baltasar]» Sete-Sóis e ela era Mariana Amália. E eu: ‘Mariana Amália?! Mas ele endoideceu! Não há direito de pôr Mariana Amália na figura desta mulher.’ Chamei-o: ‘Está lindo, está tudo certo menos uma coisa que tens de emendar – Mariana Amália. Tem paciência, quando foste à biblioteca e recolheste nomes de época, hás-de ter encontrado um que se possa ver’. Ele voltou para a secretária – isto para aí à uma da manhã –, e daí a um bocado apareceu e começou a dizer nomes. Ouvi ‘Blimunda’, pedi-lhe que voltasse atrás e, quando repetiu o nome: Ó Zé, parece impossível! Como é que tinhas este nome na tua lista e não viste que aquela mulher é exactamente Blimunda?’. Pegou no manuscrito, que era enorme, e foi emendar tudo, tirar Mariana Amália e pôr Blimunda.»
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sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Os novos romances de Saramago e Rodrigues dos Santos

Este ano, pela primeira vez, dá para acompanhar de perto a Feira de Frankfurt, principalmente com a ajuda do Francisco José Viegas no blog da revista «Ler» e dos autores do Blogtailors. Foi aliás deste último blog que tirei estas fotos das capas dos novos romances de José Saramago e José Rodrigues dos Santos, «A Viagem do Elefante» e «A Vida num Sopro». Considerando as duas imagens, parece que a mulher na estação dos comboios está a fazer um enorme esforço para conseguir ver o elefante roxo, que se afasta devagar não se sabe para onde.
.(clicar nas imagens para aumentar)
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terça-feira, 19 de agosto de 2008

