sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Personagens de «O Medo Longe de Ti» – 4

O mágico velhinho
«E então vi o mágico velhinho a descer do comboio-ladrão, à frente de toda a gente, a fazer sinal de que não, de que tu não vinhas. Chegou-se ao pé de mim e eu não consegui pontapeá-lo. Por mais que quisesse, não consegui pontapeá-lo como nos últimos ramos da árvore alta da floresta das regras.»
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Outras personagens: 1, 2, 3.
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Contos inesquecíveis (6)

«Havia um homem que era muito senhor da sua vontade. Andava às vezes sozinho pelas estradas a passear. Por uma dessas vezes viu no meio da estrada um animal que parecia não vir a propósito – um cágado.»
«O Cágado», de Almada Negreiros (do livro «Obras Completas – Contos e Novelas»)
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sexta-feira, 19 de novembro de 2010

António Souto – Crónica (30)

Nos bastidores, as águas agitam-se. Sugere-se remodelações. Cavaco não dá cavaco. Alegre parece triste. O povo sufoca. O inverno chega de mansinho e os dias são mais pequenos e menos radiosos.
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Um acto com muitas cenas
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(Tudo gira em torno de um orçamento. Tudo se iniciou antes dele, muito antes dele. Tudo se prolongará para além dele, muito para além dele. Um cenário de crise anunciada. Uma crise real, um mau cenário.)
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Cena I
Dia 29 de Outubro, final de um Conselho de Estado e fim de sexta-feira (aziago, como muitas sextas). O presidente da República insiste que há muito sabia dos desatinos e dos sérios problemas que Portugal enfrentava e que não se coibiu de chamar a atenção para eles e etcetera e tal. Mas sempre com a discrição que o assunto exigia. Um presidente, portanto, discretíssimo. O Conselho de Estado, discretamente convocado, por sua discreta iniciativa, confirma que a situação é efectivamente crítica e que urge um entendimento.
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Cena II
Dia 30, sábado de temporal, dia seguinte e véspera do Dia Mundial da Poupança, sabemos que afinal há concertação, mas desconcertada, e que à poupança, a bem ou a mal, ninguém haverá de escapar, mesmo que não tenha mais para poupar do que as unhas, coisa nossa que sempre cresce.
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Cena III
Eduardo Catroga (protagonista da oposição) faz uma extensa e repetitiva declaração. Um delírio de protagonismo pessoal e institucional! O entendimento-acordo fora assinado. Às vinte e três horas e dezanove minutos! A precisão do tempo zelosamente captada. O rigor do espectáculo. Com o artifício das palavras.
«Vou guardar no meu álbum esta fotografia tirada pelo meu staff, para juntar aos milhares de negociações que levo nos meus 68 anos e mais de 45 anos de experiência profissional.»
«As condições minimalistas que eu tinha apresentado na terça aproximavam-se das que agora estão no acordo. Se as tivéssemos aceitado na terça, podíamos ter evitado ao país o espectáculo de quarta, o espectáculo de quinta, o espectáculo de sexta e o espectáculo que estamos a dar hoje aqui».
O espectáculo. O mau espectáculo a condizer com o mau cenário.
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Cena IV
Teixeira dos Santos (protagonista residente), em menos de um terço do tempo, justifica um entendimento que, pelos vistos, não é bem um entendimento. Porém, é tudo a sério, muito a sério. Como as palavras, o artifício também das palavras.
«Este é o orçamento mais importante dos últimos 25 anos.»
«O governo manifestou o seu sentido de responsabilidade e de coragem.»
«Com este entendimento o país vai ter o seu orçamento e evita-se assim uma crise.»
«Um orçamento que vai ter custos, um agravamento em mais de 500 milhões de euros que terá de ser agora compensado.»
«Um orçamento em que o PSD quis dourar a pílula.»
«Agora é preciso que o PSD apoie as medidas necessárias para que se assegure o cumprimento do défice de quatro vírgula seis.»
«Gostaria de ter podido tirar uma fotografia aqui com o senhor professor Eduardo Catroga a assinar o acordo, mas tal não foi possível, já que não houve vontade de conferência de imprensa conjunta.»
Só faltou mesmo a fotografia. E, pelos vistos, faltou igualmente o staff.
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(O cidadão-espectador resigna-se a assistir, com pouca ou nenhuma vontade já de aplaudir, com nenhumas forças para protestar.)
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Cena V
Dia dois de Novembro, um debate muito pouco debate, um debate muito retórico e muito pouco edificante, um debate de acusações que toda a gente já ouviu e leu. Um hemiciclo, afinal, muito redondo.
Questões de fundo, praticamente nada, apenas uma polifonia gasta, reincidente e aborrecida.
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(Mais do que isto, só a repetição incontinente dos comentadores que, em directo, têm o condão de amofinar os telespectadores com interpretações sobrepostas.)
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Cena VI
Meia dúzia de dias após, fim da acumulação das pensões e de salários na função pública.
«Pouco impacto na poupança, mas é uma questão de moralização.»
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(O cidadão percebe agora que são precisos muitos anos para concluir que é imoral aquilo que era já imoral!)
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Cena VII
A dívida pública dispara. Os juros também. Paira o espectro do FMI. Os mercados internacionais fingem ameaçar. Tudo soberano. Tudo enredo. Tudo fábula.
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Outras cenas
Os mercados internacionais indiciam tréguas. As sondagens baralham as intenções de voto. As oposições não são mais do que isso. Nos bastidores, as águas agitam-se. Sugere-se remodelações. Cavaco não dá cavaco. Alegre parece triste. O povo sufoca. O inverno chega de mansinho e os dias são mais pequenos e menos radiosos.
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(Tudo gira em torno de um orçamento. Um orçamento mau e simultaneamente menos mau. Um acordo bom e simultaneamente menos bom e simultaneamente mau. Um encenador fora de cena. Actores definitivamente personagens num mau cenário e numa má peça. Um guião que já não serve.)
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Crónica de Novembro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29.
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sábado, 6 de novembro de 2010

