quarta-feira, 31 de maio de 2006

As tarefas da oficina

Em tempos, convidaram-me para coordenar uma oficina de escrita. Das situações que propus aos participantes, a que mais me pareceu agradar-lhes teve a ver com a realização de treze tarefas, que na prática eram catorze. Como primeira tarefa, deviam escrever o início de uma história. Só depois podiam ver a segunda, e assim sucessivamente, até à número treze.
As tarefas eram as seguintes – 1) Escrever o início de uma história, na terceira pessoa; a primeira palavra é «Primeiramente» (não utilizar mais advérbios de modo); tem de haver duas personagens; convém que a história decorra ao ar livre. 2) Rescrever tudo do ponto de vista de cada uma das personagens (a tal tarefa dupla). 3) Rescrever tudo do ponto de vista de uma andorinha que sobrevoa o sítio onde decorre a acção. 4) Rescrever tudo do ponto de vista de um milhafre que sobrevoa o sítio onde decorre a acção. 5) Rescrever tudo de forma a incluir quinze advérbios de modo terminados em «mente». 6) Rescrever tudo de forma a expurgar do texto os adjectivos. 7) Rescrever tudo de forma a incluir dez preposições «que». 8) Rescrever tudo de forma a expurgar do texto todas as palavras começadas por «P». 9) Rescrever tudo através de um diálogo entre as duas personagens. 10) Rescrever tudo através de um diálogo entre a andorinha e o milhafre. 11) Rescrever tudo de forma a incluir um ataque do milhafre à andorinha, de repente, a meio da acção, suscitando comentários das duas personagens. 12) Rescrever tudo, de forma a incluir um ataque do milhafre às personagens, mas do ponto de vista da andorinha. 13) Rescrever tudo, decorrendo a acção num recinto fechado (uma casa, por exemplo); pode incluir o milhafre e/ ou a andorinha.
Bem, a verdade é que acabei por ter de cumprir também as tarefas. Mesmo o efeito da surpresa não existindo para mim. Por mais que tentasse livrar-me, os participantes nunca deixaram de insistir. Afinal, e muito provavelmente, nada mais justo. De forma que lá tive de meter mãos à obra. E as tarefas apareceram escritas. Deixo as primeiras a seguir.
O começo da história:
Primeiramente, pode dizer-se que ainda ninguém tinha dito nada a respeito da cruz vermelha cravada mesmo ao lado da porta da câmara municipal. Por mais que a olhassem, uns de lado, mas outros bem de frente, por mais que isso acontecesse, não havia quem se pronunciasse. Nem o novo presidente da câmara, quando passou a caminho da tão aguardada tomada de posse, com a secretária atrás a tentar escovar-lhe o fato junto aos ombros, nem mesmo o presidente pareceu com disposição para abrir a boca. A secretária ainda fez menção de dizer qualquer coisa, mas não saiu das hesitações e acabou por seguir caminho. Via-se bem que ainda tinha muito para escovar antes do início da cerimónia.
O relato do presidente:
Começo o meu mandato com uma cruz vermelha à porta da câmara. Já não bastavam os comunistas… Mas pronto, isto o melhor que um político tem a fazer é não ligar a provocações, só que também é bom não esquecer, que é para a rédea não alongar demais. Pulso firme e rédea com o fim bem à vista dos olhos, é o que se pede a quem ocupa certos cargos. Porque nesta vida de político nem nas palmadinhas nas costas se pode verdadeiramente confiar. Aliás, não se pode confiar mesmo nada, senão é a morte do artista, às vezes ainda enquanto jovem, como dizia o outro. Para mim, palmadinhas nas costas, ou nos ombros, só as da minha secretária, que têm razões devidamente fundamentadas, além da inegável admiração que a rapariga nutre pela minha pessoa.