O início da viagem

O início de «A Viagem do Elefante», o novo romance de José Saramago (tirado daqui).
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Não há vento, porém a névoa parece mover-se em lentos turbilhões como se o próprio bóreas, em pessoa, a estivesse soprando desde o mais recôndito norte e dos gelos eternos. O que não está bem, confessemo-lo, é que, em situação tão delicada como esta, alguém se tenha posto aqui a puxar o lustro à prosa para sacar alguns reflexos poéticos sem pinta de originalidade. A esta hora os companheiros da caravana já deram com certeza pela falta do ausente, dois deles declararam-se voluntários para voltar atrás e salvar o desditoso náufrago, e isso seria muito de agradecer se não fosse a fama de poltrão que o iria acompanhar para o resto da vida, Imaginem, diria a voz pública, o tipo ali sentado, à espera de que aparecesse alguém a salvá-lo, há gente que não tem vergonha nenhuma. É verdade que tinha estado sentado, mas agora já se levantou e deu corajosamente o primeiro passo, a perna direita adiante, para esconjurar os malefícios do destino e dos seus poderosos aliados, a sorte e o acaso, a perna esquerda de repente duvidosa, e o caso não era para menos, pois o chão deixara de poder ver-se, como se uma nova maré de nevoeiro tivesse começado a subir. Ao terceiro passo já não consegue nem sequer ver as suas próprias mãos estendidas à frente, como para proteger o nariz do choque contra uma porta inesperada. Foi então que uma outra ideia se lhe apresentou, a de que o caminho fizesse curvas para um lado ou para o outro, e que o rumo que tomara, uma linha que não queria apenas ser recta, uma linha que queria também manter-se constante nessa direcção, acabasse por conduzi-lo a páramos onde a perdição do seu ser, tanto da alma como do corpo, estaria assegurada, neste último caso com consequências imediatas. E tudo isto, ó sorte mofina, sem um cão para lhe enxugar as lágrimas quando o grande momento chegasse. Ainda pensou em voltar para trás, pedir abrigo na aldeia até que o banco de nevoeiro se desfizesse por si mesmo, mas, perdido o sentido de orientação, confundidos os pontos cardeais como se estivesse num qualquer espaço exterior de que nada soubesse, não achou melhor resposta que sentar-se outra vez no chão e esperar que o destino, a casualidade, a sorte, qualquer deles ou todos juntos, trouxessem os abnegados voluntários ao minúsculo palmo de terra em que se encontrava, como uma ilha no mar oceano, sem comunicações. Com mais propriedade, uma agulha em palheiro. Ao cabo de três minutos, dormia. Estranho animal é este bicho homem, tão capaz de tremendas insónias por causa de uma insignificância como de dormir à perna solta na véspera da batalha. Assim sucedeu. Ferrou no sono, e é de crer que ainda hoje estaria a dormir se salomão não tivesse soltado, de repente, em qualquer parte do nevoeiro, um barrito atroador cujos ecos deveriam ter chegado às distantes margens do ganges. Aturdido pelo brusco despertar, não conseguiu discernir em que direcção poderia estar o emissor sonoro que decidira salvá-lo de um enregelamento fatal, ou pior ainda, de ser devorado pelos lobos, porque isto é terra de lobos, e um homem sozinho e desarmado não tem salvação ante uma alcateia ou um simples exemplar da espécie. A segunda chamada de salomão foi mais potente ainda que a primeira, começou por uma espécie de gorgolejo surdo nos abismos da garganta, como um rufar de tambores, a que imediatamente se sucedeu o clangor sincopado que forma o grito deste animal. O homem já vai atravessando a bruma como um cavaleiro disparado à carga, de lança em riste, enquanto mentalmente implora, Outra vez, salomão, por favor, outra vez. E salomão fez-lhe a vontade, soltou novo barrito, menos forte, como de simples confirmação, porque o náufrago que era já deixara de o ser, já vem chegando, aqui está o carro da intendência da cavalaria, não se lhe podem distinguir os pormenores porque as coisas e as pessoas são como borrões indistintos, outra ideia se nos ocorreu agora, bastante mais incómoda, suponhamos que este nevoeiro é dos que corroem as peles, a da gente, a dos cavalos, a do próprio elefante, apesar de grossa, que não há tigre que lhe meta o dente, os nevoeiros não são todos iguais, um dia se gritará gás, e ai de quem não levar na cabeça uma celada bem ajustada. A um soldado que passa, levando o cavalo pela reata, o náufrago pergunta-lhe se os voluntários já regressaram da missão de salvamento e resgate, e ele respondeu à interpelação com um olhar desconfiado, como se estivesse diante de um provocador, que havê-los já os havia em abundância no século