Submarinos

Tive a primeira cadeira de economia no liceu, quando andava no nono ano. Depois foram aparecendo mais, até à universidade, e mesmo quando a seguir voltei a estudar, inclusive fora de Portugal. Apanhei excelentes professores, como Ferro Rodrigues (que ainda era pouco conhecido, ia para as aulas num pequeno carro branco e por vezes levava o jornal «A Bola» debaixo do braço), tive outros mais ou menos, tive um a quem chamavam «o camionista» e outro que era louco. Obrigaram-me a comprar um livro do primeiro-ministro da altura, cujo filho eu haveria depois de ver no dia da inspecção militar a despachar-se em menos de uma hora (com um sargento, ou lá o que era, a ameaçar quem protestava com a possibilidade de detenção). Foram muitas cadeiras, é verdade, mas só agora, passados todos estes anos, é que descobri que a dívida pública dos países se pode medir em submarinos. Na última semana perdi a conta ao número de pessoas que ouvi a falarem disso: comentadores, deputados e por aí adiante. Ainda ontem à noite, na televisão, o deputado europeu Nuno Melo se queixava de que nos anos de José Sócrates como primeiro-ministro Portugal se tinha endividado o equivalente a dois submarinos por mês.
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terça-feira, 2 de novembro de 2010

Revista «human» de Novembro

(clicar na imagem para aumentar)
Nas bancas desde meio da semana passada, ainda Outubro. É o número 23, de Novembro de 2010. Mais informações sobre a edição aqui. Deixo a seguir o meu editorial…
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Uma entrevista, um orçamento
Há já uns tempos que andávamos para entrevistar Marcelo Rebelo de Sousa. Era sobre o estado do país, da economia, das empresas, da nossa castigada sociedade civil, era sobre isso que queríamos ouvi-lo. Sucederam-se os meses e acabámos por conseguir. Foi poucos dias antes da entrega de um bocadinho do Orçamento de Estado na Assembleia da República, com o ministro das Finanças a gabar-se de que não dormia havia duas noites. O resto do documento ficaria para depois, nem sei quando, perdi a noção, ou antes, desinteressei-me. Se calhar ainda falta entregarem uma data de coisas e eu é que estou a leste. Não me admirava se fosse realmente assim. Por aquelas bandas, não há nada que não seja para se ir fazendo, até porque se for preciso meter mais dinheiro para aparar mais alguma trapalhada no défice ou com um submarino cá estamos nós de prevenção.
Na entrevista, Marcelo Rebelo de Sousa mostra-se preocupado com o orçamento, com que o que iria ser apresentado. E agora que a revista chega às bancas essa apresentação já foi feita, aos bocados, é certo, mas foi. Talvez falte alguma coisa, talvez não falte. Como disse, acabei por ficar a leste. Resguardado. Um pouco resguardado. Mas para a entrevista isso não importa, a sua validade é exactamente a mesma que seria se o ministro das Finanças se tivesse atrasado, nem sei, uma semana, duas semanas, três. Se os jornalistas tivessem acampado na Assembleia da República à espera de que ele aparecesse mais a sua equipa nessas alturas tão silenciosa. Se ainda lá estivessem à espera mais o doutor Jaime Gama. E se a própria lei também esperasse, com os prazos de entrega do documento completo a saltarem dias e mais dias no calendário. Até que o ministro aparecesse com as pens todas carregadas de ficheiros.
Sim, a validade da entrevista é a mesma. Vale a pena ler. Descobrir o que Marcelo Rebelo de Sousa pede para o país. E o que dele, país, vai dizendo resposta atrás de resposta.

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Custa ver...

O orçamento. Começa agora a discussão na Assembleia da República, provavelmente com gritaria, insultos, mentiras, desculpas esfarrapadas, ameaças e mais meia dúzia de tropelias. Não será, certamente, nada diferente do que foi a sua apresentação (um bocadinho apenas, numa pen entregue fora de horas) e, sobretudo, do que foi a posterior negociação entre o governo e o principal partido da oposição. Não se vê todos os dias uma negociação assim; com ameaças, visitas a casa, insultos, enganos, remoques, promessas de almoços, lamentos e gabarolices, e com declarações parvas para a comunicação social e cerimónias sem ninguém para as fazer. E fotos manhosas de telemóvel feitas a horas esquisitas. Alguém que anda por aí disse na televisão que o importante era que estes tipos se calassem. E que não aparecessem em tudo quanto é televisão ou jornal, acrescento eu. Que, malandros ou não, fossem trabalhar. Custa ver decisões que afectam a generalidade das pessoas em Portugal, milhões de pessoas, tomadas por gente tão desqualificada, em muitos casos gente à custa dos nossos impostos já reformada. Para a próxima, já se sabe, será pior. Por cá nem o palhaço Tiririca poderia fazer as suas promessas.
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