E quanto à cruz, para acabar, assim que aqui a terra entrar nos eixos, e para isso não reservo mais do que duas semanas, assim que isto entrar nos eixos, vai nem que seja a poder de escavadora. Ai não que não vai...
O relato da secretária:
Sempre me interessei por caspa. E então se for caspa de altas figuras, daquelas mesmo importantes, assim de vereador para cima, isto falando em termos locais, que é o tipo de poder a que estou vinculada, ui, se for caspa de altas figuras, nem vale a pena falar.
Poderão as pessoas perguntar, mas por quê uma promissora engenheira, jovem, bem jovem, e bonita, muito bonita até, por quê uma criatura assim sujeitar-se ao papel de secretária? Por quê? As pessoas, ui, as pessoas muitas vezes não sabem o que dizem. A vida não é só prazeres e mordomias. É preciso lutar para se conseguir aquilo que verdadeiramente se quer. E eu, para levar em frente o meu projecto de doutoramento, eu não olhos a meios. Sim, a minha tese assenta na investigação da caspa, nos seus mais ínfimos processos de formação. E agora, ui, estou numa fase em que procuro determinar a verdadeira relação entre a formação da caspa e o stress das mais diversas actividades. Da actividade política, por exemplo. Onde até nem pagam mal.
O relato da andorinha:
Construí o meu ninho no beiral da câmara. Não fiz por menos. Igreja, tribunal, casas de ricos, praça do peixe, qual quê? Fui logo para a câmara. Ainda por cima, sendo época de eleições locais, as vistas não haveriam de ser monótonas, pensei. E não me enganei.
Isto é que tem sido um fartote… E ainda por cima, ainda por cima quem ganhou as eleições foi o candidato da caspa. Quando nascerem os meus passaritos, boa alimentação para eles ali terei. O pior é a puta da serviçal que sempre acompanha o homem, sempre a recolher-lhe a substância, quem sabe se para enviar para alguns serviços centrais, daqueles que estão sempre à mama.
E depois, bem, depois há uma coisa... Uma noite, bem, foi na véspera da tomada de posse do casposo, uma noite puseram uma cruz vermelha à porta da câmara. Claro que não digo quem foi. Prezo muito a vida.
O relato do milhafre:
Os milhafres, em geral, não recuam perante as dificuldades. Só que há dificuldades e dificuldades. Como em tudo na vida. E então deu-se o caso, para passar já à história que aqui me traz, deu-se o caso que um dia destes vi uma cruz vermelha mesmo à porta de um grande casarão, mesmo no centro de uma vila aqui bem próxima. Ora, nem estive com coisas, fui logo lá pousar, na esperança de até ser um bom ponto de observação.
Estava muita gente presente, parecia até ocasião de festa, mas eu mesmo assim fui. E ninguém me apedrejou. Se calhar, pensando bem, tiveram medo de partir a cruz.
Só que a coisa não correu bem. Nada bem, mesmo. Vi uma rapariga formosa, das bem formosas, e decidi logo. Esta vou besbicá-la… Ai vou, ai isso é que vou… Mas quando levantei voo – vou, voo, boa artimanha discursiva –, quando levantei voo, dizia, quando levantei voo e me preparei para subir o suficiente para sobre a rapariga cair a pique... Miséria… A rapariga ia a recolher caspa de um homem, bem repelente, por sinal. E eu, caspa, brrrreeeeee... Caspa, para mim, é mesmo o pior que os humanos carregam. Voei para bem longe em menos de um tiro.
Uma rapariga tão formosa...

