Histórias de futebol

Nesta página pode ser lido na íntegra o meu livro de histórias de futebol «Os Golos de Jardel Nunca Foram Imortalizados numa Canção». Das dezenas que escrevi sobre o tema, para jornais e revistas, seleccionei quinze que me parecem intemporais.
A foto abaixo mostra a equipa do Sporting que alinhou de início no jogo que fechou o campeonato de 2001/ 2002, frente ao Beira Mar, a cinco de Maio de 2002. O último título de campeão do meu clube, com Mário Jardel de pé, do lado esquerdo, e que nesse jogo faria dois dos seus quarenta e dois golos no campeonato, mesmo tendo chegado ao clube com três jornadas já decorridas.








OS GOLOS DE JARDEL
NUNCA FORAM IMORTALIZADOS NUMA CANÇÃO

 Algumas histórias de futebol





António Manuel Venda















«Eu faço os meus prognósticos nos intervalos dos jogos.»
Poema de Daniel Maia-Pinto Rodrigues



As histórias: 
- Os golos de Jardel nunca foram imortalizados numa canção
- O meu primeiro livro
- A escolha de Valdano
- Ministros de morte em Barrancos
- O bilhete do senhor Scolari
- A propósito de um golo
- O Sporting arranja treinador
- A superstição do cachecol
- Os capitães da areia na cabeça
- Reaver um golo, reaver a Celine Dion
- Afirma Vítor Pereira
- Remodelações com futebol
- Meias palavras
- O golo de Belloumi
- Por uma qualquer novela







Os golos de Jardel nunca foram imortalizados numa canção


Um jantar num restaurante em Lisboa, com alguns colegas de trabalho. E em Aveiro jogava o Sporting; em Aveiro e, como nos últimos anos se tornou regra, na televisão. Fins de Outubro. Eu pelas ruas de Santos à procura do restaurante, a lembrar-me de que quando ia aos jantares do PEN Clube, ali pelas redondezas, era mais fácil, porque marcavam mesa para a York House e aí, além disso, eu tinha quase sempre a sorte de chegar ao mesmo tempo que saía um carro de um lugar junto à entrada. Mas naquela noite tudo estava a ser diferente. Lugar para o carro nem sinal, por mais voltas que desse, com o circuito a incluir até uma boa parte da Lapa. Acabei por ir para um parque subterrâneo dos novos, um bocado longe, e depois toca a andar a pé. Tinha-me esquecido do nome do restaurante, e ninguém me atendia o telemóvel. Devia ser nalguma cave, foi o que pensei, ou então nalgum descampado urbano onde a rede não chegasse. Quem sabe poderia haver ali no meio do casario a cair uma planície municipal à espera de alguém, eventualmente de Braga, que lhe pusesse as unhas sem o vereador Sá Fernandes dar por isso…
Bom, o que interessa é que ao fim de uns cinco restaurantes lá encontrei aquele que me interessava. Quer dizer, aquele que procurava. Era mais tipo tasca. Se calhar as operadoras de comunicações móveis estavam a apostar pouco nas tascas em termos de qualidade da rede. Podia ser isso. Ali quase não havia rede. Mas eu tinha conseguido chegar, e pelo caminho tinha passado por um restaurante ou outro a atirar para o fino, nas minhas procuras já a pensar que na volta tinha de me meter a caminho de casa. Mas o pior era o Sporting a perder.
Um a zero para a Beira-Mar, e ainda por cima – como dizem os sempre criativos relatores do mundo do pontapé na bola – o relógio não parava (ou o tempo ia passando). Mas as coisas recompuseram-se e a certa altura já parecia que a vitória não iria escapar ao meu clube. Só que no fim, quase sem eu perceber como, a coisa acabou num empate a três. Os golos que o Sporting sofreu pareciam-me cada um mais esquisito do que os outros, isto se durante o dia os pusessem a passar repetidamente num ecrã que me adaptassem aos óculos escuros; uma coisa do género do que acontece a um português chamado Hulohot que o hiper-imaginativo Dan Brown arranjou para um dos livros que escreveu. Curiosamente, esse português, na volta resultado de alguma dica temporã do nobel Saramago, expressa-se em várias páginas na língua de um senhor famoso de apelidos Cervantes Saavedra; mas Hulohot é lisboeta, não direi de gema mas pelo menos de nascimento («Hola! Soy Hulohot!»).
O empate do Sporting em Aveiro, e na televisão, deixou-me triste. Mas foi uma tristeza, digamos assim, especial; uma tristeza que vinha misturada com alguma emoção. Do lado do Beira-Mar tinham estado o treinador Augusto Inácio e, em campo na parte final do jogo, o avançado Mário Jardel. Ao ver Inácio de pé junto ao banco e a movimentação de Jardel no lance em que Ricardo deu o frango de um dos golos do Beira-Mar, lembrei-me dos últimos dois campeonatos que o Sporting tinha conquistado – o de 2000, com Inácio a pegar na equipa já com a época em andamento, e o de 2002, com Jardel a chegar atrasado mas ainda a tempo de marcar quarenta e dois golos.
O treinador da equipa campeã com Jardel era o romeno Boloni, que tinha passado a usar um nome próprio húngaro. Lembro-me de que nos tempos de jogador do Steaua de Bucareste, campeão europeu em 1986, antes do apelido aparecia sempre Ladislau, o nome romeno, em vez do húngaro Lazlo. No Verão de 2001 tinha chegado a Portugal como «o senhor Lazlo Boloni», ou apenas «o senhor Boloni». Poucos imaginavam que pudesse ser logo campeão. Mas acabaria por ser, e graças aos golos de Jardel, que começou a jogar à quarta jornada, com peso a mais como alguns anos depois voltaria a aparecer em Aveiro.
Foi Jardel quem salvou o treinador Boloni, e foi um outro Jardel, atolado em problemas, que no campeonato seguinte acabou por tramá-lo. Mas a conquista do campeonato que terminou à entrada do Verão de 2002 (a que se juntou a taça, com um golo de Jardel) valeu por muito, muito mesmo. Só com isso Jardel ficou na história do meu clube. Provavelmente para sempre. Com os seus golos.
***
Há uma canção de Rui Veloso que fala de Jardel, embora seja o Jardel dos tempos do Futebol Clube do Porto. Deixa os golos de fora; o que lá aparece é o modo de Jardel se movimentar na grande área, ou pelo menos um dos modos (o verso «voar como o Jardel sobre os centrais»). Lembro-me de que com Jardel no Sporting eu achava despropositada a imagem apregoada por Rui Veloso. Principalmente pela paixão transmitida pelo cantor, e até por alguma pronúncia do norte. A canção com uma figura incontornável da cidade do Porto, mas incontornável só até à entrada no Sporting… Depois de Jardel vestir de verde e branco talvez Rui Veloso devesse ter arranjado uma outra canção, na qual poderia meter um verso que falasse do «fantasma de Jardel», coberto ou não com um lençol branco, voando ou não fosse lá sobre que centrais fosse, até sobre os da própria equipa do Porto.
Nos primeiros anos de Jardel no Porto eu não apreciava a maneira de ele jogar. Achava até que só conseguia marcar tantos golos porque passava os jogos na grande área adversária a viver da insistência atacante da equipa (especialmente, como dizem os especialistas, pelas faixas laterais). Eu não era capaz de apresentar uma razão, simplesmente não gostava. Talvez a verdadeira razão fosse ele não estar no meu clube. Sei de quem, por exemplo, não gostava de Jardel por achar que ele andava sempre muito direito no campo, como se tivesse engolido um garfo de metro e meio. Mas comigo não, eu não gostava e pronto.
Com o tempo fui-me habituando a admirar Jardel. Por alguns dos golos que o via marcar; ao Braga e ao Farense, por exemplo (um a cada equipa, de fora da área, sem deixar a bola cair no chão); um ao Campomaiorense, passando a perna do remate por detrás da outra; os golos ao Milan no estádio de San Ciro, um golo em Munique, outro em Madrid... Ele marcava sempre, ou quase sempre. E no Sporting, depois, a mesma coisa, especialmente na primeira época, golos e mais golos, e voos sobre os centrais, como no verso da canção de Rui Veloso que tornou imortal uma das suas movimentações. Tantos golos… Mas esses nunca foram imortalizados numa canção.






O meu primeiro livro


Quase que poderia escrever «há muito, muito tempo». Nessa altura, há muito, mesmo muito tempo, escrevi um livro de contos a que dei um título muito comprido: «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade», o título de um dos contos. Guardo recortes de jornais dessa época, e nalguns o livro até aparece nos tops das livrarias, nunca em primeiro lugar, mas em certos casos em segundo, batido se não estou em erro por «O Pesadelo de Obélix» ou pelo «Pequeno Livro de Instruções para a Vida». Podia ser pior…
O tempo passou. Habituei-me a que pouca gente conseguisse dizer o título correcto do livro; geralmente as pessoas começavam por «o dia em que o presidente foi» e a seguir atiravam com os sítios mais diversos: Beja, Santarém, Moura, Silves, Setúbal… Metiam tudo e mais alguma coisa no título, tirando, já se adivinha, a minha terra (Monchique). Isso foi nos primeiros anos. Agora já não acontece muito, porque quando me falam no livro é mais para me dizerem que não o encontram; o meu primeiro livro, «o do título comprido». Às vezes, em sessões de autógrafos, aparecem pessoas com outros livros meus e a perguntarem como poderão arranjar aquele, que não vêem em lado nenhum. Eu aí digo que não posso fazer nada, já que depois de esgotadas as edições que foram feitas só se surgir uma nova oportunidade, porque entretanto eu mudei de editora. E ofertas é coisa que não posso fazer, porque a verdade é que me resta apenas um exemplar de cada uma das edições.
Um dia, nem foi há muito tempo, recebi um comentário no meu blog; era alguém que tinha lido um dos meus livros (o romance «O que Entra nos Livros»). Dizia que o tinha comprado em Lisboa, «na Bulhosa do Campo Grande», isto depois de ter ido procurar «a duas livrarias da Bertrand». E que preferia ter começado por «O Medo Longe de Ti», o romance que de certa forma dá origem ao que comprou, só que desse nem sinal nas livrarias. Mas o problema até nem era grave… No comentário estava escrito: «Como faz um brevíssimo resumo desse livro, sempre minimiza o desconhecimento do passado.» E depois, uma pergunta: «A propósito, não estão previstas novas edições dos seus livros?» Neste caso não havia uma referência ao primeiro, mas eu não consegui deixar de pensar nele, enquanto escrevia uma resposta a dizer que de alguns dos títulos por certo haveria livrarias com exemplares. O pior era mesmo em relação àqueles dos meus primeiros anos de escrita, que estavam dados como esgotados, e então no caso do primeiro livro devia ser mesmo impossível.
***
Eu ia todo lançado a escrever isto quando me lembrei de que a pessoa era do Sporting, como eu (no comentário aparecia também isto: «Estive lá, no meu lugar cativo de sofredor, e tive quase orgulho naquela equipa. Estou de acordo com as suas apreciações. Contudo, julgo que é um pouco injusto para com o Polga.»). Eu tinha escrito no blog, a propósito de um jogo das competições europeias entre o Sporting e uma equipa suíça, que o defesa brasileiro Anderson Polga parecia «mesmo talhado para o desastre». E então fiz um acrescento à resposta, pensando ainda no primeiro livro. Falei de um golo célebre de António Oliveira com a camisola do Sporting, marcado em 1982 ao Dínamo de Zagreb, num jogo da Taça dos Campeões Europeus disputado no antigo Estádio José Alvalade. Oliveira marcou os golos todos do três a zero, depois de uma derrota por um a zero em Zagreb por causa de um remate certeiro de um tipo com nome de detergente (Cerin). O golo célebre era o terceiro, com Oliveira a avançar pela direita e depois, em vez de fazer um centro, a atirar a bola de uma forma estranha para a baliza, num remate que parece ter sido feito com a sola. No fim do jogo os jornalistas só lhe faziam perguntas sobre aquele golo, e ele acabou por comentar: «Quem viu, viu; quem não viu, já não vê mais!» Talvez eu possa dizer algo parecido sobre o meu primeiro livro: «Quem leu, leu; quem não leu, já não lê mais!» Mesmo o golo sendo do outro mundo e o livro pertencendo a este em que vivemos.




