sábado, 30 de julho de 2011

António Souto – Crónica (38)


É aqui, neste nosso desvão, que a agonia nos bate à porta. E nós abrindo-a, para já um bocadinho só, contrariados, mas logo que sejam passadas as férias, não haverá músculo que a mantenha intransponível. Com as carreiras congeladas e os salários um tanto diminuídos, o pessoal ainda vai achando quase normal dar uma mãozinha, mas quando as bilheteiras reclamarem aumento, e os bens de consumo mais essenciais se tornarem ainda mais essenciais, e o Natal se adivinhar menos feliz, e a saúde menos saúde, e a crise mais crise e mais perdurável, aí é que a porca vai torcer o rabo.

Troikas e baldroikas
Ultimamente tem morrido muita gente. A cada ano que passa fico sempre com a estranha sensação de que morre mais gente, de que se morre mais. Está bem, há defuntos que não me dizem nada e outros que me dizem muito pouco, e com esses não me preocupo, mas a cisma maior é com aqueles por quem nutria alguma consideração, particularmente com aqueles por quem tinha alguma ou muita estima, afeição e amizade, que com estes a tumba brada mais forte, atinge-nos o imo.
Depois acabo fatalmente por concluir que a morte dos outros está na razão directa do meu avelhentar, o que na embocadura dos cinquenta aflige qualquer espírito inconformado.
Agora que está dado o tom, a fugir para o derrubado, podemos saltar solidariamente para aquilo que efectivamente aflige a nossa comunidadezinha de Vila Real do norte a Vila Real do sul, agora e sobretudo aqui (se bem que o próprio universo, que é coisa maior, a continuar este descalabro sistémico, não tarda nada está de rastos e com os pólos invertidos).
Porque é aqui, neste nosso desvão, que a agonia nos bate à porta. E nós abrindo-a, para já um bocadinho só, contrariados, mas logo que sejam passadas as férias, não haverá músculo que a mantenha intransponível. Com as carreiras congeladas e os salários um tanto diminuídos, o pessoal ainda vai achando quase normal dar uma mãozinha, mas quando as bilheteiras reclamarem aumento, e os bens de consumo mais essenciais se tornarem ainda mais essenciais, e o Natal se adivinhar menos feliz, e a saúde menos saúde, e a crise mais crise e mais perdurável, aí é que a porca vai torcer o rabo.
Aí é que os navegadores à deriva de hoje (desempregados «depois de estar a Índia descoberta») vão perceber que a gente não tem mesmo emenda. Pelos vistos, nunca tivemos. Nem mesmo quando fomos grandes, quanto mais agora… E não se diga que não houve em todos os tempos quem, visionariamente, avisasse a tripulação.
Eça, sempre Eça.

«Nós estamos num estado comparável, correlativo à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma ladroagem pública, mesma agiotagem, mesma decadência de espírito, mesma administração grotesca de desleixo e de confusão. Nos livros estrangeiros, nas revistas, quando se quer falar de um país católico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa – citam-se ao par a Grécia e Portugal. Somente nós não temos como a Grécia uma história gloriosa, a honra de ter criado uma religião, uma literatura de modelo universal e o museu humano da beleza da arte.» («Farpas»)

«Que fazer? Que esperar? Portugal tem atravessado crises igualmente más: – mas nelas nunca nos faltaram nem homens de valor e carácter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não temos, dinheiro também não – pelo menos o Estado não tem: – e homens não os há, ou os raros que há são postos na sombra pela Política. De sorte que esta crise me parece a pior – e sem cura.» («Correspondência»)

«Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações./ A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse.» («Distrito de Évora»)

«A única crítica é a gargalhada! Nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. E no entanto é o único comentário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? gargalhada. Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sempre esta política, liberal ou opressiva, terá em redor dela, sobre ela, envolvendo-a como a palpitação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, e cruel – a gargalhada! Política querida, sê o que quiseres, toma todas as atitudes, pensa, ensina, discute, oprime – nós riremos. A tua atmosfera é de chalaça.» («Uma Campanha Alegre»)