dezasseis, basta consultar os arquivos da inquisição, e responde, secamente, Onde é que você foi buscar essas fantasias, aqui não houve nenhum pedido de voluntários, com um nevoeiro destes a única atitude sensata foi a que tomámos, manter-nos juntos até que ele decidisse por si mesmo levantar-se, aliás, pedir voluntários não é muito do estilo do comandante, em geral limita-se a apontar tu, tu e tu, vocês, em frente, marche, o comandante diz que, heróis, heróis, ou vamos sê-lo todos, ou ninguém. Para tornar mais clara a vontade de acabar a conversa, o soldado içou-se rapidamente para cima do cavalo, disse até logo e desapareceu no nevoeiro. Não ia satisfeito consigo mesmo. Tinha dado explicações que ninguém lhe havia pedido, feito comentários para que não estava autorizado. No entanto, tranquilizava-o o facto de que o homem, embora não parecesse ter o físico adequado, deveria pertencer, outra possibilidade não cabia, pelo menos, ao grupo daqueles que haviam sido contratados para ajudar a empurrar e puxar os carros de bois nos passos difíceis, gente de poucos falares e, em princípio, escassíssima imaginação. Em princípio, diga-se, porque ao homem perdido no nevoeiro imaginação foi o que pareceu não lhe ter faltado, haja vista a ligeireza com que tirou do nada, do não acontecido, os voluntários que deveriam ter ido salvá-lo. Felizmente para a sua credibilidade pública, o elefante é outra coisa. Grande, enorme, barrigudo, com uma voz de estarrecer os tímidos e uma tromba como não a tem nenhum outro animal da criação, o elefante nunca poderia ser produto de uma imaginação, por muito fértil e dada ao risco que fosse. O elefante, simplesmente, ou existiria, ou não existiria. É portanto hora de ir visitá-lo, hora de lhe agradecer a energia com que usou a salvadora trombeta que deus lhe deu, se este sítio fosse o vale de josafá teriam ressuscitado os mortos, mas sendo apenas o que é, um pedaço bruto de terra portuguesa afogado pela névoa onde alguém (quem) esteve a ponto de morrer de frio e abandono, diremos, para não perder de todo a trabalhosa comparação em que nos metemos, que há ressurreições tão bem administradas que chega a ser possível executá-las antes do passamento do próprio sujeito. Foi como se o elefante tivesse pensado, Aquele pobre diabo vai morrer, vou ressuscitá-lo. E aqui temos o pobre diabo desfazendo-se em agradecimentos, em juras de gratidão para toda a vida, até que o cornaca se decidiu a perguntar, Que foi que o elefante lhe fez para que você lhe esteja tão agradecido, Se não fosse ele, eu teria morrido de frio ou teria sido comido pelos lobos, E como conseguiu ele isso, se não saiu daqui desde que acordou, Não precisou de sair daqui, bastou-lhe soprar na sua trombeta, eu estava perdido no nevoeiro e foi a sua voz que me salvou, Se alguém pode falar das obras e feitos de salomão, sou eu, que para isso sou o seu cornaca, portanto não venha para cá com essa treta de ter ouvido um barrito, Um barrito, não, os barritos que estas orelhas que a terra há-de comer ouviram foram três. O cornaca pensou, Este fulano está doido varrido, variou-se-lhe a cabeça com a febre do nevoeiro, foi o mais certo, tem-se ouvido falar de casos assim, Depois, em voz alta, Para não estarmos aqui a discutir, barrito sim, barrito não, barrito talvez, pergunte você a esses homens que aí vêm se ouviram alguma coisa. Os homens, três vultos cujos difusos contornos pareciam oscilar e tremer a cada passo, davam imediata vontade de perguntar, Onde é que vocês querem ir com semelhante tempo. Sabemos que não era esta a pergunta que o maníaco dos barritos lhes fazia neste momento e sabemos a resposta que lhe estavam a dar. Também não sabemos se algumas destas coisas estão relacionadas umas com as outras, e quais, e como. O certo é que o sol, como uma imensa vassoura luminosa, rompeu de repente o nevoeiro e empurrou-o para longe. A paisagem fez-se visível no que sempre havia sido, pedras, árvores, barrancos, montanhas. Os três homens já não estão aqui. O cornaca abre a boca para falar, mas torna a fechá-la. O maníaco dos barritos começou a perder consistência e volume, a encolher-se, tornou-se meio redondo, transparente como uma bola de sabão, se é que os péssimos sabões que se fabricam neste tempo são capazes de formar aquele maravilhas cristalinas que alguém teve o génio de inventar, e de repente desapareceu da vista. Fez plof e sumiu-se. Há onomatopeias providenciais. Imagine-se que tínhamos de descrever o processo de sumição do sujeito com todos os pormenores. Seriam precisas, pelo menos, dez páginas. Plof.
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Viagem acabada