A escolha de Valdano


Não que os grandes escritores não saibam escrever histórias de futebol. Nada disso. O que acontece é que as histórias de futebol escritas por grandes escritores poucas vezes me interessaram. Na volta, o problema é meu. Por exemplo, Camilo José Cela, que tem um livrinho («Onze Contos de Futebol», edição da ASA), escrito nos anos 60 do século passado… Em páginas ao calhas, encontra-se coisas como «se corre o notório risco de terminar enforcado, o árbitro deve abster-se de assinalar penáltis, castigo que pode ser substituído pelo livre ou até pelo deixar jogar»; mas o que mais há é coisas como «no céu voou um abutre sem penas a que chamam xofrango-quebranta-osso, enquanto as viúvas de mau agoiro (roídas de inveja) ficavam com a voz embargada na garganta». Comprei o livrinho por atenção ao notável escritor galego, mas lê-lo com o fascínio com que li outros livros dele, nem pensar nisso...
Antes do Verão de 2002, com um mundial de futebol quase a começar, foi editado pela Relógio d’Água um livro chamado «Contos de Futebol», com nomes como Alfredo Bryce Echenique, Javier Marías ou Osvaldo Soriano. Sem caírem na prosa cifrada do Cela dos «Onze Contos…», as histórias acabaram por também não me interessar muito. Do livro, a que retive, a que nunca mais esqueci, foi a do coordenador da edição, Jorge Valdano, o famoso futebolista companheiro de Maradona na selecção argentina campeã mundial em 1986 (e talvez uma de Julio Llamazares, sobre o penalty falhado por um jogador do Deportivo de Coruña, no último minuto da última jornada do campeonato espanhol e que custou aquele que seria o primeiro título nacional do clube galego).
Valdano conta uma história de um guarda-redes que nos sonhos defende um penalty no último minuto de um jogo que está empatado a zero. Um dia acontece na realidade, a quatro minutos do fim. Ele atira o boné para dentro da baliza antes de se colocar na posição para tentar agarrar a bola. E acaba por defender o penalty, tornando-se o herói da multidão, por uns segundos, até ao momento em que, com a bola bem segura, entra na baliza para ir buscar o boné.
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Uma vez, em Madrid, perguntei a Valdano durante uma entrevista se a história era verdadeira, e ele disse-me que a ouvia contar desde pequeno, mas que não se tratava de uma situação real. Seria contudo possível no futebol, por isso a tinha escrito; para ele, era uma das muitas histórias de perdedores, uma história que mostrava as duas faces do futebol em poucos segundos, o herói e o proscrito.
Aproveitei para lhe perguntar também como se tinha sentido no meio de tantas estrelas da literatura, se tinha sido mais difícil do que jogar ao lado de Diego Maradona ou de Jorge Burruchaga, e ele disse-me que o mundo do futebol é que é o seu mundo. Eu acrescentei, sem que fosse uma pergunta, que todos os escritores do livro gostavam muito de futebol e Valdano acabou por dizer-me que se sentia muito bem com eles, que tinha muitos amigos na literatura, de todas as gerações, Mario Benedetti, Francisco Umbral, Manuel Vásquez-Montalban... Referi ainda Javier Marías, um grande adepto do Real Madrid, clube onde Valdano tinha jogado e onde então era director-geral. Ele ignorou, quase mudando de assunto; gostava muito de escrever, confessou, mas gostava ainda mais de ler. E quando eu já não ia dizer mais nada, nem perguntar, acrescentou que, no entanto, se tivesse de escolher entre ser Borges ou ser Maradona, haveria de decidir-se por Maradona.





Ministros de morte em Barrancos


Eu vi, mas não vi tudo. Foi num noticiário televisivo das oito da noite, coisa de há uns anos. Lembro-me de que o canal era a TVI e o apresentador um relativamente conhecido mas talvez não o suficiente para se tornar romancista, José Carlos Castro. O que passava era imagens de gente eufórica num cercado de Barrancos. Noutros canais, na volta, a coisa era parecida. A certa altura mostraram um touro, enorme, ainda com alguma altivez, mas já com as forças a fugirem-lhe. Parecia ter a vida presa eu nem conseguia imaginar a quê; talvez a umas gotas de sangue, as que teimavam em não sair pelos buracos que antes lhe tinham feito. O touro fazia um barulho horrível, de arrepiar. De repente, aproximou-se um homem; um cobardolas que meia-hora antes o mais certo era estar empoleirado nalgum sítio seguro do cercado. Começou a fazer mais buracos no touro, desta vez na cabeça. Não percebi se o fazia com uma faca se era com um pau afiado, ou um ferro; fosse lá com o que fosse. A multidão estava em delírio. Parecia que tinha saído a lotaria a toda a gente, ou que para todos, de repente, tinham anunciado um subsídio bem nutrido da União Europeia. As imagens tremiam; lembro-me de que pensei que o operador de câmara não estava a gostar do serviço que o tinham mandado fazer. Quem poderia gostar de sair de Lisboa e fazer mais de duzentos quilómetros para se meter em filmagens em pleno inferno?
Mudei de canal antes do final da reportagem, e ainda com o touro a aguentar-se nas patas. Mas com o cobardolas cada vez mais atrevido. Quando regressei ao noticiário, uns cinco minutos depois, o cenário era bem diferente. Como se tivessem pensado em amenizar as coisas, tinham metido um ministro. Talvez já pouca gente se lembre dele, pelo menos como ministro; era um dos de António Guterres, com nome de jogador de futebol. Pensei que o assunto era outro, com um ministro em vez de um touro massacrado, mas não, continuava tudo na mesma. Talvez os responsáveis do noticiário tivessem achado que um ministro ficava bem a seguir a um touro de morte – ou a seguir à morte de um touro, para ser exacto. Poderiam assim acabar a reportagem, nem sei se devo usar a expressão, em beleza.
Na altura tinham tomado decisões para Barrancos, para os touros e para as gentes das redondezas. Eu cada vez ligava menos ao caso, porque para mim estava mais do que visto que dali nunca haveria de sair nada de jeito, e por isso fui apanhado de surpresa com a presença do ministro a seguir ao touro e ao cobardolas. O ministro trocou-se todo, falou de multas, de excepções, de valores até oitenta mil contos, de cinquenta mil escudos (estava quase a chegar o euro), de leis e o país isto e mais aquilo. Estava na televisão, afinal, por causa do touro. E eu pensava que era por causa do «Euro 2000», o campeonato da Europa de futebol, que estava para começar e onde ele já tinha feito saber – como outros cromos da governação – que haveria de marcar presença. Era na Bélgica, e também na Holanda, terra conhecida igualmente por Países Baixos, mas baixos só de topografia, porque o adjectivo, com coisas como aquelas do touro no cercado, se calhar justificava-se mais cá para as nossas bandas.
O ministro acabou por sair do noticiário. De repente, como o touro deveria ter saído – só que o ministro saiu vivo, enquanto o touro muito provavelmente morto e já sem uma pinga de sangue, quem sabe arrastado por algum tractor. O apresentador, com um ar de escandalizado que qualquer pessoa abaixo de secretário de Estado haveria de fazer, ou talvez abaixo de chefe de gabinete, o apresentador explicou tudo. Mesmo assim eu não compreendi. O ministro tinha acabado de anunciar que aquelas selvajarias se fossem praticadas em Portugal podiam dar multas até aos oitenta mil contos, exceptuado se acontecessem em Barrancos, onde ficariam só pela «módica quantia» de cinquenta mil escudos. De euros, nessa altura ainda nem sinal.
***
Dias depois, na Holanda, a seguir à vitória da nossa selecção sobre a Inglaterra, o mesmo ministro com nome de jogador de futebol colocou-se à frente dos adeptos que estavam a ser filmados para um canal de televisão que não aquele do touro. Estava todo contente, o ministro, mas quando lhe puseram um barrete quase de campino na cabeça tirou-o logo, e ainda por cima pondo-se com ares de irritação. Onde é que já se tinha visto uma coisa assim, um barrete verde, vermelho e amarelo e com o escudo nacional com as cinco chagas de Cristo numa pessoa de fato e gravata, ainda por cima ministro da nação? Era a pergunta que parecia atravessar-lhe o pensamento.
Quanto a mim, o que me atravessou o pensamento ao ver aquilo foi ainda a diferença das multas para castigar as selvajarias. Mas por quê uma diferença tão disparatada? De cinquenta contos a oitenta mil, se não me falhavam as contas, ainda iam setenta e nove mil e novecentos e cinquenta (contos, que os euros estavam para chegar mas ainda não tinham chegado). Podia dizer-se que dava para comprar duas casas em Lisboa. Ou que dava para os administradores da Lazio de Roma pagarem três semanas do salário de Luís Figo, se o conseguissem contratar – e na altura bem que andavam a tentar.
O que teria Barrancos de tão especial? A cultura? A tradição? Era nisto que eu pensava. E a certa altura lembrei-me… E se o ministro lá fosse, a Barrancos, como tinha ido para as europas ver o futebol, ele mesmo, de fato e gravata e sem barrete com as cores de Portugal? Se fosse ele em pessoa multar os matadores de touros e toda a gente que participava naquelas selvajarias? E se algum mais destrambelhado o levasse para o meio do cercado e depois de umas voltas se lembrasse de afiambrá-lo com uma estocada? Sempre seria coisa, em casos normais, para dar uns vinte anos de prisão, nomeadamente se a estocada fosse fatal. Mas acontecendo a tragédia em Barrancos talvez com dois anos de pena suspensa tudo se resolvesse. «Além do mais», haveria de desculpar-se o artista, na volta o tal cobardolas, «o senhor ministro entrou na festa sem o barrete da selecção.»