domingo, 28 de maio de 2006

A auto-estrada e as serras

Chegou o calor. Ainda em Maio. E este calor, que ao chegar me transmite sempre uma sensação de novidade, como se eu nunca o tivesse sentido, este calor dos últimos dias fez-me pensar no que será o próximo Verão, ou melhor, no que poderá ser o próximo Verão dos incêndios. Há meses que não se fala do problema. Choveu e outro problema, o da seca, parece relativamente controlado; mas com a chuva cresceu a pequena vegetação, o pasto, os matos, e agora começa a ficar tudo seco. O fogo está de novo convidado, mas não se ouve falar desse convite.
Há quase um ano, com boa parte do país rural a arder, Pacheco Pereira escrevia no seu blog «Abrupto» o seguinte (quatro de Agosto):
«Mais cedo do que esperava pude ver a gravidade da situação dos fogos. Hoje, directamente. Tentei chegar ao Porto e não consegui. Entre Santarém e Pombal, zona em que a A1 foi interrompida, observei dezenas de incêndios, alguns muito grandes. Sempre que chegava a um plataforma elevada, como quando se entra na Serra dos Candeeiros, a toda a volta levantavam-se colunas de incêndios, na direcção de Santarém, de Leiria. A uma dada altura na A1 havia chamas vivas de um lado e de outro da estrada, ao lado da estrada. Não eram muito altas, mas atrás havia grossas colunas de fumo. Bastava uma paragem, e houve várias, para se observar um novo incêndio, que rapidamente progredia. Nem sempre era mato ou árvores, o fumo muito negro mostrava que havia outras coisas a arder./ Na estrada, o ambiente era caótico, com filas formando-se rapidamente em vários quilómetros, e com autotanques com gasolina nas filas. Carros da polícia passavam sem se perceber para quê. Quando a A1 foi finalmente interrompida e a coluna de veículos desviada para a estrada Figueira da Foz – Pombal ninguém sabia dizer nada sobre as alternativas. A Brisa continuava a receber portagens criando um congestionamento perigoso. Quando se chegava à outra estrada percebia-se logo que o mar de chamas e fumo para Norte impedia qualquer passagem, e, se dúvidas havia de que alguma coisa de muito grave se passava, era ver chegar os carros com mulheres e crianças evacuados das aldeias, desesperadas e em pânico. Uma rapariga procurava o pai, uma mulher com um bebé ao colo chorava convulsivamente porque a sua casa e a ‘aldeia’ (não sei se é verdade, mas era o que dizia) tinham ardido./ Não havia ninguém nos acessos da entrada da A1 – a polícia sem se saber por quê em vez de estar à entrada dos acessos para impedir o bloqueamento, estava depois das portagens, onde os camiões que pretendiam entrar já não podiam dar a volta. Percebia-se que os agentes estavam preocupados com as suas terras, as suas famílias, a julgar pelas conversas ao telemóvel. Compreende-se, mas havia um ar de caos em tudo./ É preciso acrescentar que esta portagem está ela própria numa área de floresta e o incêndio estava demasiado perto. Os sistemas que deviam ajudar a informar os automobilistas não serviam para nada. O número da Brisa dava informações erradas: os camionistas tinham entrado no acesso à portagem convictos de que se podia seguir para o Norte. Errado. A Antena1, a rádio cuja sintonia era recomendada em cartazes na A1, pelo menos em dois noticiários nada dizia de útil e não interrompia os seus programas para dar informações de trânsito. Era surrealista ver o que se estava a passar e o clima de relativa normalidade nos noticiários, com as notícias dos incêndios cada vez mais estereotipadas e trivializadas./ Fiquei ainda mais convicto de que, pelos órgãos de informação, os portugueses não têm tido a ideia da gravidade dos incêndios este ano. E hoje tenho a certeza de que, pelo menos ali, coisas graves se estavam a passar. Espero que não. Espero que tenha sido apenas impressão minha.»
Esta descrição de Pacheco Pereira traz-me à memória os incêndios que nos dois anos anteriores (2003 e 2004) devastaram as serras da zona de Monchique, no Algarve, assim como outras zonas próximas. Lembro-me de uma noite de 2004, aquela em que deflagrou o segundo grande incêndio desse ano, depois de cerca de metade da zona ter sido reduzida a cinzas pelo primeiro. Atravessei boa parte do Alentejo pela auto-estrada, sem encontrar muito trânsito. Era já bem de noite e a partir de certa altura (ao aproximar-me de Ourique) distingui um clarão vermelho ao longe, em frente. Era o fogo, a mais de cinquenta quilómetros de distância. Saí da auto-estrada em Ourique e meti-me pela estrada nacional, até desviar em São Marcos para a nova estrada que corta os primeiros montes até ao Alferce, uma das três freguesias do concelho de Monchique.