As citações são longas, como longas foram as advertências. Só assim se ajuízam as troikas e baldroikas da nossa sina, deste país, destes políticos e, parodiando com graça Branca Flor, que Deus a tenha, das coisas «que eles inventam»!...
Como na morte dos outros, em mim o mal é mesmo capaz de estar na casa dos cinquenta.
Gargalhemos, por isso, enquanto é dia!
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Crónica de Julho de 2011 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17,18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36; 35; 37.

domingo, 24 de julho de 2011

Mau gosto

António Nogueira Leite, agora metido na administração da Caixa Geral de Depósitos, escreveu no «Facebook» sobre a morte de Amy Winehouse um post de muito mau gosto («cá para mim comeu qualquer coisa que lhe fez mal»). Não consegui deixar de me lembrar do caso do lamentável ministro do ambiente Carlos Borrego (a quem há já uns bons anos Cavaco Silva se viu obrigado a pôr um par de patins), quando contou a anedota nojenta de que os corpos dos hemofílicos mortos no Hospital de Évora com sangue contaminado eram reciclados para aproveitar o alumínio. Às vezes uma pessoa não percebe o que vai na cabeça desta gente.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Agradecimento à corja

É um poema de Joaquim Pessoa, que penso que vai integrar o seu próximo livro, com 365 poemas, um por cada dia do ano. O poema, sem nenhum título que não o do número do dia que o autor lhe atribuiu, tem circulado pela Internet, onde ficou conhecido como «Poema de agradecimento à corja». É assim:


Obrigado, excelências.

Obrigado por nos destruírem o sonho e a oportunidade

de vivermos felizes e em paz.

Obrigado

pelo exemplo que se esforçam em nos dar

de como é possível viver sem vergonha, sem respeito e sem

dignidade.

Obrigado por nos roubarem. Por não nos perguntarem nada.

Por não nos darem explicações.

Obrigado por se orgulharem de nos tirar

as coisas por que lutámos e às quais temos direito.

Obrigado por nos tirarem até o sono. E a tranquilidade. E a alegria.

Obrigado pelo cinzentismo, pela depressão, pelo desespero.

Obrigado pela vossa mediocridade.

E obrigado por aquilo que podem e não querem fazer.

Obrigado por tudo o que não sabem e fingem saber.

Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera.

Obrigado por fazerem de cada um dos nossos dias

um dia menos interessante do que o anterior.

Obrigado por nos exigirem mais do que podemos dar.

Obrigado por nos darem em troca quase nada.

Obrigado por não disfarçarem a cobiça, a corrupção, a indignidade.

Pelo chocante imerecimento da vossa comodidade

e da vossa felicidade adquirida a qualquer preço.

E pelo vosso vergonhoso descaramento.

Obrigado por nos ensinarem tudo o que nunca deveremos querer,

o que nunca deveremos fazer, o que nunca deveremos aceitar.

Obrigado por serem o que são.

Obrigado por serem como são.

Para que não sejamos também assim.

E para que possamos reconhecer facilmente

quem temos de rejeitar.

sábado, 2 de julho de 2011

Revista «human» de Julho

Transformar materiais cujo destino seria o lixo em peças únicas de eco-design, numa nova abordagem ao conceito de moda que já ultrapassou as fronteiras portuguesa: o caso de sucesso da Tela Bags na «human» de Julho, já nas bancas (ver aqui).

Mentir

Independentemente da situação do país, um mentiroso é um mentiroso.