O bilhete do senhor Scolari


Foi na final da Taça UEFA de 2005, no dia dezoito de Maio – um dia que acabou mal para os sportinguistas e, talvez se possa dizer assim, para os portugueses em geral. Nesse dia eu poderia muito bem ter ido ver o Sporting com um bilhete do senhor Luiz Felipe Scolari. A equipa, mesmo treinada por José Peseiro, estava na final de uma competição europeia de futebol. Tinha atingido esse jogo decisivo depois de um percurso meio aos trambolhões, inclusive com uma derrota caseira diante de uma equipa francesa, por causa de um golo mirabolante arranjado pelo central brasileiro Anderson Polga. Mas eu tinha muitas esperanças de que o Sporting conseguisse ganhar. Seria a segunda taça europeia para o clube, depois de uma vitória em Antuérpia frente a uma equipa húngara no longínquo ano de 1964. Tinha mesmo muitas esperanças; conhecia a falta de jeito de Peseiro para liderar o plantel, não me cansava de falar nela desde o dia em que tinha ouvido anunciar a sua contratação, mas mesmo assim era preciso não deixar fugir o optimismo. Só que as coisas acabaram na desgraça que se sabe, com a vitória do CSKA de Moscovo por três a um; ainda por cima jogando-se a final em Lisboa, no próprio estádio do Sporting. Isto aconteceu numa quarta-feira, depois de no fim-de-semana anterior o campeonato ter sido perdido por causa de um enorme falhanço do guarda-redes no estádio do Benfica.
A ideia que eu tinha era a de ver o jogo frente aos russos pela televisão, mas dois dias antes decidi assistir ao vivo, quando surgiu uma oportunidade de comprar dois bilhetes, mesmo que por todo o lado se falasse em lotação esgotada. E então, com o dinheiro transferido de véspera, no dia dezoito de manhã lá fui buscar os bilhetes. A informação que levava era a de que estariam à minha espera dentro de um envelope, num hotel do centro de Lisboa onde a UEFA marcava presença, como eu não tardaria a descobrir, em peso (literalmente). Era na zona do Parque Eduardo VII. Quando cheguei, a primeira coisa que me chamou a atenção foi a presença da polícia, agentes mais do que de sobra na entrada do hotel, todos de um lado para o outro, com jeito de andarem atarefados; havia também uns tipos à paisana, cada um deles com cara já nem digo de poucos amigos, mas na volta de nem amigos terem, nem sequer família. Eu conhecia bem o hotel, de muitas coisas que lá tinha organizado, mas não me lembrava de alguma vez tê-lo visto assim, com tanta gente afectada por uma espécie de síndroma que naquele momento hesitei em classificar como sendo da pressa ou da inquietação. Depois de algumas indagações na recepção do próprio hotel, e numa outra toda especial montada pela UEFA, cheguei a uma sala onde se podia levantar bilhetes. Estava alerta, pronto para desvios repentinos que tivesse de fazer de forma a evitar atropelamentos. Não estava era alerta para outras coisas. Por exemplo, para o facto de ter de falar em inglês na recepção montada pela UEFA.
Eu nem me tinha lembrado do inglês. O estafado idioma que cerca de um ano antes, ali bem perto, no pavilhão principal da Feira do Livro de Lisboa, me tinha deixado quase sem saber o que responder num debate em que estavam além de mim mais seis escritores, todos referidos no programa como sendo «para o futuro». A moderadora, uma escritora mais velha do que nós e com ar entediado, a certa altura tinha-se lembrado de perguntar aos «escritores para o futuro» se se imaginavam, nesse futuro, a escrever os próprios livros em inglês. Eu, sem saber bem o que responder àquilo, tinha-lhe dito que não, e ela, depois de ver que de mim não levava mais nada sobre o assunto, tinha passado a outro que, já não me lembro, mas se calhar deve ter-lhe dito que não da mesma forma. Agora era de novo o inglês a sair-me ao caminho, sem que antes me tivesse ocorrido a hipótese de não me perceberem se em Lisboa falasse na minha própria língua. Teve mesmo de ser em inglês, mas só depois de insistir um bocado no português para ver se pegava. Só que nem com o inglês tive muita sorte…
A funcionária da UEFA a quem me tinha dirigido, uma mulher de dimensões um bocado para o exagerado, muito contrariada acabou por levantar os olhos dos papéis que tinha na secretária; e disse – num inglês nitidamente vestefálico – que o nome que eu dava não correspondia a nenhuns bilhetes dos da lista dela. Foi então que tive uma ideia que o mais certo era dar logo para ver que não podia ser muito feliz: perguntei, ainda em inglês, se por acaso a UEFA não estava em Lisboa com ninguém que atendesse as pessoas em português, se por acaso não se tinham lembrado disso. A pergunta fez a mulher levantar os olhos bem alto, inclusive fê-la mudar de idioma; ainda pensei que poderia ir dizer alguma coisa na nossa língua, mas não, berrou-me foi um estridente «ciao» [txi há ou] e voltou a enfiar os olhos na secretária.
Bom, como naquela sala também estava instalada uma espécie de secretariado da Federação Portuguesa de Futebol, resolvi pedir aí ajuda a uma das pessoas. Escolhi uma rapariga que me parecia estar um pouco embaraçada com a situação a que tinha assistido. Tentando ser simpática, ela disse-me que ali se levantavam bilhetes mas que não podia fazer nada, que era coisas que só mesmo com a UEFA. Vendo que aquilo não atava nem desatava, e pensando que me podiam ter voado assim sem mais nem menos 120 euros nem eu sabia para onde, sentei-me numa cadeira que estava por perto, junto a uma mesa com uma pilha de envelopes. Era preciso pensar nalguma coisa que pudesse resolver o problema. Foi então que reparei no que estava escrito no envelope de cima: «Senhor Luiz Felipe Scolari». Bilhetes… Aquilo era uma pilha de bilhetes de convidados para o jogo, só podia ser. De imediato me chegou uma nova ideia, tipo aquela de perguntar à mastodonta do «ciao» se não tinham em Lisboa ninguém que falasse português; lembrei-me de pegar no envelope do senhor Scolari e em mais uns quantos e ir-me embora sem dizer nada. Durou uns segundos a ideia, ou melhor, a tentação; acabou por perder-se quando pensei no grande sarilho que se calhar iria arranjar, não sei se à Federação Portuguesa de Futebol se à UEFA, assim que o seleccionador de Portugal chegasse e descobrisse que não tinha bilhete. Eu estava longe de imaginar que dois anos depois o senhor Scolari, ainda a fazer de seleccionador cá por estas bandas, iria agredir um jogador sérvio com um murro mal calculado no final de um jogo desastroso, mas a verdade é que já na altura não me fiava muito na sua capacidade de contenção.
Ou seja, continuei sem bilhetes. E como não aparecia mais ninguém da UEFA com jeito de resolver o assunto, e além disso a mastodonta continuava lá com os papéis dela, resolvi ir tentar a sorte noutras zonas do hotel. Daí a pouco, nem cinco minutos, enquanto andava nas minhas deambulações, dei com uma cara conhecida; não era minha conhecida, era conhecida de muita gente, ou de quase toda a gente. Enfim, uma figura pública – um homem, todo despachado, de fato e gravata, assim a descair para o executivo mas sem telemóvel à vista. Veio logo falar comigo, e eu nem tive tempo de estranhar tal atitude; quando dei por ele já estava a ensaiar um sorriso, a pedir-me desculpa e a perguntar-me se sabia onde se levantava os bilhetes. Eu disse-lhe que tinha comprado dois e que andava à procura deles. O homem contrapôs: «Não, eu venho é buscar bilhetes dos dos convidados!» Compreendi logo e por isso indiquei-lhe como chegar até à pilha onde estava o envelope com o nome do seleccionador nacional de futebol em cima, no secretariado da federação. E acrescentei: «Aí deve-se desenrascar!»
***
Meia-hora depois, já fora do hotel e com os dois bilhetes no bolso do casaco, depois de voltas e mais voltas pelo hotel até dar com eles na recepção (a do hotel, não a especial montada pela UEFA e onde a mastodonta parecia mexer os cordelinhos), enquanto caminhava para o parque de estacionamento onde estava o carro, tocou o telemóvel. Tinha-o num dos bolsos das calças de ganga e por isso antes que conseguisse tirá-lo o som foi aumentando até se tornar um pouco irritante. Quando atendi, escutei uma voz conhecida, não de uma figura pública mas de um amigo. Tínhamos umas coisas para acertar, relacionadas com o meu trabalho, e foi disso que começámos logo a falar. Até que de repente ele mudou de assunto e perguntou-me: «Olha lá, não me digas que tens galinhas aí no monte?» Fiquei sem saber o que responder, mas ao fim de uns segundos de hesitação percebi por que é que ele se tinha saído com aquilo. Eu ia a passar junto à Estufa Fria e os toques insistentes do telemóvel tinham desassossegado alguns pavões; de repente, tinham começado a fazer uma barulheira desgraçada do outro lado da vedação. Foi isso que expliquei a quem me telefonava – que não estava em casa, que o meu carro estava estacionado junto à Estufa Fria e que os pavões andavam um bocado histéricos. E depois fiz um resumo da história dos bilhetes, da UEFA e da mastodonta de inglês vestefálico; só não falei do senhor Scolari com o nome bem no topo de uma pilha de envelopes. Resumi tudo o melhor que pude, e até fiz uma referência aos pensamentos que me tinham chegado na parte mais acalorada do encontro com a mastodonta. Mas o comentário que ouvi foi qualquer coisa como eu provavelmente estar a exagerar.