A partir de metade do percurso por essa nova estrada (que no total tem cerca de quinze quilómetros), comecei a ver uma linha contínua de fogo. Ia progredindo lentamente, com cerca de meio metro de altura. Se saísse do carro e começasse a apagá-la com ramos de eucalipto, em meia-hora talvez conseguisse limpar cerca de cem metros, mas a linha de fogo tinha alguns quilómetros. E eu não via ninguém por ali. O silêncio que conheço das noites naquela zona era então quebrado apenas pelos sons do mato a arder, que aumentavam de cada vez que as chamas trepavam a uma das árvores. Decidi que não podia parar, que tinha de chegar mais adiante, à antiga casa da minha avó, numa aldeia agora desabitada. Era aí que eu passava a temporada das férias grandes, em criança. O mundo tão grande desses tempos parecia-me agora bem mais pequeno. Não se via nas redondezas nenhuma luz artificial, nem ao longo da estrada, que apesar de ser toda moderna não tem postes de iluminação. Luz, apenas a da linha de fogo. Distingui a aldeia no fundo do vale, junto a um ribeiro, iluminada pelo clarão.
Parei o carro perto da saída para a estrada de terra que dá acesso ao vale, tentando que não ficasse em cima dos matos. Desci pela estrada de terra, sempre com o mesmo silêncio interrompido apenas pelos estalidos que saíam da linha de fogo. Andei cerca de um quilómetro, atravessei a ponte sobre o ribeiro e entrei na aldeia. Pouco passava da uma da manhã. A linha de fogo estava cinquenta metros acima e podia entrar na aldeia, embora esta estivesse limpa de mato. Ali, junto com a antiga casa da minha avó, a minha família possui mais algumas casas menores, uma azenha e um terreno. Eu sabia que o meu irmão estava por perto, mais adiante, por isso continuei.
Cerca de um quilómetro depois, cheguei a uma zona de montado da minha família. Sempre com a linha de fogo a acompanhar-me. Foi então que me deparei com uma espécie de monstro a encandear-me, um monstro com os máximos ligados a ocupar toda a largura da estrada de terra. Tinha um carro de bombeiros na frente, com dois ou três bombeiros inquietos por estarem com uma viatura naquela estrada estreita, rodeada de árvores e com o fogo numa linha contínua, paralela à estrada, embora do outro lado do ribeiro. O meu irmão desceu da parte de trás do camião e despediu-se. Os bombeiros foram-se embora, parecendo aliviados.
Disse-me depois o meu irmão que na vila tinha conseguido convencê-los a acompanharem-no até ali, com o argumento de que mais adiante o fogo não se limitava àquela linha contínua de meio metro de altura, estava bem maior, e com um carro de bombeiros seria possível contê-lo. Mas eles foram sempre insistindo que não podiam fazer nada, e acabaram por ir-se embora depois de eu chegar.
Ficámos os dois, eu e o meu irmão, com uma carrinha, dois machados, dois baldes e duas enxadas. As enxadas para atirar terra para as chamas, os machados para cortar ramos com os quais poderíamos bater nas chamas, os baldes porque tínhamos o ribeiro de onde tirar água. Ficámos toda a noite naquilo, como muitos populares noutras zonas da serra. Não havia nada parecido com o que viu Pacheco Pereira na auto-estrada para o Norte, mas de manhã, quando fomos para casa, deparámos nas estradas de alcatrão à volta da vila de Monchique com um movimento intenso, e pela vila a coisa ainda era pior. Carros, camiões, carrinhas de último modelo da direcção-regional já nem me lembro de quê... Bombeiros, polícia, GNR, tropa e, sobretudo, uma categoria um pouco difícil de caracterizar, os chamados responsáveis (dos quais se destacava um, por de vez em quando ter um copo de whisky na mão). Todos num corrupio. E as chamas também num corrupio. Como que por ironia do destino, o fogo foi dado como extinto ao fim de alguns dias, exactamente no mesmo local onde tinha começado. Deu voltas e mais voltas e regressou às origens, talvez por não ter mais nada para queimar.