António Souto – Crónica (37)

Este cidadão comum não volta. Vai a um particular, logo ao dobrar da esquina, que por cinquenta e cinco euros o consulta, o ausculta e lhe põe nas mãos uma molhada de receitas para uns examezinhos ao sangue, aos pulmões, à próstata, ao abdómen, à tiróide, ao coração e à paciência. Quando houver resultados, o cidadão comum deve voltar para nova consulta…

Tudo por uma carta
Um cidadão comum abre um jornal e depara-se com a notícia de que há centenas ou milhares de condutores em situação de infracção por não terem revalidado a sua carta de condução. A legislação fora alterada e agora a idade que comanda a validade é outra, que é como quem diz, para as categorias e subcategorias mais baixas, aos cinquenta, aos sessenta, aos sessenta e cinco, aos setenta, aos setenta e dois, aos setenta e quatro, aos setenta e seis e por aí fora, de dois em dois até que a morte os separe…
O cidadão comum dá-se conta de que está quase a cumprir meio século de existência, o primeiro prazo de validade. Desencadeia, por isso, o normal processo que qualquer cidadão zeloso dos seus deveres desencadearia.
Começa então por ir ao médico de família, mas descobre acidentalmente que já não o tem. Agora, só às sete da manhã para receber uma senha para outro doutor, assim tipo de substituição, se houver doutor e se houver senhas suficientes, ou então volta no dia seguinte, ou no outro, ou no outro ainda.
Este cidadão comum não volta. Vai a um particular, logo ao dobrar da esquina, que por cinquenta e cinco euros o consulta, o ausculta e lhe põe nas mãos uma molhada de receitas para uns examezinhos ao sangue, aos pulmões, à próstata, ao abdómen, à tiróide, ao coração e à paciência. Quando houver resultados, o cidadão comum deve voltar para nova consulta, trazer um impresso de uma escola de condução, e estando tudo bem pagará outros cinquenta e cinco euros mais o custo da assinatura no tal impresso atestado ou atestado impresso.
Pouco convencido, o cidadão comum, que há poucos meses fizera exames de rotina, decide tentar a sua sorte e bater a outras portas. Abre-se-lhe uma, e em poucos minutos fica o cidadão atestado por uns míseros quinze euros da sua ainda robustez e da sua necessária capacidade para se desembaraçar na estrada com a habilitação devida.
Passo seguinte, tirar um boneco a cores e em fundo branco, fundamental o fundo branco, e ala para um serviço qualquer que receba o pedido de revalidação e o encaminhe para o Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres.
A afável funcionária verifica que o cidadão comum tem tudo quanto é exigido para o acto – atestado médico, foto a cores e com fundo branco, cartão do cidadão e carta de condução antiga (o pagamento efectua-se no fim), só precisa mesmo é do código do cartão de cidadão. O incrédulo cidadão ainda arrisca um «qual código?», mas é logo tranquilizado, «o da morada, que vem na carta que recebeu para levantar o cartão, não se lembra?». Lembra-se, o cidadão comum lembra-se da carta, só não se lembra do local exacto onde de certeza a guardou religiosamente há uns dois anos. Voltou o cidadão a casa e não encontra o rasto àquela carta assim do género daquela que às vezes nos chega das Finanças, da famigerada Direcção-Geral das Contribuições e Impostos. Regressa o cidadão ao balcão de atendimento de há pouco e fica a saber que sem o código nada feito, e que se calhar terá de renovar o cartão de cidadão.
O cidadão comum liga para o Portal do Cidadão, e do outro lado confirma o pior, que não se emitem segundas vias dos códigos do cartão de cidadão e que o cidadão desmemoriado terá mesmo de renovar a sua identidade.
O cidadão comum investe para uma conservatória e em menos de uma hora (com muita, muita sorte para um cidadão comum) estava medido e fotografado e digitalizado e tranquilizado, que dali a cinco dias úteis receberia uma carta com uns códigos e que já poderia ir levantar o seu novo cartão com chip para mais uns cinco aninhos.
Quanto à nova carta de condução, bom, é ter o cidadão comum confiança no sistema que, como todos sabemos, existe inequivocamente para auxiliar o comum dos cidadãos, que para isso se descobriu o verdadeiro prodígio do simplex. E pelo meio, por via das coisas, ter muita fé em quem manda nos homens e na terra inteira, sem dramas, que afinal o importante é mesmo ter um código na alma.
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Crónica de Junho de 2011 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36.