A propósito de um golo


Numa tarde de domingo – já vai para uns anos –, viajando em direcção a Lisboa pela auto-estrada do oeste (que não do far-west, porque no nosso país já há muito que nada parece distante de nada), dei por mim a ouvir entusiasticamente o relato de um jogo de futebol entre o Benfica e um clube que entretanto abandonou profissionalismo, o Alverca (que por sinal tinha na liderança um futuro presidente do Benfica). Bom, o Benfica chegou a dois a zero, mas de repente os ribatejanos fizeram dois golos. E as coisas foram-se mantendo empatadas, até que no último minuto um dos árbitros assistentes fez que não viu um fora-de-jogo de João Tomás, o então ponta-de-lança benfiquista recém-contratado à Académica (cuja principal particularidade era ser parecido de cara com o brasileiro Jardel), e João Tomás cabeceou para o três a dois final que me fez em menos de nada desligar o rádio. O relator – ou relatador, ou narrador, nem sei – gritou tantas vezes o apelido de João Tomás que eu até acabei por lembrar-me do clássico da literatura de uma senhora chamada Harriet Beecher Stowe, «A Cabana do Pai Tomás». Poderia ter-me lembrado de Américo Tomás, o almirante que na ditadura lambia as botas a Salazar e depois também um bocado a Marcello Caetano (sapatos?), ou do arquitecto Tomás Taveira, ou talvez até de São Tomás de Aquino, mas não, lembrei-me do velho livro. E entretanto cheguei a Lisboa.
Na segunda-feira de manhã, ao passar por um quiosque, detive-me a olhar para os principais títulos dos jornais. Eram quase todos à moda do terceiro milénio, curtos, simples e directos. Dois diários desportivos cometiam mesmo a proeza de se repetirem: «Pai Tomás», anunciavam em grandes letras, embora cada um no seu formato. Tal como eu, tinham chegado ao «Pai Tomás». Ninguém se lembrou de algo do género «Tomás arquitecta vitória encarnada», coisa que até não seria descabida no caso de o Benfica ter um avançado de nome Taveira («Taveira arquitecto da vitória», por exemplo), ou então algo que remetesse para o almirante do criminoso Estado Novo, célebre pelas suas tiradas à moda de La Palisse. O almirante apalhaçado, armado em jornalista, certamente que teria arranjado qualquer coisa como «Tomás marca o seu último golo antes do próximo e dá a vitória ao Benfica», ou então «Cabeceador Tomás marca de cabeça e enche de glória o glorioso», ou mesmo «Tomás marca no último minuto com o jogo a acabar»). O problema é que, além de cair no ridículo (o que para o almirante até era habitual), cairia nos indesejáveis títulos compridos.
Poder-se-ia pensar que o golo de João Tomás no último minuto, a matar as esperanças de um clube modesto de conseguir um resultado já não digo histórico, porque na época anterior tinha sido precisamente dois a dois, mas inesperado, esse golo seria capaz de gerar um título do género «Ó Tomás, isso não se faz!» Mas não… Com as modas que de repente tinham começado a vingar, o mais normal era coisas como, por exemplo, o «Yeeees» da vitória de Portugal sobre a Inglaterra no «Euro 2000», presente em não sei quantos jornais – e que nos anos seguintes bem poderia ter sido repetido, com as novas vitórias no «Euro 2004» e no «Mundial 2006» (embora com o passar do tempo nos tenhamos começado a aperceber de que afinal os ingleses eram mais uma equipa de excursionistas de luxo do que uma selecção nacional de futebol). Muito parecidos com o «Yeeees», outros títulos da mesma altura, os da novela que antecedeu o regresso de Sá Pinto ao Sporting, depois de uma aventura basca: «Virá?», «Chegou», «Delírio», «Fica!», «Acabou», etcétera (sendo que o «etcétera» não era título, ainda que com o andar da carruagem ninguém se pudesse meter com grandes certezas).
Nas décadas de 1980 e 1990, os títulos eram mesmo diferentes. Talvez até contrariando os novos gurus da comunicação, não eram nem simples, nem curtos, nem tão-pouco directos. Dois exemplos… Primeiro – Certa vez, o Sporting de Braga venceu o Amora por dois a zero. Talvez os mais novos não saibam, mas a primeira divisão portuguesa teve na década de 1980 um clube de nome Amora, que entretanto caiu para os escalões secundários, mas que no então pelado do Seixal (Campo da Medideira) chegou a ganhar ao Porto e ao Benfica. Bom, os dois golos do Sporting de Braga frente ao Amora foram da autoria de um avançado chamado Fontes. Título da entretanto extinta «Gazeta dos Desportos»: «Com Fontes não há seca de golos». Segundo exemplo – Ainda na década de 1980, jogo Sporting um, Belenenses zero, com o golo a resultar de um penalty, depois de uma queda de Manuel Fernandes em despique com o defesa Sobrinho. Manuel Fernandes, o avançado e capitão do Sporting, além de alguma classe, tinha um certo jeito para o teatro, e Sobrinho não lhe perdoou. Título de uma das peças sobre o jogo, também na referida «Gazeta dos Desportos»: precisamente uma frase do infortunado defesa do Belenenses, «No circo de Alvalade, o palhaço é sempre o mesmo!»
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Títulos assim traziam-me na altura à recordação os tempos quentes que se seguiram ao 25 de Abril. Mesmo estando a década de 1980 já bem adiantada. Ao ver o estilo da frase de Sobrinho, seria difícil não me lembrar dos slogans dos tempos do PREC (a que pouca gente se refere como Período Revolucionário em Curso, um pouco como acabou por acontecer com as Sociedades Anónimas Desportivas, referidas por todo o lado como SADs, ou se calhar «sades», «a sade isto», «a sade aquilo»). Da direita à esquerda, havia no tal período revolucionário (em curso) slogans capazes de satisfazer muitos gostos: «Viva o Magalhães Pasta, ministro sem mota» (sobre Magalhães Mota); «Deixemo-nos de barreirinhas, vamos ao salto em altura» (sobre Álvaro Cunhal, ou melhor, sobre Álvaro Barreirinhas Cunhal); «Viva a justa luta do bicho da fruta»; «A terra a quem a trabalha, mortos fora dos cemitérios, já!»; «Nem mais um anticiclone para os Açores»; e acho que chega.
Para acabar, uma referência aos tempos áureos de «O Independente», talvez o último jornal resistente à moda da simplicidade nos títulos. Recordo-me particularmente de um título que surgiu aquando do escândalo com o monte alentejano de um dos ministros das Finanças de Cavaco Silva, Jorge Braga de Macedo – um dos inúmeros escândalos da altura. No início, o referido ministro chegou mesmo, imagine-se, a ser apontado como o previsível sucessor de Cavaco Silva, o auto-intitulado homem do leme. Foi alvo de reportagens na comunicação social a roçar o deslumbramento (professor universitário, jovem, vai para a faculdade depois de fazer o seu footing matinal, diz frases com graça, é irrequieto, e mais uma data de coisas a roçar a patacoada). Mas a empatia passou depressa. Em poucos meses, ainda por cima com a saga alentejana, a mesma comunicação social caiu-lhe em cima sem dó nem piedade. O semanário sintetizava tudo num título que nunca mais esqueci: «Herdade para ter juízo». Uns anos depois, talvez já desse para «Etcétera».





O Sporting arranja treinador


Estava em preparação mais uma época futebolística, a de 1999/ 2000, finda a qual, não se sabia ainda (mas havia quem tivesse esperança), o Sporting iria sagrar-se campeão de Portugal, depois de dezoito anos de jejum (desde 1982) e da troca de treinador nem com metade das jornadas decorridas; sairia o estrangeiro do arranque da época para dar o lugar a um português chamado Augusto Inácio (o mesmo que apenas como Inácio, e como defesa lateral esquerdo, tinha sido campeão precisamente em 1982).
Era um fim de tarde de Junho. Durante um debate numa sala de um hotel da Avenida da Liberdade, em Lisboa, o jurista Fernando Seara, bem conhecido nos meios desportivos, afirmou que a questão do novo treinador do Sporting, que parecia envolta em grandes mistérios, afinal não tinha nada de misterioso. A escolha estava mais do que feita, e nos mentideros já se falava sem pedidos de segredo do nome em causa. Talvez por isso, por esse estranho correr da informação, nem Fernando Seara disse o nome que eu como adepto do Sporting tanto queria ouvir, nem a assistência perguntou. «É isso mesmo», pensei na altura, «já todos sabem quem é o homem, menos eu».
À saída do debate, quando me despedi de Fernando Seara, perguntei-lhe:
- Olhe lá, agora aqui que ninguém nos ouve, e ainda mais sendo isso uma coisa já tão conhecida, diga-me lá, a mim que se calhar sou o único ainda em branco...
Fernando Seara, impaciente, interrompeu-me:
- Deixe-se de rodeios e acabe a pergunta!
E eu acabei:
- Diga-me lá quem é o novo treinador do Sporting?
Resposta dele:
- Então, toda a gente sabe que é o António Oliveira!
Ainda sob o anestesiante efeito da surpresa, balbuciei apenas duas palavras, porque a verdade é que a revelação não me fez grande efeito. Disse «Ah, sim!», como poderia muito bem ter dito «Não me diga!», despedi-me e fui apanhar o metro para ir até ao parque de estacionamento do Campo Grande, onde tinha deixado o meu carro.
Só durante o percurso é que reflecti um pouco no nome de António Oliveira, precisamente uma das grandes estrelas da equipa do Sporting campeã em 1982. Tinham passado muitos anos de fracassos, com o Sporting dirigido por dois ou três bons treinadores, mas também por outros que a mim sempre me havia parecido que nem um tonto se lembraria deles para lhes propor um contrato. Talvez uma boa solução fosse António Oliveira, afinal um repetente depois da sua curta experiência como jogador-treinador do clube logo a seguir à conquista do campeonato de 1982 e à saída do saudoso inglês Malcolm Allison. Talvez o ex-seleccionador nacional e campeão como treinador pelo Futebol Clube do Porto (década de 1990) acabasse por revelar-se a pessoa indicada para criar uma onda de motivação capaz de levar o clube eu já nem dizia às maiores conquistas, mas pelo menos à decência que a luta permanente pelos lugares de topo sempre permite. Confesso que de estação em estação comecei a sentir-me um pouco entusiasmado com o nome – até porque estava longe de imaginar o desastre que o homem protagonizaria no regresso à selecção portuguesa, para a disputa do mundial asiático de 2002.
Ao chegar ao parque de estacionamento, reparei que a menos de uma centena de metros a agitação era muito grande. Corriam pessoas para um lado e para o outro, nas imediações do Estádio José Alvalade, que em poucos anos iria desaparecer. Vi adeptos, jornalistas e curiosos, um carro de reportagem da SIC a chegar a alta velocidade, microfones de rádio e câmaras de filmar, e até dois ou três cães, se calhar atraídos por tanto burburinho. Parecia um fim de tarde de grandes emoções, mas mesmo assim não me aproximei. Fui até ao carro, em passada rápida, desejoso de apanhar no rádio algum dos noticiários das sete. Na minha mente estava bem firme a ideia de ir ouvir a reportagem que confirmasse a revelação de Fernando Seara: o anúncio de António Oliveira como novo treinador do Sporting.
Não precisei de procurar nenhuma estação em especial. Aquela para a qual tinha o rádio sintonizado na posição um, a TSF, estava a transmitir em directo da sala que o Sporting disponibilizava para a comunicação social. Era para aí que tanta gente corria, sem se preocupar com os desgraçados dos cães, que muito a custo iam conseguindo evitar que os atropelassem. Fui ouvindo pacientemente a reportagem, e de António Oliveira nada. Nem sinal dele nas palavras do repórter, nem sequer nas de um dos dirigentes do Sporting, que fazia de mestre da cerimónia. «Então e as certeza de Fernando Seara?», perguntei-me várias vezes, sem nunca conseguir encontrar resposta. Do rádio teimava em não sair nem uma indicação de quem seria o novo treinador. Tanto que ainda pensei que o melhor seria ir até junto do burburinho e perguntar, que alguém logo me diria. Quando me preparava para sair, no entanto, do rádio surgiu finalmente algo que me fez parar, e que depois me fez começar a tremer nem sei bem de quê. Talvez de dúvida, ou de desilusão, ou pena, ou se calhar apenas de simples incredulidade.
O novo treinador do Sporting era um senhor italiano chamado Materazzi. O nome, logo nos primeiros instantes, não me disse nada. Tanta coisa, tanta conversa, tantas voltas e reviravoltas nas procuras, para no fim irem arranjar, e provavelmente quase a peso de ouro, mais um dos do costume. E com gente em Portugal disposta a trabalhar, à espera de uma oportunidade, se calhar até capaz de agradecer por ir para o Sporting e fazê-lo a troco de muito menos do que o desconhecido Materazzi. Eu não estava mesmo nada a ver quem era o homem, por mais esforços mentais que fizesse. Mas de repente, ao tentar descobrir um qualquer factor de consolo, a ver se identificava aquele nome com uma grande figura do futebol, do nada fez-se luz. Comecei a lembrar-me de qualquer coisa, ainda que de forma algo incipiente. «Materazzi, Materazzi», dizia eu, baixinho. Não, não podia ser…
O nome Materazzi levou-me até a um ex-presidente da federação do futebol italiano. Que coisa estranha… Teriam os dirigentes do Sporting optado por contratar um ex-presidente de uma das federações mais influentes do futebol europeu – ainda por cima um senhor com cargos importantes nas estruturas europeias e mundiais do futebol, a UEFA e a FIFA –, na esperança de conseguirem assim levar a equipa à conquista do campeonato e quem sabe até da Europa? Não, isso seria impossível… Nem que o senhor abandonasse tais cargos. Se bem que, pensando melhor, com os dirigentes que então andavam pelo Sporting, com José Roquette à cabeça, para mim tudo fosse de considerar. Mesmo a hipótese de se meterem a contratar para treinador uma figura assim, por engano, ou então como resultado de mais uma aposta da sua lógica de gestão desportiva, que eu por mais que tentasse não conseguia perceber. Mas de repente o repórter terminou a intervenção em directo da sala da comunicação social do Sporting, e alguém nos estúdios fez um ponto da situação para aqueles que começavam a escutar a emissão. O novo treinador do Sporting era um senhor italiano, de nome Giuseppe Materazzi. «Giuseppe?», interroguei-me, já com o carro a trabalhar. «Giuseppe? Mas o primeiro nome do ex-presidente da federação italiana é Antonio… Antonio Materazzi…» Aquilo era mesmo um grande mistério.
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Bom, eu afinal estava a fazer confusão. Estava a confundir Materazzi com Matarrese. Antonio Matarrese (Antonio sem acento no primeiro «o») era o tal ex-presidente da federação italiana. E Giuseppe Materazzi era um treinador italiano; mais, era o novo treinador do Sporting. Sem nada que pudesse fazer para mudar o estado das coisas, pus o carro em andamento. Matarrese ou Materazzi, afinal pouco me importava. Ex-presidente da federação italiana ou treinador sem grande história nos campeonatos transalpinos, a mim tanto se me dava. Eu, adepto do Sporting, conduzia completamente desligado daquela estranha novidade, desligado de tudo, tomado por uma enorme apatia que mesmo assim ainda me deixava meter mudanças. Até que, ao sair da zona do velho estádio, um cão me obrigou a travar bruscamente, e eu como que saí daquela letargia. Apareceu de repente e atravessou-se, como se estivesse a fugir da multidão que tinha ido ver a apresentação do desconhecido Materazzi. Não me pareceu, no entanto, que fosse um dos dois ou três que eu tinha observado antes. Mas quem sabe…