terça-feira, 23 de maio de 2006

Três fantásticos impostores

Há alguns meses, o suplemento «Mil Folhas» do jornal «Público» convidou-me (e a mais uma série de pessoas) para escolher os cinco melhores livros do ano passado. Não interessa agora falar de todos os cinco livros que indiquei, apenas do primeiro, um admirável romance do escritor colombiano Santiago Gamboa, intitulado «Os Impostores» (ASA, 2005, 272 págs.).
Um novo romance de Santiago Gamboa é sempre um acontecimento. Isto porque quando se fala de Santiago Gamboa, fala-se não de mais um escritor de talento, mas provavelmente do mais genial escritor latino-americano da geração que acaba por suceder a nomes como Gabriel García Márquez ou Mario Vargas Llosa. «Os Impostores» confirmam claramente esta ideia, com uma história soberba, narrada com uma mestria e um humor que cada vez mais vão rareando no mundo das letras. E essa mestria, sobretudo essa mestria, está bem explícita nas homenagens que Santiago Gamboa presta a pessoas e obras que ajudaram a construir a história da literatura – veja-se, por exemplo, o início do romance que uma das personagens planeia escrever, decalcado de «Pedro Páramo», de Juan Rulfo – e também na maneira como conta as aventuras de cada um dos impostores, que o destino há-de juntar num barracão escuro de Pequim.
São três os impostores, um jornalista colombiano radicado em Paris (e como não imaginar o próprio Santiago Gamboa na pele desse jornalista) e dois professores universitários, um alemão e um peruano que é ao mesmo tempo um escritor, digamos assim, estranhíssimo (embora não seja difícil encontrar candidatos na vida real para lhe corresponderem). Estes três impostores viajam para Pequim, um de Paris, outro de Frankfurt e outro ainda de Austin, nos Estados Unidos; cada um leva o seu objectivo, desconhecendo que se tratam, afinal, do mesmo objectivo. A história é contada em parte pelo jornalista e em parte por alguém que acaba por revelar-se num acrescento final, surpreendente, leve, de uma enorme simplicidade, capaz de justificar como terá sido possível que estivessem olhos atentos a ver determinadas cenas; para que o leitor delas tivesse conhecimento. Um acrescento que surge já depois da conclusão das histórias dos três impostores, também essa surpreendente, tão surpreendente que se percebe, passado um pouco, que teria de ser mesmo assim, simples; ainda aqui a simplicidade, como um puzzle que depois de completo parece não encerrar nenhum mistério, mas que nos fica na memória, desejando que possa haver outro assim, bem depressa.
Santiago Gamboa tem mais dois títulos publicados em Portugal: «Perder É uma Questão de Método» e «A Vida Feliz do Jovem Esteban» (ambos da ASA). Falta cá o seu primeiro livro, «Páginas de Vuelta». De qualquer forma, para compensar, há mais qualquer coisa na colectânea «Contos Apátridas» (também da ASA), precisamente uma história intitulada «Tragédia do Homem que Amava nos Aeroportos», que bem se destaca entre outras assinadas por nomes como o espanhol José Manuel Fajardo ou o chileno Luis Sepúlveda. Como em «Os Impostores», imagina-se Santiago Gamboa na pele da personagem central de «A Vida Feliz do Jovem Esteban» (o narrador Esteban) e também na do jornalista que conta como amava nos aeroportos um pouco por todo o mundo, resignado. Sempre um espanto, cada história que este colombiano nascido em Bogotá nos oferece.