José Saramago acabou a escrita do seu novo romance, «A Viagem do Elefante». Um texto de Pilar del Rio, além de outras informações, aqui.
«'A Viagem do Elefante' é um livro coral onde as personagens entram, saem e se renovam de acordo com as peculiares exigências narrativas que o autor se impôs e lhes impôs. O elefante e o seu cornaca têm nome, como outras personagens que figuram nos manuais de história, embora apareçam também pessoas anónimas, gente com quem os membros da caravana se vão cruzando e com quem partilham perplexidades, esforços ou a harmoniosa alegria de um tecto depois de tantas noites dormidas à intempérie.» Pilar del Rio
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sábado, 16 de agosto de 2008

Dois textos sobre Saramago (2)

Segundo de dois textos sobre José Saramago (o primeiro foi publicado neste blog há poucos dias). O autor é o meu amigo António Souto, que os escreveu para uma crónica («Ex-abrupto») que mantém no jornal da sua terra («Jornal D’Angeja»). Este segundo texto é o da edição de Julho.

Da estupidez dos homens
Na crónica anterior (de Junho) referimo-nos à personalidade e à escrita de José Saramago, nosso Nobel da Literatura (1998). Aí mencionámos, de raspão, a infeliz intervenção de um «aspirante a censor» que viria a manchar, já em regime democrático, a nossa liberdade de Abril.
Volto de novo ao assunto depois de ter ido visitar, ao Palácio Nacional da Ajuda, a exposição (já encerrada ao público desde 27 de Julho) intitulada «A Consistência dos Sonhos». Organizada e inaugurada em Espanha, por comissário espanhol, esta exposição traça cronologicamente toda a vida e obra de José Saramago – um universo de sonhos alimentados em criança (em vida áspera iniciada no campo), em jovem (em trabalhos e estudos de constante abnegação e luta) e em adulto (em nome de muitos 'outros' e com a escrita como mester). Uma exposição cuidadosa que enobrece o homenageado e que nos orgulha a nós, portugueses como ele.
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No entanto, nesta mostra biobibliográfica, há dois apontamentos ‘verdadeiros’ que nos envergonham e que nos devem fazer pensar sobre a ignorância e estupidez dos homens, bem como sobre a cegueira política (razões de sobra para lermos «Ensaio sobre a Cegueira» e «Ensaio sobre a Lucidez», ambos de Saramago).
1 – Em 1992, era Cavaco Silva primeiro-ministro e Santana Lopes secretário de estado da Cultura, houve um subsecretário de estado deste último (de seu nome Sousa Lara) que vetou o nome de Saramago – e o seu livro «O Evangelho segundo Jesus Cristo» – para o Prémio Literário Europeu, com o argumento de que este livro não representava Portugal e que atacava «princípios que têm a ver com o património religioso dos portugueses» e, portanto, «longe de os unir, dividiu-os» (Sousa Lara, debate sobre a Cultura na Assembleia da República, Abril de 1992). Tentando justificar esta sua decisão de veto, afirma peremptoriamente: «Esta minha atitude nada tem a ver com estratégias de venda, nem sequer com opções literárias. E muito menos com as escolhas políticas de Saramago. Não entrou em linha de conta o facto de ele ser comunista ou pertencer à Frente Nacional para a Defesa da Cultura» («Público», 25 de Abril de 1992). Acção indigna, esta, que fez com que Saramago transferisse a sua residência para Espanha, para a ilha de Lanzarote, onde ainda hoje vive com a sua mulher Pilar del Rio. Foram precisos vários anos, mais de dez, para que Durão Barroso, em jeito de ‘pedido de desculpa’, condenasse «em absoluto» um acto discriminatório proferido por um governo igualmente do seu partido político e reatasse as boas relações do escritor com Portugal.
2 – Em 1997, quando a Escola Secundária de Mafra propôs para seu patrono o nome de José Saramago, a Assembleia Municipal de Mafra e o respectivo Executivo negaram esta pretensão, através de uma deliberação que a exposição «A Consistência dos Sonhos» dá a ler aos visitantes. A razão principal prendia-se com a publicação, pelo escritor, do livro «Memorial do Convento», obra que em nada valorizava Mafra e os mafrenses, assim mesmo. Por ironia do destino, este romance (que inspirou uma ópera – «Blimunda» – escrita pelo compositor italiano Azio Corghi, estreada em 1990, em Milão) é hoje livro obrigatório de leitura integral no 12º ano de escolaridade. O Ministério da Educação, contudo, contrariando a extenuada argumentação camarária, acabaria por aprovar a designação de «Escola Secundária José Saramago» àquele estabelecimento de ensino.
Também por ironia, ou por valia, em 1998 é atribuído o Prémio Nobel da Literatura a José Saramago, pela sua vasta e singular obra. Está bem de ver que a autarquia mafrense ficou numa situação algo incómoda, de difícil digestão, a tal ponto que em Dezembro do ano passado, e pela mão do mesmo Presidente da Câmara de então, Ministro dos Santos, o Executivo decidiu atribuir a medalha de mérito, categoria de ouro, ao escritor José Saramago, pela sua obra «Memorial do Convento».
Saramago, que faltou à cerimónia, entendeu, porém, receber a distinção, não sem antes declarar: «Que méritos tenho hoje que me faltassem ontem? O meu primeiro e natural impulso foi rejeitar, mas depois pensei na fidelidade, na constância com que durante aquele tempo os meus leitores de Mafra sofreram comigo a repugnante injustiça. Será pois por gratidão a eles, e só por gratidão a eles, que aceitei o distintivo.»
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Assim se faz a história de um homem que, no alto dos seus oitenta e seis anos, já não aspira a mais merecimentos ou a quaisquer fingidas bajulações.
Assim se faz e desfaz a história de outros homens, bem mais pequenos, que dificilmente sairão da sua reconhecida estupidez.
Felizmente que há quem faça exposições como esta, de sonhos sustentados, para bem da História.
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terça-feira, 12 de agosto de 2008

Dois textos sobre Saramago (1)