A superstição do cachecol


Esta frase dizia-me um grande amigo – ou «dizia-me um grande amigo meu», como por vezes se escreve até nas melhores famílias da literatura –, esta frase curta que nem toda a gente será capaz de compreender: «Só mesmo o Sporting!» E dizia-me quase afónico, depois de gritos e mais gritos pelo telemóvel. Eu, a princípio, não conseguia ouvi-lo, pois estava no Estádio José Alvalade no meio de sessenta ou setenta mil pessoas que faziam um barulho ensurdecedor. Às três da manhã. Soube que era ele porque tinha-o na lista de endereços, e o nome apareceu quando o aparelho começou a vibrar. Eu tinha mudado para essa opção porque naquele ambiente nunca poderia detectar as chamadas com o toque que normalmente escolhia. Atendi porque desconfiei de que ele não estava no estádio, de que nem sequer estava em Portugal – por esses tempos andava invariavelmente em viagens de negócios pelo mundo inteiro –, e assim podia fazê-lo sentir um pouco daquela euforia toda. Ele bem que falava alto do outro lado, mas não valia a pena, porque pouco se percebia, só mesmo nos raríssimos intervalos das palmas, dos assobios, dos gritos. Ainda consegui reter duas frases, a de há pouco («Só mesmo o Sporting!») e «Vou a caminho de...», fosse lá de que sítio fosse.
Não era uma questão de «só mesmo o Sporting», mas que foi algo de muito especial o que senti naquela noite, a da festa do título após dezoito anos sem nada ganhar, lá isso foi. A cada momento, pelas reacções com que era confrontado, percebia que havia pessoas que pouco tempo antes não imaginavam o Sporting a ser campeão. Era como se o clube a chegar ao título tivesse sido, por exemplo, o Vitória de Guimarães. O Sporting, para milhares de pessoas em delírio, parecia ter sempre pertencido ao restrito grupo dos grandes mas sem hipóteses de ganhar o campeonato. E isto tanto entre os mais jovens como entre os mais velhos. Para mim não. Talvez por alguns desmandos ilusórios, ao longo das dezoito épocas anteriores eu sempre tinha ido acreditando; não em todas, mas pelo menos naquelas em que o clube tinha lutado mesmo a sério. De forma que, desta vez, quando vi as coisas seguras, não me pus aos saltos, ou aos gritos. Apeteceu-me ficar em silêncio, apenas isso, com a sublime sensação de que o título, o da época de 1999/ 2000, esse mais ninguém podia apanhar.
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Sempre tive as minhas superstições, embora como quase toda a gente diga que até nem são muitas. Há uma que ganhei em 1994, durante um jogo do Benfica em Alvalade, o dos seis a três, um jogo que poderia lançar o Sporting no assalto definitivo ao título de campeão. Entrei no estádio com um cachecol, ao contrário do que era habitual. Um cachecol novo. Mas depois, no final daquela goleada tão difícil de digerir, jurei que nunca mais haveria de levá-lo. Fui cumprindo, ano após ano, só que numa final da taça, de novo contra o Benfica, caí na asneira de recuperar o cachecol, entretanto arrumado no fundo de uma gaveta.
Quando cheguei ao Estádio Nacional, já perto da hora para o começo do jogo, estavam a dar nos altifalantes a constituição das equipas. O treinador do Sporting, Octávio Machado, que até estava a trabalhar bem, tinha-se lembrado de fazer alterações à última hora. Nada de muito significativo, mas eu tive logo um mau pressentimento. E o que é certo é que o Sporting, mesmo favorito para esse jogo, perdeu por três a um, inclusive sofrendo um golo de um avançado argentino que não chegou a fazer grande carreira no Benfica, Mauro Airez. Pior ainda, sobre o apito inicial do árbitro, um adepto do Sporting foi atingido no peito por um very light lançado por um elemento de uma das claques benfiquistas. O pobre homem teve morte imediata. No final, como homenagem, adeptos de ambos os clubes cobriram com os cachecóis a enorme poça de sangue que ficou a marcar a bancada. Deixei também aí o meu malfadado cachecol.
Os anos sucederam-se e o Sporting acabou por chegar a uma posição de grande vantagem na luta pelo campeonato. No dia seis de Maio de dois mil, no jogo de Alvalade com o Benfica, uma vitória garantia o título. E eu voltei a estragar tudo. Resisti à euforia que se apossou da generalidade dos adeptos após a vitória anterior, no Funchal, passei oito horas na fila para comprar um bilhete, desdobrei-me em contactos para conseguir mais um de acompanhante, e por aí adiante. Tudo isso consegui. Mas na manhã do jogo, como que esquecendo-me do que anos antes tinha acontecido, levado por um estranho instinto de imitação, fiz asneira. Comprei um cachecol. Nunca hei-de convencer-me de que não foi por isso que o Sporting falhou completamente nesse jogo, acabando por perdê-lo e adiando a conquista do título de campeão nacional de futebol para a última jornada. Por mais que me digam que as superstições não passam de tolices, eu nunca conseguirei desculpar-me.
Para o último jogo do campeonato, em casa do Salgueiros, deixei o cachecol a um canto. E o Sporting ganhou à vontade, por quatro a zero. O notável Acosta não marcou, mas construiu uma jogada inesquecível para um colega marcar. E o gigante Peter Schmeichel fez uma brincadeira em cima da linha de golo com um pontapé de bicicleta, depois de parar a bola com o peito; o treinador, Augusto Inácio, revelaria depois o que disse nesse momento apenas para si – «Grande artista!»
Podem dizer-me que as superstições são uma parvoíce que eu não me importo. O Sporting ganhou e eu não tinha nenhum cachecol. Talvez até devesse dizer o mesmo que me disse o meu amigo do telemóvel, «Só mesmo o Sporting!», esquecendo por momentos que não sou muito dessas coisas e que os adeptos rivais também pensam assim dos respectivos clubes. Se calhar, ainda que muito baixinho, disse mesmo essa frase nalgum momento da festa. No meio de um estádio a abarrotar, às três da manhã, ao saber da história do tão aguardado aumento do preço do café em Coimbra (havia dezoito anos que o preço estava na mesma), ao ver pessoas a chorarem, aos pulos, a mergulharem nos fontanários. Ao pensar no capitão Iordanov – anos depois tão desconsiderado por vergonhosos dirigentes do clube – a subir por uma grua à estátua do Marquês de Pombal, para colocar um cachecol verde e branco no pescoço de leão. Até ao deparar-me com pessoas conhecidas e de quem temos imagens tão diferentes, todas unidas na mesma alegria. Nem vou mais longe: Paulo Portas aos pulos no Estádio Engenheiro Vidal Pinheiro, mal acabou o jogo; o advogado António Garcia Pereira a chegar para uma reunião às nove da manhã do dia seguinte, com umas olheiras maiores do que as minhas e a dizer que estava com uma directa em cima, pois também tinha marcado presença em Alvalade; e o cientista Fernando Carvalho Rodrigues, mais tarde, a mandar um e-mail de Bruxelas, da sede da NATO, com um leão de porte altivo a segurar uma bola com uma das patas dianteiras. Como tinha dito o meu amigo, «Só mesmo o Sporting!», como se calhar eu cheguei a sussurrar.
Fui para o Estádio José Alvalade pouco depois do apito final do árbitro em Vidal Pinheiro. Éramos um grupo de oito, cheios de entusiasmo e impacientes para assistirmos ao regresso triunfal dos jogadores a Lisboa. Como já não havia perigo, levei o cachecol.





Capitães da areia na cabeça


Agora, no futebol, parece que está na moda dar cotoveladas. Antes era mais tipo murro e pontapé, mas agora é com os cotovelos, sendo o alvo as fuças do adversário. E a moda parece universal, como há bem pouco tempo provou, até mais do que uma vez, um rapaz com nome de inspector da PIDE que o Benfica desencantou na América do Sul. Mas eu não vou falar sobre as cotoveladas, vou é fazer uma viagem no tempo. É um recuo de dez anos, à década de noventa do século passado, a do murro e do pontapé. Por esses tempos, o Sporting e o Benfica tinham as braçadeiras de capitão entregues, em ambos os casos, aos elementos mais emblemáticos de cada equipa. No Benfica a João Pinto (que, tirando o guarda-redes belga Michel Preud’homme, era mesmo o único emblemático na altura), no Sporting a Oceano (que era o mais velho e o de maior carisma). Oceano e João Pinto pareciam por isso mesmo os dois jogadores que deviam manter a cabeça fria até nos momentos de maior pressão. Só que isso nem sempre acontecia. Bem pelo contrário, João Pinto quando se dirigia a um árbitro parecia só não lhe chamar santo; já Oceano, mais comedido nas termos que usava, distribuía pancada pelos adversários em grande parte das intervenções.
Era desta forma que os capitães das duas equipas mais representativas de Lisboa, muitas vezes, demasiadas vezes até, em lugar de ajudarem os colegas acabavam por fazer disparates. Uma vez, em pleno Estádio da Luz, com o Sporting a controlar um jogo que tendo em conta o valor das duas equipas podia e devia ganhar, o capitão Oceano foi expulso por dar uma pancada (com o jogo parado) num avançado do Benfica; nem mais nem menos do que um avançado sueco com nome de marca de batatas fritas que mesmo com os jogos a decorrer era praticamente inofensivo. Quanto a João Pinto, num famoso jogo com o Boavista, e depois de uma jogada que nem tinha sido polémica, só os colegas e os adversários o impediram de esmurrar um árbitro que depois se meteu a ser cantor, um artista chamado Isidoro Rodrigues (o pequeno jogador do Benfica talvez já andasse então a treinar para o mundial asiático de uns anos depois). São apenas dois casos de que ainda me lembro, um para cada capitão de equipa, mas poderia ir buscar muitos mais.
João Pinto e Oceano integravam-se pode-se dizer de forma perfeita (passe a banalidade da expressão) na realidade do futebol português de há dez anos. O futebol em que Sá Pinto, na altura nomeado embaixador da «Expo’98» em Espanha, esmurrou o seleccionador nacional Artur Jorge, acto que meio Portugal aplaudiu (uns anos depois seria ao contrário, o seleccionador nacional a esmurrar um jogador). O futebol em que de novo João Pinto esmurrou um bombeiro que estava de serviço num estádio, coisa que o adjunto do esmurrado Artur Jorge, Raul Águas, em directo na televisão, achou bem, dizendo que se calhar o bombeiro «estava mesmo a pedi-las». Assim como o próprio bombeiro deve ter achado bem, porque três ou quatro dias depois dos murros estava no Estádio da Luz a ver João Pinto jogar, e se calhar pronto para apanhar mais ou, quem sabe, para lhe pedir um autógrafo.
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Já agora, lembro-me de mais uma coisa, que até dá para completar o rol dos três grandes do futebol português: o capitão do Porto era Jorge Costa, que por esses tempos também vi aos murros (a dar e a levar, no caso a levar do liberiano do Milan Georghe Weah, a quem a FIFA depois atribuiu um prémio de fair play a nível mundial). Antes de Jorge Costa o capitão do Porto era Vítor Baía, que também foi esmurrado, e também esmurrou. E em directo para todo o país. O combate, se assim se pode dizer, foi com um dirigente do clube de Campo Maior, que agora já se deixou de futebóis (o clube, e na volta o dirigente), um senhor chamado Pedro Morcela. Dirigente esse a quem Augusto Inácio, treinador-adjunto do Porto na altura, confundiu o nome, também em directo na televisão, chamando-lhe «Pedro Morcelada».
Não sei se Jorge Amado, que escreveu o romance «Capitães da Areia», gostava de futebol. Palpita-me que era capaz de gostar, até por ser brasileiro. Talvez «Capitães da tareia» ficasse melhor como título desta história.