O bilhete do Scolari

Eu podia muito bem ter ido ver o Sporting com um bilhete do Scolari. Aconteceu no dia dezoito de Maio do ano passado, na final da «Taça UEFA». José Peseiro ainda era o treinador, mas mesmo assim eu tinha esperanças de que o Sporting conseguisse ganhar. Conhecia de ginjeira a falta de jeito de Peseiro, não me cansava de apregoá-la desde o dia em que tinha ouvido o anúncio da sua contratação para o meu clube, mas mesmo assim acreditava. As coisas acabaram na desgraça que se sabe…
Eu não pensava em ir ver o jogo ao estádio, mas acabei por decidir-me quando à última hora surgiu uma oportunidade de comprar dois bilhetes. E então, com o dinheiro transferido de véspera, no dia dezoito de manhã eu tinha a promessa de os bilhetes estarem à minha espera dentro de um envelope. Era só ir buscá-los a um hotel do centro de Lisboa, no qual a UEFA se tinha instalado.
Lá fui. Entrei no hotel, com polícias de sobra na entrada e uns tipos à paisana com cara de poucos amigos no interior, e depois de algumas indagações na recepção do próprio hotel e numa outra toda especial montada pela UEFA lá cheguei a uma sala onde se podia levantar bilhetes. Aí, obrigado a falar inglês para anunciar ao que ia, não tive muita sorte. A senhora da UEFA, de dimensões consideráveis, muito a contragosto levantou os olhos da papelada que tinha numa secretária improvisada e disse, num inglês nitidamente vestefálico, que o nome que eu dava não correspondia a nenhuns bilhetes dos da lista dela. Quando tive a infeliz ideia de perguntar se por acaso a UEFA não tinha em Lisboa ninguém que atendesse as pessoas em português, ela então levantou mesmo os olhos bem alto e mudou de idioma; ainda pensei que poderia ir dizer alguma coisa na nossa língua, mas ela berrou-me um estridente «ciao» e voltou a enfiar os olhos na secretária.
Bom, como naquela sala também estava instalada a Federação Portuguesa de Futebol, resolvi pedir ajuda a uma das pessoas que a representavam, uma rapariga que me pareceu um pouco embaraçada com a situação a que tinha assistido. Tentando ser simpática, disse-me que ali se levantam bilhetes mas que não podia fazer nada, que era coisas que sé mesmo com a UEFA. Vendo que aquilo não atava nem desatava, e pensando que me podiam ter voado assim sem mais nem menos 120 euros nem eu sabia para onde, sentei-me numa cadeira que estava por perto, junto a uma mesa com uma pilha de envelopes, enquanto pensava no que fazer. Foi então que reparei no que estava escrito no envelope de cima: «Senhor Luís Filipe Scolari». De imediato me chegou a ideia de pegar no envelope do homem e em mais uns quantos e ir-me embora sem dizer nada. Mas depois pensei que se calhar iria arranjar um grande problema, não sei se à Federação Portuguesa de Futebol se à UEFA, quando o Scolari chegasse e descobrisse que não tinha bilhete.
Só que acabei por não pegar no envelope. E como não aparecia mais ninguém da UEFA e a mastodonta do «ciao» continuava lá nas papeladas dela, resolvi ir tentar a sorte noutras zonas do hotel. Pelo caminho, encontrei uma cara conhecida, conhecida não por ser de um amigo mas por ser de uma figura pública. Perguntou-me se sabia onde se levantava os bilhetes e eu disse-lhe que tinha comprado dois e que andava à procura deles. A cara conhecida (não, não era o Scolari) disse-me: «Não, eu venho é buscar convites!» Compreendi logo e indiquei-lhe como chegar até à pilha onde estava o envelope do Scolari, junto da rapariga da Federação Portuguesa de Futebol. E acrescentei: «Aí deve-se desenrascar!»
Meia-hora depois, já fora do hotel e com os bilhetes no bolso do casaco, depois de voltas e mais voltas pelo hotel até dar com eles na recepção (a do hotel, não a especial montada pela UEFA), enquanto caminhava para o carro, tocou o telemóvel. Mais um conhecido, mas desta vez uma amigo, não uma figura pública. Era para me contar que o contacto que eu lhe tinha arranjado numa editora já lhe tinha respondido a dizer que estavam interessados em ver os contos dele. Mas de repente mudou de assunto e perguntou-me: «Olha lá, não me digas que tens galinhas aí no monte?» Respondi-lhe que não estava em casa, que estava em Lisboa, que ia a passar junto à Estufa Fria a caminho do parque de estacionamento e que andavam uns pavões a fazer uma barulheira desgraçada mesmo à beira da vedação. E depois contei-lhe a história da UEFA e da mastodonta do «ciao». Mas ele disse-me que eu se calhar estava a exagerar.