Primeiro de dois textos sobre José Saramago (o segundo publicarei por estes dias). Foram escritos pelo meu amigo António Souto para uma crónica («Ex-abrupto») que mantém no jornal da sua terra («Jornal D’Angeja»); este é o da edição de Junho.
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Saramago, depois do limbo
Estamos (ainda) em mês de santos populares [escrito em Junho passado]. Já lá vão o Santo António e o São João, e o São Pedro, à hora em que fecho esta crónica, está mesmo por um fio.
Também já lá vão o europeu e a selecção e o Scolari e as bandeiras ao vento e o sonho de sermos campeões… De sermos, que é como quem diz, que eu nunca alimentei esperanças, sequer embarquei nesta onda arrebatadora a roçar o delírio, que há coisas mais graves e preocupantes, coisas que nos deveriam igualmente convocar e solidarizar, coisas que com menos milhões (de euros) tornariam certamente muito mais felizes muitos mais milhões (de seres). Mas, desditosamente, somos assim, passada que é a bola, abandonamos o campo e partimos para férias, cada um para seu lado, e felizes sempre, enquanto não (nos) atormentarem as contas e as dívidas.
Ah, e também já lá vai o Menezes (e só não foi o Santana ou porque já fora ou porque teima em «andar por aí») e já lá vai a estação da chuva. Agora só orvalho e sol, e um ventozinho que, por ser vento, semelhante e permanentemente vai.
Mas, como no dizer do poeta (Manuel Alegre), «há sempre alguém que resiste»…
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Saramago. José Saramago. Nobel da Literatura. Um dia destes, numa entrevista, afirmou mais ou menos isto: «Para que é que havemos de querer saber o que é o inferno se estamos num e não somos capazes de sair dele?».
Há quem o considere demasiado de esquerda, um arreigado comunista, demasiado ortodoxo, por natureza um insatisfeito, um pessimista. Poderá ser tudo quanto quiserem que ele seja, mas é sem dúvida um homem de princípios e de valores, um homem de coerência e de consciência – «Eu sou um privilegiado, mas a maior parte da humanidade não é.»
Conheci pessoalmente Saramago em Estrasburgo, em 7 de Fevereiro de 1997, quando ali se deslocou, a convite da FNAC, para apresentar o seu livro «Ensaio sobre a Cegueira» em tradução francesa («L’Aveuglement»). Álvaro Guerra (escritor e, na ocasião, embaixador junto do Conselho da Europa) apresentou José Saramago; eu, que ali ensinava na universidade, apresentei sumariamente o romance. Foi um fim de tarde agradável que terminaria num restaurante alsaciano, junto à catedral, em amena cavaqueira. A senhora embaixatriz e a esposa do escritor, Pilar del Rio, completavam o requinte do encontro. Uma surpreendente descoberta – a do homem por detrás do escritor, a do escritor humanamente incansável. Um ano mais tarde, era ele o nosso Nobel da Literatura.
Depois desse encontro, vi-o mais duas vezes, na Feira do Livro de Lisboa. Há pouco mais de um ano, ia vê-lo de novo, na capital, mas adoecera e voltava apressado para Lanzarote, onde vive (por culpa de um aspirante a censor que, pelos vistos, sobreviveu ao 25 de Abril e alguém convidou para um governo de má memória).
Agora voltei a vê-lo, a Saramago, já restabelecido e lúcido como sempre, mas na televisão. Numa entrevista. A falar dos outros e de si, que é quase a mesma coisa, sobretudo quando o fundamento da (sua) escrita reside no cuidado por aqueles de quem muito pouca gente fala. Aqueles que não têm nome, massa anónima como aquela que em «Memorial do Convento» se relata em trabalhos forçados por extravagância de um rei – (...) «já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais» (...).
Lembrou potenciais escritores que poderiam ter sido «nobelizados», como Aquilino Ribeiro ou Miguel Torga (Pessoa, não, porque, como afirmou, nem nós o conhecíamos na sua altura, quanto mais os suecos!), mas registou igualmente novos talentos promissores (tudo Josés, curiosamente), como o José Eduardo Agualusa, o José Luís Peixoto ou o José Riço Direitinho.
Recordou a recente enfermidade que quase o ceifou – «Da morte, sei que estive já à porta, mas não entrei, estive assim num limbo… Mas sempre com uma enorme serenidade.»
E da razão de escrever agora livros mais pequenos, confessa: «O que acontece é que aos 85 anos o calendário tem importância, o tempo que resta torna-se mais reduzido, e é sempre uma preocupação pensar que não se tem tempo de acabar um livro (hoje, dificilmente me lançaria na escrita de um ‘Memorial do Convento’).»
Já no fim da entrevista, e quando perguntado sobre como gostaria de ser recordado, a resposta, metaforicamente ao seu jeito, foi a seguinte: «Como aquele tipo que fez como o cão que bebeu as lágrimas a uma mulher [alusão clara a «Ensaio sobre a Cegueira»]. Aquele cão que teve compaixão de um ser que estava em desespero e, não podendo fazer nada por ele, lhe secou as lágrimas.»
Isto bastou para lhe sabermos, uma vez mais, a grandeza de alma, para lhe compreendermos a bondade da escrita, para o continuarmos a admirar em cada obra. Isto bastaria, a nosso ver, para lhe justificar o Nobel. Mas há, seguramente, quem nunca lho perdoe…