Reaver um golo, reaver a Celine Dion


Já vai para uns anos; coisa do século passado, da década de noventa desse século. Por esses tempos, houve algumas épocas em que no início dos jogos de futebol do Sporting, no entretanto desaparecido Estádio José Alvalade, a apresentação dos jogadores da casa terminava quase sempre da mesma maneira, referenciando o ponta-de-lança da equipa não simplesmente como Cadete mas sim como «o capitão Jorge Cadete». Nas bancadas, o respeito pelo futebolista era imenso, mesmo estando ele bem abaixo do patamar por onde cirandavam colegas como o génio búlgaro Balakov, o jovem Figo ou um defesa holandês que parecia feito de ferro e que se chamava Stan Valkx. Cadete costumava marcar um razoável número de golos, maior até do que qualquer avançado dos que, muitas vezes sem que se percebesse como, acabavam por aportar ao clube quase todas as épocas. Do que ele não se conseguia livrar era do estigma de nunca marcar golos nem contra o Benfica, nem contra o Porto, além do de ser um bocado tosco. Só que os adeptos estavam nas bancadas para apoiar em qualquer circunstância o esforçado capitão. A ele tudo parecia tolerar-se; afinal, Cadete era «o capitão Jorge Cadete», não era nem o Capitão América, nem o Capitão Nemo, nem o Capitão Tormenta, nem o Capitão Roby, nem sequer o Capitão Cueca. Era o ponta-de-lança da equipa, ainda por cima bem diferente de um qualquer «tony-sealy» inglês, ou até do polaco Juskowiak, a que muitos preferiam chamar Juskofiasco.
Um dia, o que parecia ser um belo dia, Cadete conseguiu finalmente marcar um golo a um dos grandes, nada mais nada menos do que ao eterno rival Benfica. O Sporting, treinado então por Carlos Queirós, estava em plena luta pelo título, mesmo tendo perdido contra o Porto no Estádio das Antas na jornada anterior, numa partida em que tinha acabado com oito jogadores em campo e um adepto esfaqueado. Era um fim de tarde chuvoso, mas os sportinguistas estavam em peso em Alvalade para ajudarem a equipa a reviver os tempos do último título, em 1982. A seguir ao golo de Cadete, o Benfica acabou por empatar, por João Pinto, depois Figo ainda fez o dois a um para o Sporting, mas no final, depois da extraordinária exibição de João Pinto, o resultado foi seis a três para os visitantes. O Sporting ficou uma vez mais pelo caminho e o Benfica lançou-se definitivamente para a conquista de um título que antecederia muitos anos de jejum.
Depois deste jogo, Cadete pouco mais história fez no Sporting. Acabou por ir parar a Itália, depois regressou, até que saiu definitivamente para o Celtic de Glasgow (os celtas da Escócia), optando mais tarde pelo Celta de Vigo (os celtas de Espanha, ou talvez até os celtiberos). João Pinto, pelo contrário, mesmo sem o fulgor irrepetível da tarde dos seis a três, não se cansou de fazer das dele de cada vez que atravessava a Segunda Circular, nem que fosse, na falta de algum golo, fazer estragos psicológicos. Até que se mudou definitivamente. Só que antes disso houve uma época em que aconteceu algo bem diferente; João Pinto regressou a Alvalade, uma vez mais, só que atrás dele trazia, imagine-se, o antigo «capitão Jorge Cadete», que tinha sido expulso dos celtas na volta para toda a eternidade.
Eu, que às vezes parece que nunca aprendo, estava a assistir ao jogo. Assim como quatro anos antes, no jogo dos seis a três, ou dos três a seis. Devo dizer que o regresso de Cadete, o tosco a quem antes tudo e mais alguma coisa os sportinguistas perdoavam, esse regresso rapidamente eclipsou João Pinto. O fantasma que este último sempre carregava para Alvalade, ano após ano, perdeu-se no trânsito da Segunda Circular e dessa vez não pairou no estádio. Quem o fez foi mesmo o antigo «capitão Jorge Cadete», transformado sem mais nem menos em avançado suplente do Benfica. Tanto que foi recebido com um prolongado coro de insultos, ainda maior do que aquele destinado ao famoso presidente do Benfica, João Vale e Azevedo. Insultos saídos das bocas dos mesmos sportinguistas que antes costumavam aplaudir o grande «capitão». Nada mais normal no mundo para-normal do futebol. Assim como foram normais os assobios que depois se escutaram, na segunda parte, quando Cadete iniciou o aquecimento; e logo a seguir, quando entrou em campo.
O que mais me marcou, no entanto, foi o medo que Cadete me infundiu, o mesmo que me pareceu infundir a todo o estádio. O antigo «capitão Jorge Cadete», agora apelidado de tudo menos de santo, o tosco de que todos os sportinguistas antes gostavam mas de quem se queixavam exactamente de ser tosco e de não marcar golos aos outros dois grandes, quer dizer, ao Benfica e ao Porto, esse tosco deixou em sobressalto toda a gente de verde e branco. Eu, por mim, com o Sporting a perder por um a zero, depois de um auto-golo de Beto – de quem alguém ao meu lado dizia que era jogador para mais de um milhão de contos, se calhar até para avançado do Barcelona –, eu, por mim, comecei a sentir uns calafrios de cada vez que ele tocava na bola – ele Cadete, embora um toque de Beto também não fosse de fiar. O tosco, no meio dos defesas do Sporting, começou logo a fazer estragos. E só não marcou dois golos, numas jogadas que nem ele próprio deve ter percebido como fez, só não os marcou porque não calhou. Até que acabou por justificar os calafrios, exactamente num canto, como no primeiro golo dos seis a três. Só que foi num canto ao contrário do de quatro anos antes, tão ao contrário que deu no segundo golo do Benfica (que venceria o jogo por dois a um). O problema é que depois o golo foi repartido com Beto, e depois foi dado apenas a Beto, que dessa forma ficou bem próximo de fazer o primeiro hatt-trick negativo da sua vida.
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Mas Cadete, pelos seus festejos, marcou mesmo o golo que toda a gente, do Benfica e do Sporting, sabia que ia marcar. Era o destino que o fazia substituir o fantasma de João Pinto. E o destino tem muita força, mais até do que as tácticas do treinador do Sporting nessa altura, um senhor croata com nome quase de banda desenhada – Mirko Jozic. Cadete nem se importou por quererem roubá-lo em favor (favor, quer dizer...) de Beto, ou porque se estava nas tintas para o golo, ou então porque sabia bem que o golo tinha partido da sua cabeça e que ninguém lho podia tirar, e que Beto não era assim tão bom artilheiro como o pintava o meu vizinho de bancada e que se calhar só valia quinhentos mil contos e o máximo a que podia aspirar era a ponta-de-lança do Galatasaray, da Turquia. Dias depois, num programa de televisão que mostrava os «vipes» desta terra e de outras de além fronteiras, lá apareceu o antigo «capitão Jorge Cadete» a falar do seu novo clube, mas também a reviver as experiências célticas, principalmente um concerto da Celine Dion em Glasgow, onde até lha tinham apresentado. Cadete confessou ter ficado fascinado com a cantora canadiana. Tão fascinado que quando lhe perguntaram se gostaria de voltar a vê-la, não se fez rogado e disse:
– Sim, eu gostava imenso de reavê-la!
O golo, esse pouco lhe importava. Cadete sentia que era bem seu, que Beto afinal não era tão produtivo, e que ninguém lho podia tirar assim sem mais nem menos. Já com a Celine Dion, bem, com a Celine Dion, a cantora canadiana, o caso tornava-se mais complicado.




Afirma Vítor Pereira


Uma frase, «Afirma Pereira tê-lo conhecido num dia de Verão.» É a primeira de «Afirma Pereira», um romance de Antonio Tabuchi, de 1994, que dois anos depois haveria de ser adaptado ao cinema (e que haveria de ter uma das últimas representações de Marcello Mastroianni).
Em 1997, não num dia de Verão mas numa noite de Inverno, o Benfica defrontou o Belenenses e ganhou por dois a um, num jogo de arbitragem esquisita que me fez lembrar da história de Tabucchi; por causa do título e por causa do nome do árbitro, Vítor Pereira. Se as recordações fossem para a frente e não para trás, em vez de um filme esse jogo haveria de ter-me feito lembrar de um processo, o «Apito Dourado».
Já perto do fim o Belenenses vencia por um a zero, mas depois surgiu um golo benfiquista em fora-de-jogo e logo a seguir algo ainda pior, uma bola que não entrou na baliza azul mas que o fiscal de linha resolveu considerar que tinha entrado. Se a primeira asneira teve pouco falatório, já a segunda deu para muitos comentários. Eu, na altura, acabei por também fazer os meus; foi num artigo chamado «Afirma Vítor Pereira», que começava assim…
«Afirma Vítor Pereira que durante cinco segundos teve a certeza de que a bola cabeceada pelo benfiquista Edgar não entrou na baliza do Belenenses. Foram cinco segundos de lucidez, a anteceder a confusão que depois viria a acontecer. De repente, sem mais nem menos, o árbitro achou que não, achou que devia consultar o auxiliar, porque ele era a pessoa mais bem colocada para decidir, por ter visto a bola passar a linha de golo através do corpo, para ele, ele auxiliar, entenda-se, através do corpo transparente do guarda-redes do Belenenses.»
Vítor Pereira afirmava para ver se se desculpava. Já o guarda-redes do Belenenses o que afirmava não era para se desculpar de nada. Vejamos… «Valente, o infeliz guarda-redes, afirma que não, e afirma-o duplamente. Afirma que a bola não passou a linha de golo e, sobretudo, que o seu corpo não é transparente. Claro que assim, com enredos destes, o que não pode ser transparente é o futebol português, afirmam certas pessoas. Já outras afirmam que desde há muito tempo, talvez desde a fatídica derrota de Alcácer-Quibir, ou até desde ainda antes, o futebol luso de transparente não tem nada, nem sequer o corpo do guarda-redes do Belenenses, que só é mesmo transparente para o auxiliar de Vítor Pereira.»
E o treinador do Belenenses – que era, imagine-se, o mais tarde bem sucedido Manuel Cajuda –, o que é que afirmava? «O que ainda ninguém afirmou é se esse auxiliar tem ou não tem filhos. Mas Manuel Cajuda, o treinador do Belenenses, afirma que não queria ser filho de um pai assim, e também que agora, se calhar, nem a União Europeia poderá ajudar o seu clube a recuperar os pontos que lhe foram roubados por Vítor Pereira e pelo famoso auxiliar. Nem sequer um subsídio de pontos deverá dar a União Europeia, afirma ainda Manuel Cajuda, e isso é pena, porque talvez assim se resolvesse a situação.»
E Pinto da Costa, ao ver o Benfica tão ajudado, teria alguma coisa para afirmar? Claro que tinha (e metia também o Sporting ao barulho, por causa de um jogo com o Varzim, no Estádio José Alvalade). «Afirmam na União Europeia que o desemprego é o principal problema da Europa, mas o senhor Jorge Nuno Pinto da Costa, o presidente do Porto, afirma que um problema grande mesmo é agora o seu clube ter de contar também com os árbitros e os fiscais de linha que marcam golos a favor do Sporting e do Benfica.»
O meu Sporting, é claro, defendia-se, pela boca do assustador José Roquette. «Quanto ao doutor Roquette, o presidente do Sporting, afirma que os árbitros e os auxiliares só marcam golos para o Benfica e que o que aconteceu no jogo entre o Sporting e o Varzim nem ele já se lembra bem o que foi.»
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O futebol português, naqueles tempos de 1997, como em qualquer tempo, era bom para sobre ele se escrever. Pequenos textos, claro; os que fosse preciso. Um romance já seria mais difícil. Se desse para romances, Tabucchi, por exemplo, talvez não tivesse escrito o «Afirma Pereira», talvez tivesse optado por outro, qualquer coisa do género «Afirma Vítor Pereira». Mais tarde, em vez de «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro» – que data precisamente de 1997 –, poderia escrever «A Cabeça Perdida do Auxiliar de Vítor Pereira», ou mesmo, quem sabe, «A Cabeça Perdida dos Senhores do Futebol». Até agora um romance assim chamado poderia fazer sentido.