As florestas

Um bocadinho de «O Medo Longe de Ti» (edição Temas e Debates, 2003), o meu romance referido no post de dia 21 deste mês sobre o nome deste blog. A primeira vez que aparecem as duas florestas (págs. 10 e 11).
Lembras-te de como eu costumava embrenhar-me na floresta, ao fim da tarde, depois das aulas? Depois de sair da Universität, como todos os estrangeiros chamavam à faculdade, se calhar para não fazerem má figura perante os alemães? Eu deixava as coisas na cabana, preparava algo que pudesse levar para comer e partia sem destino certo. Quantas vezes quiseste falar das razões para eu ser assim... Até chegaste a pensar que eu ia correr, a princípio perguntaste-me isso, e eu disse simplesmente que não, que não ia para a floresta apenas para correr.
– Correr, só correr, posso fazê-lo aqui à volta da cabana.
– Pensar, talvez.
Foi o que ainda arriscaste, «Pensar, talvez», e eu fiquei em silêncio, com os olhos postos nos teus, procurando neles, nem sei... Uma luzinha, sim, uma luzinha que fosse, isso haveria de me bastar.
Eu ia para a floresta, mas acho que era apenas na ilusão de regressar à minha floresta do Sul, onde tinha sido verdadeiramente feliz, anos antes, em criança. Era isso. Sim, por mais que arriscasses que eu ia para lá com esperanças de, no meio das árvores, conseguir pensar numa história. Como a Sophie chegou a arriscar, ainda antes de ir observar-me. Por vezes eu corria, mas o mais normal era ficar dentro do carro a olhar para um lado e para outro, feito parvo. A floresta, eu achava que aquela floresta era toda certinha, com a estrada a atravessá-la, quase a parecer uma pista. Da estrada, ainda por cima, saíam caminhos todos bem planeados, limpos de mato, cheios de indicações, e invariavelmente com famílias a andarem de forma muito ordenada, como se estivessem numa repartição pública. E depois havia os animais, as corças, as martas, os esquilos, até os pássaros, cada um na sua zona, parecendo que tinham um contrato de prestação de serviços com o departamento florestal do município, sempre todos limpinhos, todos bem arranjados. E os raios de Sol, esses mal conseguiam passar as copas das árvores.
Naquela floresta cheia de regras, por mais que eu insistisse em lá voltar, não conseguia ver nada da minha floresta de Portugal, os campos, as serras, tudo ainda livre dos espartilhos do ordenamento. A minha floresta do Sul, onde os animais apareciam quando calhava, quando se lembravam, e não por obrigação, fossem dos bons, fossem dos maus, como os terríveis escorpiões pretos. Corças, aí, nem vê-las, esquilos tão-pouco, e martas ainda menos, tudo animais que eu costumava associar ao Jardim Zoológico de Lisboa. Bom, martas se calhar nem ao Jardim Zoológico. A minha floresta do Sul, a minha floresta de sempre, essa era outra, com escalavardos, com ouriços-cacheiros, com lontras, com escorpiões, dos amarelos e dos pretos, com javalis, até com um ou outro texugo de vez em quando. E nela as pessoas andavam pelos caminhos traçados ao sabor de impulsos de muitos e muitos anos, porque era aí que trabalhavam, ou passavam a caminho do trabalho, ou porque tinham de apanhar uns matos para prepararem a cama dos animais de criação.

segunda-feira, 22 de maio de 2006

Demorada e suavemente

Resolvida a questão da providência cautelar que Margarida Rebelo Pinto e a respectiva editora interpuseram – acho que é assim que se diz – sobre «Couves & Alforrecas» (edição Objecto Cardíaco), o livro em que o crítico e professor universitário João Pedro George revela «os segredos» da prosa da escritora a que outro crítico (e professor creio que do secundário) associou o conceito de «realismo urbano total», resolvida que ficou a questão, dizia, uma surpresa. Falo por mim, é claro. Tenho-me deliciado com a leitura do referido «Couves &…», depois de ter lido boa parte do texto no blog «Esplanar», do próprio George. E ao mesmo tempo tenho-me deliciado com um segundo livro do autor, onde são reunidas muitas das suas «críticas, obsessões e outras ficções» («Não É Fácil Dizer Bem», edição Tinta da China). E neste último livro, a surpresa, de repente, assim sem mais nem menos. Eu a ler uns textos da parte final, todo lançado, até porque a maior parte deles são bem esgalhados, e esbarro com isto: «Aproximei a cara do ouvido dela e voltei a falar-lhe demorada e suavemente (…)». A coisa soava-me familiar. Mas de onde? Foi então que se fez luz. Recuei duas páginas, da pequena história «O hábito de mentir» para a anterior («A decadência das piscinas»), e lá estava. De novo o narrador (quem sabe o próprio George), sempre muito bem acompanhado. Conta a sua primeira experiência sexual. Está numa praia e enche uma rapariga de beijos. «Beijei-a nos lábios, beijei-a no queixo, na testa, nas pálpebras, beijei-a nas orelhas, nos lóbulos franjados de penugem loira, na nuca, nos ombros. Saboreei o mar na pele dela. Demorada e suavemente.» Duas pequenas histórias, arrumadas uma à outra, e tudo acontece «demorada e suavemente». Efeitos de tanto calcorrear as páginas de Margarida? Distracção? Coincidência? Na volta, uma tentativa de ser coerente…