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quarta-feira, 11 de junho de 2008

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Edição de Junho da revista «Ler»

Está aqui a capa. Com Saramago, ao que parece, a responder às bocas um bocado parvas que Lobo Antunes lhe atirou há um mês. No blog da revista voltaram a fazer suspense sobre a capa, mas desta vez não valia a pena, porque via-se logo no primeiro quadradinho que se tratava de Saramago, coisa que foi confirmada no segundo e no terceiro (onde até os pulsos do Nobel apareciam). A verdade é que Saramago já se tinha deixado fotografar para outras entrevistas com aquele pullover branco, daí que o jogo desta vez não tenha funcionado, ao contrário do que aconteceu há um mês com Lobo Antunes. Mais uma curiosidade, nesta foto da capa da «Ler», não sei por quê, Saramago faz lembrar vagamente o ET.

domingo, 13 de abril de 2008

Palavras de Saramago

Estão em todas as entradas da cidade de Montemor-o-Novo, placas vermelhas com uma adaptação da frase com que termina o romance «Levantado do Chão», de José Saramago; a frase de um dia feliz, com gente viva e com fantasmas, todos em grandes cantorias… «E à frente, dando os saltos e as corridas da sua condição, vai o cão Constante, podia lá faltar, neste dia levantado e principal.»
Nas entradas de cada uma das freguesias também há placas, mas essas não vão buscar nada a Saramago, tirando as de Lavre, onde o escritor viveu para fazer o romance; aí a frase é logo a primeira – «O que mais há na terra, é paisagem.»

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Saramago

Faz hoje 85 anos. José Saramago. Pelos meus tempos de faculdade, devia o curso ir a meio, li pela primeira vez alguma coisa escrita por ele. Isto… «D. João, quinto de nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente…» Li pela noite fora, uma edição do Círculo de Leitores de «Memorial do Convento» que me tinha chegado juntamente com o fantástico «Adeus, Princesa», de Clara Pinto Correia. Aquela escrita que me espantava a cada página foi das coisas que mais me ensinou no mundo dos livros.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Começos prometedores - 9

«Foi ele que avisou que Agustina Bessa Luís ‘corre o risco muito sério de adormecer ao som da sua própria música’.»
Início do ensaio «Obscuro, crítico, 45 anos», incluído no livro «José Saramago – A Luz e o Sombreado», de Fernando Venâncio, 2000 (ed. Campo da Letras); o ensaio, sobre a actividade de Saramago como crítico na «Seara Nova» (anos 60 do século passado), foi originalmente publicado em 1994, no «Jornal de Letras».

domingo, 29 de julho de 2007

Ainda aquela coisa da união com Espanha

Estranho, muito estranho, o editorial de José António Saraiva no «Sol», este Sábado. Ainda o caso Saramago e da sua despropositada Ibéria. Saraiva, pelo que percebi, tem uma posição contrária, ou pelo menos defende que a nossa independência depende apenas de nós, da nossa vontade (ainda bem que não é da de Saramago). Há uns tempos, ainda no «Expresso», o arquitecto foi um dos «pioneiros» desta ideia manhosa da união com Espanha, mas felizmente agora parece que a coisa lhe passou. Terá mudado mesmo de opinião com a passagem de um semanário para outro?
Curiosamente, no mesmo dia, num dos cadernos do «Expresso», Francisco Belard faz uma revelação. Nos anos 80 do século passado, Saramago, nos bastidores de um encontro de escritores ibéricos – em que parece que os escritores o que mais fizeram foi andar às turras –, terá dito que «de Espanha nem bom vento nem bom casamento». Se não estava apenas a declamar provérbios, não deixa de ter a sua piada.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

domingo, 15 de julho de 2007

E a revolução lusitana?

Não sei se Saramago é profeta (ele diz que não é), mas esta coisa da Espanha alargada à nossa custa, ou da Ibéria, tipo teoria do arquitecto Saraiva, deixa-me muito triste. Não com a perspectiva – não me parece que possa acontecer –, mas com a insistência nela de determinadas pessoas (portuguesas), sobretudo das que são bastante conhecidas. Gosto muito de Espanha, é mesmo o país de que mais gosto depois de Portugal, mas daí a uniões… Só se fosse para no mesmo dia começar logo a fazer uma revolução lusitana, na volta até com o apoio do próprio Saramago, se entretanto se arrependesse.