Remodelações com futebol

Nunca percebi muito bem as remodelações governamentais; e o mais certo é que o tempo passe e eu continue sem perceber. Às vezes, quando aparece um ministro a roubar o próprio Estado na sisa do apartamento de luxo, ou outro a contar anedotas macabras sobre pessoas que morreram num hospital público, aí até que entendo, e bem, mas de resto… Custa-me a entender o desgaste, a falta de rumo, aquela coisa do ambiente de depressão que contagia o país. Como se novas moscas viessem menos deprimidas, menos desgastadas, com um rumo mais bem definido nas asas. Mesmo assim, mesmo eu não entendendo, de tempos a tempos lá aparece o falatório sobre a tal remodelação inevitável, e também inadiável.
E depois? E depois da remodelação? Como é que é? Os secretários de Estado, os assessores, as secretárias, os amigos, as amigas, os guarda-costas, os motoristas, os porteiros, os que «trabalham» a comunicação social, quando não na própria comunicação social, os empreiteiros, toda essa gente, como é que é? Quanto tempo demorarão as trocas, até que assente a poeira e se possa em paz redecorar os gabinetes? Confesso que não sei.
O pior, às vezes, é comunicar a remodelação, dizer quem sai e quem entra, de forma a que todo o país fixe bem os nomes dos novos. Mas dos novos de topo, até para aí a secretário de Estado, porque o resto convém é que não se saiba. A comunicação, sempre a comunicação, cada vez mais.
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Lembro-me particularmente bem de uma remodelação, anunciada por António Guterres ao cair da noite. Havia um Sporting – Real Madrid em Lisboa e a televisão dava o jogo em directo. Dessa vez o primeiro-ministro aproveitou o intervalo do jogo para fazer o anúncio oficial das mudanças no governo. Faltava um quarto de hora para as nove da noite e o Sporting ganhava por dois a zero. Eu, mesmo assim, não estava descansado. O Real Madrid era o Real Madrid, era, é e o mais certo é que continue a ser por muito tempo, por isso ao defrontá-lo todos os cuidados me pareciam poucos. E o Sporting confirmou-o amargamente na segunda parte, quando eles chegaram ao empate. Terá sido Guterres que deu azar ao Sporting? Ou terá sido o Sporting, e quem sabe até o próprio Real Madrid, terão sido os dois clubes a dar azar a Guterres? A verdade é que nunca cheguei a uma conclusão.
Houve tempos em que os deputados alteraram os horários na Assembleia da República por causa de uma telenovela brasileira. E voltaram a repetir a graça por causa do futebol, muitas vezes. É a força das coisas; contra factos não há argumentos, como há muito quem goste de dizer. Com as atenções viradas para Alvalade, talvez Guterres não tivesse outra escolha. Ou aparecia a todo o país no pequeno ecrã, tipo anúncio de um óleo qualquer no intervalo do jogo, ou ia mesmo ao estádio para uma actuação de dez minutos enquanto os jogadores recuperavam forças para a segunda parte. Escolheu a primeira opção e assim pôde falar para todo o país à hora em que milhões de pessoas se concentravam nas imagens da televisão. E apareceu em três canais, porque se a RTP transmitia o jogo, os dois concorrentes continuavam com os noticiários no ar.
Mas se Guterres tivesse planeado as coisas de maneira diferente, reservando o discurso para o relvado do Sporting, não é líquido que conseguisse passar da teoria à prática. A toda poderosa UEFA o mais certo seria não deixar um político actuar no intervalo de um jogo sob a sua jurisdição, ainda por cima um jogo da Liga dos Campeões. E então, sendo o discursador um ex-presidente da União Europeia, de cuja existência a UEFA nunca quis saber (existência da União Europeia, não do discursador, coitado), então está-se mesmo a ver...
Guterres escolheu o pico de audiências. Foi obrigado a deixar as costumeiras vinte horas dos dias sem futebol europeu num dos canais de televisão. Até um primeiro-ministro por vezes tem de se render à realidade dos factos. As pessoas tinham mais com que se preocupar, tinham outros interesses. Não admirou assim que Guterres se tivesse adaptado de forma a ser ouvido, que afinal é o que sempre interessa aos verdadeiros líderes, grandes ou pequenos, e até mesmo à esmagadora maioria dos cantores. Ser ouvido, apenas isso. Pouco importa que se opte pelo intervalo de um jogo de futebol, ou pelo espaço de tempo entre o fim de uma telenovela e o respectivo bloco de cenas do próximo capítulo, se houver. Pouco importa até que a opção seja aparecer em directo num programa de sucesso, tipo o do Herman daquela época, quem sabe ao lado de uma mulher quase nua, ou a acompanhar a rábula da Maria Rueff. Ou tipo um da TVI da mesma época, o «Big Brother»; neste, num assim, o primeiro-ministro podia muito bem falar ao país imediatamente antes de ser revelado o nome do concorrente que teria de abandonar a casa, ou durante o percurso do desgraçado até junto da apresentadora, talvez ajudando-o a carregar a mala, coxeando um bocado e a revelar novos ministros de duas em duas passadas.
São cenários possíveis, embora talvez um pouco distantes. A força do futebol continua inquestionável, daí que o melhor seja aproveitar os intervalos dos grandes jogos, como Guterres fez naquele Sporting – Real Madrid da segunda metade da década de noventa do século passado. E, já agora, os tempos mortos das substituições e da assistência aos jogadores magoados, isso também se pode aproveitar. Um minuto aqui, um minuto ali, e com a conversa bem alinhavada pode perfeitamente anunciar-se meia dúzia de medidas. Com sorte, se o jogo for a penalties, até se explica o que irá mudar de facto na vida dos portugueses.






Meias palavras


Um mundo de meias palavras, é o que se pode chamar ao futebol. Ou talvez um mundo de palavras completas, só que nunca em grande número, pelo menos de cada vez. Desde as célebres referências de Pedro Santana Lopes, nos corredores da estação televisiva SIC, ao pinhal de Canal Caveira, até ao sistema que muita gente assinala, sem esquecer expressões como «vocês sabem do que é que eu estou a falar» (de Octávio Machado) ou «o que hoje é verdade amanhã é mentira» (de Pimenta Machado), o que nunca faltou nos últimos anos foi quem lançasse indícios de que o mundo do futebol assenta em pilares feitos de materiais bem estranhos. Mas sempre por meias palavras, porque se não há machado que corte a raiz ao pensamento, como um poeta se lembrou um dia de escrever, com as palavras a situação é bem diferente.
Uma vez, há meia dúzia de anos, o então treinador do Gil Vicente, Álvaro Magalhães – talvez longe de sonhar que um dia seria campeão como adjunto do Benfica –, lembrou-se de uma coisa extraordinária, no final de um jogo em que a sua equipa foi derrotada pelo Sporting. Depois de exigir respeito para com o clube que representava, saiu-se com mais uma preciosidade para o nosso futebol: «Se eu revelasse o que me disseram na quinta-feira, nem sei o que me ia acontecer.»
O que teria sido? Isto foi o que de certeza pensaram os jornalistas, alguns meio atordoados. Mas Álvaro Magalhães, nada… «Boa noite, meus senhores!», foi o que disse, e ala que se faz tarde. Eu, por mim, lembrei-me do belga Serge Cadorin, antigo avançado do Portimonense e já falecido, autêntico terror dos guarda-redes na década de oitenta do século passado. Uma vez vi-o na televisão a comentar o facto de lhe terem posto uma bomba na cozinha, outra no carro e por aí adiante, coisas que só não o mataram por pura sorte. Dizia Cadorin: «Não quero falar disso!» Cadorin, já na Bélgica depois de retirado do futebol, parecendo fazer vida de feirante (roupas e outras bugigangas), devia saber bem que o melhor era estar calado. Mas só perante as câmaras, os gravadores e os cadernos de apontamentos, porque em off provavelmente não se ficava pelas meias palavras.
Claro que até o off tem perigos. Já houve casos em que jornalistas mais espertalhões deixaram gravadores ligados, ou as câmaras a filmar, embora com as câmaras seja mais difícil. Para já não falar de cadernos e canetas, coisa quase impossível; uma caneta a escrever sozinha e um caderno a deixar. Gravador é o óbvio… Por exemplo, o daquele jornalista que arranjou gravações de um seleccionador nacional de futebol a dizer com a maior das naturalidades que o que era preciso era matar dois ou três fulanos. Isto em off (of course, ou se calhar deveria escrever off course, ou até, para equilibrar as palavras nas letras duplicadas, off ccourse).
É um pouco a ideia que tenho do mundo do futebol; diz-se tudo, mas só em off. Quem sabe se Álvaro Magalhães, depois de sair da conferência de imprensa, não terá revelado o que lhe tinham contado na tal quinta-feira? Assim como Cadorin poderia dizer aos amigos quem tinha mandado colocar as bombas depois das confusões com um suposto penalty encomendado para uma tarde de domingo em Portimão, num jogo contra o Futebol Clube do Porto – jogo que o Portimonense haveria de ganhar por um a zero (golo, imagine-se, do próprio Cadorin).
***
Meti-me uma vez (ou melhor, meteram-me) a organizar uma conferência sobre futebol. Lembro-me de que no contacto com várias pessoas se confirmou a sensação que eu tinha desde havia muito tempo. Entre directores, presidentes, treinadores, empresários, jornalistas, comentadores, muitos contavam enormidades que só vistas e filmadas de ângulos bem apropriados. Mas na altura dos trabalhos, em vez de irem em frente, regressavam à normalidade dos discursos de conveniência. A regra do off, percebi então, imperava mesmo. Impera. E imperará.
Lembro-me também de um almoço com um ex-dirigente desportivo. Contou-me uma história passada numa das célebres noites europeias de há uns bons anos. Um amigo seu, responsável pelo futebol noutro clube, pensou em arranjar umas raparigas – ainda não se falava em fruta nessa altura – para o árbitro que vinha lá das europas. Parecia ser o costume. Só que, ao contrário de muita gente, ele não sabia que o dito árbitro, por sinal famosíssimo, não era propriamente um grande apreciador de raparigas; ou senhoras que fossem. A verdade é que o árbitro terá ficado pior do que doido ao ver as raparigas – e senhoras que fossem – a entrarem-lhe pelo quarto adentro. Nem quando o responsável do clube percebeu quem ele na verdade queria, e lhe tentou arranjar, nem aí ele ficou de bom humor. Quase vinte e quatro horas depois, o clube haveria de perder o jogo, e sem grande exibição do adversário. Muitos comentadores acabariam por falar de uma noite infeliz do árbitro; sem saberem, é claro, que a noite infeliz tinha sido a anterior.