domingo, 21 de maio de 2006

Hulohot, o português de Dan Brown

Há um português no último livro de Dan Brown que foi publicado por cá (Bertrand, Março de 2006). Em «Fortaleza Digital» (que é do século passado – 1998 –, anterior ao «Código da Vinci» e também ao romance onde apareceu pela primeira vez o professor de simbologia por quem agora Tom Hanks dá a cara no cinema) aparece um tal Hulohot, tipo perigoso, com várias mortes no currículo e sabe-se lá o que mais. Pela lógica que Brown segue com muitas das outras personagens, Hulohot deve ser o apelido da criatura. Talvez se chame João Miguel da Silva Hulohot, ou André Eduardo Hulohot e Castro. Ou outra combinação. «Com quarenta e dois anos, o mercenário português era um dos profissionais preferidos do comandante. Havia anos que trabalhava para a NSA. Nascido e criado em Lisboa, Hulohot trabalhara para a NSA um pouco por toda a Europa. E nunca ninguém conseguira relacionar as suas acções com Fort Mead. O único senão era o facto de Hulohot ser surdo, o que impossibilitava as comunicações telefónicas.» (pag. 354)
Hulohot foi incumbido de fazer uns servicinhos em Sevilha a mando do tal comandante, o director-adjunto de operações da NSA. Fala em castelhano, mas talvez seja do calor andaluz. «– Soy Hulohot – disse o assassino. As palavras, deformadas, pareciam sair-lhe das profundezas do estômago. Estendeu a mão. – El anillo./ Becker ficou a olhar para ele, confuso./ O homem meteu a mão no bolso e tirou de lá uma arma. Ergueu-a e apontou-a à cabeça de Becker.» (p.304) Becker é David Becker, um professor de literatura que namora com a protagonista do romance. Também foi mandado para Sevilha, sem sequer imaginar no que se ia meter.
Bom, o namorado da protagonista acaba por escapar ao mercenário português, mas este não desiste e vai atrás dele, numa perseguição que tem lugar nas ruas apertadas da zona da Giralda. Hulohot vai de arma em punho, vendo a presa através dos seus óculos cujas lentes são, do lado de dentro, o ecrã do computador que tem adaptado ao peito – por arma em punho, os dedos do punho que a segura, e os do outro punho, esses dedos servem de teclado. Tecnologia norte-americana implantada em mão-de-obra portuguesa.
A perseguição continua. A certa altura, a rua em que decorre começa a ficar mais estreita. Becker parece perdido. O português surdo está confiante… «As paredes apertavam-se de ambos os lados. A passagem encurvava. Procurou [Becker] um cruzamento, uma intercepção, uma saída. A passagem estreitava. Portas fechadas. Mais estreita. Portões fechados. Os passos [do terrível Hulohot] aproximavam-se. Estava [Becker] num troço a direito. E, de repente, a rua começou a subir. Cada vez mais íngreme. Sentiu [Becker] as pernas fraquejarem. Estava [Becker] a abrandar./ E então aconteceu./ Como uma estrada a que tivesse faltado o financiamento, a viela acabou. Havia uma parede elevada, um banco de madeira e mais nada.»
Rima e tudo, mas é da tradução. Já a imagem da estrada com falta de financiamento, essa deve ser mesmo de Brown. Quase tão surpreendente como o português Hulohot.

O nome

Uma explicação muito rápida, para começar. O nome do blog... A floresta do sul é a mesma do meu romance «O Medo Longe de Ti», que publiquei em 2003. É a floresta da terra onde nasci. Nesse romance aparece também a floresta das regras, que o narrador, um jovem escritor português, localiza na Alemanha (é toda muito bem organizadinha, já se vê).