O golo de Belloumi

Uma fotografia a preto e branco, de 1982. O seu autor, quando a tirou, estava junto a uma das balizas de um estádio de futebol, em Gijón, no norte de Espanha. É a baliza que o guarda-redes da selecção de futebol da então República Federal da Alemanha ficou a defender na segunda parte do jogo que disputou contra a da Argélia. O guarda-redes é o famoso Shumacher, que na foto olha para a bola a entrar na baliza, depois de rematada por um jogador argelino. Há mais três jogadores alemães a olharem para a bola, sem nada que possam fazer para evitar o golo: o central Breitner, o lateral direito Kaltz e um outro que não consigo perceber quem é. Há também um jogador argelino, precisamente o autor do remate vitorioso.
Vi a fotografia em princípios de 2007, na preparação de um trabalho jornalístico relacionado com a diversidade cultural na zona do Mar Mediterrâneo. O golo é o segundo que a Argélia marcou naquele jogo do campeonato do mundo de futebol, que em 1982 se realizou bem perto de nós, em Espanha. Lembro-me de que nesses tempos, por cá, ficávamos sempre feitos parvos a ver outros países a disputarem as fases finais do mundial e ainda por cima a ouvirmos as asneiras dos comentadores, como uma então de uso corrente, de que não havia problema porque tínhamos o Brasil para nos dar alegrias. Bom, o jogo disputou-se no dia dezasseis de Junho, em Gijón, num estádio chamado El Molinon. Eu vi-o pela televisão, ao contrário do que aconteceu com outros desse mesmo mundial, por coincidirem com as horas em que tinha consulta marcada numa psicóloga de Silves, no Algarve, para saber qual era a minha vocação, por causa daquelas opções dos estudos. Creio que a psicóloga nunca descobriu nada de concreto, pelo menos é a ideia que tenho, mas ao certo não sei. A verdade é que me lembro de poucas coisas das consultas, apenas de alguns desenhos que tinha de fazer, de umas figuras geométricas, de números para fixar e de perguntas a que tinha de responder. Nas perguntas havia uma que falhei, nem sei se redondamente, sobre o significado da sigla SARL (que logo a seguir fui informado de que queria dizer Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada); respondi Sociedade Artística e Recolectora Lusitana, todo cheio de certezas, porque uns dias antes tinha visto no festival da canção, ainda o de Portugal, a actuação de um grupo com esse nome e cujos elementos eu estava longe de imaginar que queriam só passar por engraçadinhos.
Mas adiante… Aquele jogo de Gijón eu vi, e numa televisão a preto e branco, exactamente como a fotografia. Na altura os alemães até metiam medo (e se ligássemos aos comentadores de então ainda se tornava pior); já os argelinos eram vistos quase como uma espécie exótica que provavelmente até nem deveria ser autorizada pela FIFA a participar em coisas tão adiantadas na régua do desenvolvimento. Os alemães acabariam por chegar à final (para uma derrota frente à Itália), e esse percurso de sucesso aconteceria com alguma sorte mas também um bocado à má fila – depois do jogo com a Argélia defrontaram a Áustria e ganharam por um a zero, com as coisas a parecerem ter sido todas combinadas antes, e numa das meias-finais o tal Shumacher da fotografia atropelou o defesa francês Battiston e atirou-o sem sentidos para fora do jogo, ficando ele em campo até à decisão final por penalties. Mas voltando ao jogo de Gijón, ainda na primeira fase da competição… As coisas estavam muito complicadas, com os minutos a passarem e os alemães a enervarem-se. Até que os argelinos marcaram, por intermédio de um jogador de quem em Portugal provavelmente pouca gente alguma vez tinha ouvido falar. Foi uns minutos depois do intervalo, o jogador chamava-se Madjer e tinha então vinte e seis anos. Lembro-me de que fiquei eufórico ao ver aquilo, até que uns minutos depois os alemães empataram, com um golo de um avançado conhecido de toda a gente no mundo português do pontapé na bola, conhecido de jogar pela selecção e sobretudo pelo Bayern de Munique; era um jogador com um nome mesmo à alemão, Rummenigge.
Quase chorei, ou terei pensado em chorar… Mas logo a seguir, um minuto depois, os argelinos voltaram a marcar e eu, que mais tarde me habituei a apreciar o autor do primeiro golo, pela história magnífica que viria a escrever em Portugal, eu desde esse momento de festa dos argelinos nunca mais esqueci o nome do marcador do golo da vitória da selecção que era tida como um dos bombos da festa espanhola. Não voltei a vê-lo jogar, mas nunca mais me esqueci do nome, Belloumi; um nome que os comentadores, sem eu perceber a razão, pronunciavam de uma forma lenta, sílaba a sílaba, como se nem acreditassem que estavam a referir-se ao marcador do golo da vitória da Argélia, a selecção dos jogadores que corriam como gazelas enquanto os alemães pareciam atolar-se misteriosamente no relvado seco de Gigón.
***
Muitos anos depois, em 2007, na cidade de Marselha, durante um almoço na Universidade Euromediterrânica (um almoço com várias pessoas ligadas à área da gestão de recursos humanos, representantes de associações de vários países mediterrânicos), lembrei-me do golo de Belloumi. De repente as pessoas começaram a levantar-se, e a certa altura eu dei comigo na mesa apenas com o presidente da associação argelina, um senhor chamado Ahmed Mana (o apelido lê-se má-ná), com quem já tinha falado demoradamente mas sobre matérias ligadas a gestão de recursos humanos. O senhor Mana, que então também era o presidente da federação que naquela área da gestão congrega várias associações de países mediterrânicos, a certa altura, quem sabe cansado de falar de coisas das empresas, do trabalho, dos negócios, perguntou-me: «Est-ce que vous connais Madjer?» E eu disse-lhe que sim, claro, e falei durante alguns minutos do jogador genial que passou pelo meu país poucos anos depois do mundial espanhol, relançando uma carreira que em França estava a ser muito apagada. E o senhor Mana, para meu espanto, pareceu estranhar o facto de eu saber tanto sobre Madjer. Isso não era difícil, pelo percurso de Madjer em Portugal, pelo golo inesquecível de Viena em 1987, na final da Taça dos Clubes Campeões Europeus, por tantas outras façanhas – mesmo não jogando no meu clube, o Sporting.
O golo de Viena, o senhor Mana descreveu-o em pormenor apenas para mim, como se eu nunca o tivesse visto. E depois descreveu outras proezas do jogador que tanto fez brilhar o Futebol Clube do Porto. Fui ouvindo o que ele contava, as histórias de Madjer, umas que eu conhecia, outras que nem imaginava, até que a certa altura não me contive e interrompi-o. Falei-lhe do jogo de Gijón em 1982, do golo inaugural de Madjer, e isso fê-lo encostar-se um pouco à cadeira, como se alguma coisa invisível o empurrasse para trás. Parecia não acreditar que aquilo fosse possível. E então eu lembrei-me de outro golo, e falei-lhe dele. Falei-lhe da minha tremenda emoção, eu com catorze anos, na serra do Algarve, a província com nome árabe, eu ainda criança, com lágrimas nos olhos ao sentir que os assustadores alemães não tinham como reagir ao golo de Belloumi.



Por uma qualquer novela

Um dia o Comité Norueguês do Nobel recebeu uma carta da Suécia. Nela ia a proposta de que futebol fosse distinguido com o Prémio Nobel da Paz do ano de 2001. Assinava-a um senhor chamado Lars Gustafsson – não sei bem se o conhecido escritor de romances se apenas um escritor de cartas –, cidadão da Suécia, precisamente o país onde são atribuídos todos os Prémios Nobel excepto o da Paz, que é uma iniciativa norueguesa. Daí a razão, por exemplo, de José Saramago ter ido a Estocolmo receber o seu (da Literatura), enquanto que José Ramos Horta e o bispo Carlos Ximénes Belo (distinguidos com o Prémio Nobel da Paz) se deslocaram a Oslo.
Lars Gustafsson, na carta enviada para a capital da Noruega, realçou o facto de o futebol promover a harmonia e a compreensão entre as nações. Para ele, o futebol desempenhava, e haveria de continuar a desempenhar, «um papel importante na aldeia global» em termos de «criação do entendimento entre as pessoas». Além disso, realçava, «muitas vezes nações hostis encontram-se nos campos de futebol»; fornecia mesmo alguns exemplos, como o jogo entre os Estados Unidos e o Irão, no Mundial de 1994, e a selecção única apresentada pela Coreia do Norte e pela Coreia do Sul no Mundial de Sub-20 de 1991, realizado em Lisboa e onde a selecção portuguesa (de Figo, Peixe, Rui Costa, João Pinto, Jorge Costa, Capucho e tantos outros) acabaria como campeã.
Confesso que ao ler a notícia pela primeira vez (lembro-me de que era da Agência Lusa) não me veio logo à cabeça a FIFA para receber o prémio. Ainda fiquei um bocadinho a pensar, mas depois percebi que teria mesmo de ser a FIFA, ou melhor, o seu presidente, a deslocar-se a Oslo.
Quanto a reacções, algumas, embora de cá, que eu tenha tomado conhecimento, apenas uma… Gilberto Madaíl, que já era presidente da Federação Portuguesa de Futebol na altura, considerou que se tratava de «uma excelente notícia» e de «uma honra para o futebol mundial». Não falou foi do futebol português, de como é que poderia ficar no meio de tudo aquilo – aquilo, o prémio, já se vê, se o Comité Norueguês do Nobel fosse na conversa do senhor Lars Gustafsson. Talvez devesse ter falado, ou talvez não. A verdade é que não sei ao certo. A federação presidida por Gilberto Madail integra a FIFA – seria isso suficiente para reclamar nem que fosse só um bocadinho de um eventual Prémio Nobel da Paz?
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Há outro prémio em que a situação seria diferente. Aí as minhas dúvidas dissipam-se; inclusive, eu recomendaria com algum entusiasmo o futebol português para esse prémio. Refiro-me ao Grande Prémio do Romance e da Novela, da Associação Portuguesa de Escritores. Creio que o valor anda pelos quinze mil euros. Para o futebol cá da terra até não será muito, mas também o dinheiro não é o mais importante. Acima de tudo, está o prestígio.
O futebol português, não por causa de romances, mas indiscutivelmente pelas suas novelas, por qualquer uma das muitas que vai produzindo, haveria de merecer a atenção. Resta saber se haverá alguém disposto a mandar uma carta à Associação Portuguesa de Escritores sugerindo a distinção; nem que seja um escritor, de romances ou apenas de cartas, como o senhor Lars Gustafsson.
Haveria de ser uma bela cerimónia, a da entrega do Grande Prémio do Romance e da Novela ao futebol português, de certeza representado ainda por Gilberto Madail. No Verão, em Tróia ou na Gulbenkian – locais habitualmente escolhidos –, lá iria mais uma vez o presidente da República abrilhantar a ocasião. Ainda por cima um presidente como o de agora, doutorado em Literatura, mesmo que a coisa tenha sido arranjada nas índias e muito provavelmente sem que os doutoradores soubessem bem o que estavam a fazer. Na volta, para o nosso futebol, até nem ficava mal.